(Nova York) - A América Latina está enfrentando alguns dos mais graves desafios de direitos humanos em décadas, disse a Human Rights Watch hoje por ocasião da publicação de seu Relatório Mundial 2022.
“O retrocesso alarmante das liberdades fundamentais na América Latina nos obriga hoje a defender espaços democráticos que acreditávamos consolidados”, afirmou Tamara Taraciuk Broner, diretora interina da Human Rights Watch para as Américas. “Inclusive líderes eleitos democraticamente realizaram ataques à imprensa livre, à sociedade civil independente e à independência do sistema judiciário. Milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas e países, e o impacto econômico e social da pandemia foi devastador”.
Em seu Relatório Mundial 2022, de 752 páginas (na versão em inglês), 32ª edição, a Human Rights Watch analisa as práticas de direitos humanos em quase 100 países. O diretor executivo Kenneth Roth desafia a sabedoria convencional de que a autocracia está em ascensão.
O governo cubano realizou abusos sistemático contra críticos, inclusive artistas, como por exemplo detenções arbitrárias, maus-tratos a pessoas detidas e promoveu processos criminais abusivos em resposta a protestos, majoritariamente pacíficos, contra o governo.
As eleições em novembro na Nicarágua foram realizadas sem as mínimas garantias democráticas. Durante o período eleitoral o governo de Daniel Ortega agiu arbitrariamente, prendendo e processando seus críticos e opositores, incluindo sete candidatos à presidência, mantendo muitos incomunicáveis e sob condições abusivas por semanas ou meses. Estas detenções se somam a mais de 100 pessoas definidas como críticas que permanecem arbitrariamente detidas em meio à crise de direitos humanos que se agravou em 2018.
Em novembro, o procurador do Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação sobre denúncias de crimes contra a humanidade na Venezuela sob o governo de Nicolás Maduro. Uma missão internacional independente de apuração de fatos da ONU concluiu que as autoridades judiciais foram cúmplices de flagrantes abusos. Uma missão eleitoral independente da União Europeia que monitorou as eleições regionais de novembro relatou que políticos membros da oposição permaneciam arbitrariamente inelegíveis, que o acesso aos meios de comunicação fora desigual e que a falta de independência judicial e o desrespeito pelo Estado de direito comprometeram a imparcialidade e transparência da eleição. A Human Rights Watch já tinha documentado a repressão do governo à dissidência e as desigualdades que dificultaram o livre exercício dos direitos de todos os eleitores.
Líderes eleitos com tendências autoritárias tentaram repetidamente enfraquecer o Estado de Direito.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, apologista da ditadura militar abusiva de seu país, tentou intimidar o Supremo Tribunal Federal com insultos, ameaças e alegações infundadas de fraude eleitoral e sinalizou que poderia tentar cancelar as eleições de 2022.
No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador realizou ataques midiáticos contra jornalistas e defensores dos direitos humanos, se empenhou para eliminar agências governamentais independentes que serviam de controle ao seu poder e tentou cooptar o sistema de justiça mexicano para perseguir seus inimigos políticos. Ele decretou que projetos prioritários de seu governo deveriam receber autorização automaticamente, sem processo de revisão.
Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele e seus aliados no legislativo destituíram sumariamente os juízes da Suprema Corte com os quais discordavam, nomeando novos membros, e aprovaram leis para demitir centenas de juízes e promotores de cargos inferiores. Os então recém-nomeados juízes da Suprema Corte decidiram que Bukele poderia se candidatar à reeleição consecutiva, apesar da proibição constitucional. O governo também propôs um projeto de lei sobre “agentes estrangeiros” que restringiria severamente o trabalho de jornalistas independentes e organizações da sociedade civil.
Enquanto isso, na Argentina, Bolívia, Peru e Guatemala, diversos esforços para enfraquecer a independência judicial ou para usar o sistema de justiça para fins políticos ameaçaram o sistema democrático de freios e contrapesos.
