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É preciso evitar a crise econômica e alimentar no Afeganistão

As crueldades do Talibã são terríveis, mas bloquear o apoio internacional e manter sanções generalizadas só aumentará o sofrimento do povo