Na Colômbia, membros da Polícia Nacional responderam às manifestações majoritariamente pacíficas dispersando manifestantes de forma arbitrária e fazendo uso excessivo da força, incluindo a utilização de munição letal. A violência e os abusos cometidos por grupos armados, incluindo execuções, massacres e deslocamento forçado aumentaram em regiões remotas onde as instituições civis do Estado e as oportunidades econômicas muitas vezes são escarças. Segundo a ONU, mais de 450 defensores dos direitos humanos foram mortos na Colômbia desde 2016. As medidas adotadas pelo governo para protegê-los foram insuficientes e inadequadas.
A Colômbia - assim como o Chile, Equador e Peru, onde as forças de segurança cometeram graves abusos contra manifestantes nos últimos anos - ainda não adotaram medidas significativas para reformar suas forças policiais, nem leis que possam contribuir para responsabilização por violações de direitos humanos. Problemas semelhantes de impunidade afetam o Brasil, onde a polícia matou 6.400 pessoas em 2020, maior número já registrado. Cerca de 80% das vítimas eram negras.
A pandemia de COVID-19 tem sido usada pelos governos como uma desculpa para violar direitos. O governo guatemalteco teve como alvo a imprensa e impôs restrições às informações sobre a pandemia. No Brasil, o Presidente Bolsonaro desconsiderou recomendações científicas, divulgou informações falsas e promoveu o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid.
As crianças em muitos países encontraram obstáculos para obterem educação em decorrência das restrições relacionadas à pandemia.
A emergência humanitária na Venezuela, que precede a pandemia, deixou o país em uma situação desastrosa para enfrentá-la. Milhões de venezuelanos precisam de ajuda, e a resposta internacional não tem recebido o financiamento necessário. O Programa Mundial de Alimentação estima que um em cada três venezuelanos está em situação de insegurança alimentar.
No Haiti a pandemia e a crise econômica associada a ela, o assassinato do Presidente Jovenel Moïse, e um terremoto de magnitude 7,2 exacerbaram a instabilidade política e a violência de gangues muitas vezes ligadas a agentes estatais. O Haiti tem enfrentado dificuldades contínuas para atender às necessidades básicas de sua população.
Apesar do fechamento das fronteiras, milhões de pessoas estão migrando. Mais de 6 milhões de venezuelanos fugiram do país; muitos enfrentam dificuldades para regularizar sua situação migratória nos países em que se encontram e enfrentam deportações arbitrárias, xenofobia e abusos por parte dos agentes de migração. Mais de 110.000 nicaraguenses já fugiram de seu país desde 2018. Pessoas de todo o mundo têm sido submetidas a condições terríveis, inclusive abusos dos direitos humanos, ao transitar pelo México.
Alguns avanços limitados, mas promissores, puderam ser constatados. Em dezembro de 2020, a Argentina aprovou um projeto de lei para legalizar o aborto durante as primeiras 14 semanas de gravidez e, em 2021, quatro estados do México descriminalizaram o aborto até 12 semanas. A Corte Constitucional do Equador e a Suprema Corte do México deram um passo para flexibilizar as restrições ao aborto, o que pode estimular o progresso em outros lugares.
O Senado mexicano aprovou uma reforma inovadora na Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência para garantir que os abrigos e os Centros de Justiça para Mulheres sejam acessíveis às mulheres com deficiência. O congresso do Chile aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Argentina reconheceu identidades não-binárias de gênero em documentos de identidade oficiais, o primeiro país da América Latina a fazer isso.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil impediu algumas das políticas mais prejudiciais do presidente Bolsonaro e defendeu os direitos humanos. A Procuradoria dos Direitos Humanos da Guatemala tem continuado a manifestar preocupação com as tentativas de enfraquecer os direitos fundamentais no país, ao mesmo tempo em que enfrenta uma campanha das autoridades que buscam desacreditar seu trabalho.
“Muitos corajosos jornalistas, defensores dos direitos humanos e juízes da região continuaram a desempenhar um papel extraordinário, denunciando abusos e agindo para impor limites ao poder executivo”, disse Taraciuk Broner. “É essencial continuar apoiando seus esforços fundamentais para proteger o Estado de Direito, as liberdades fundamentais e as instituições democráticas em um período de perigo”.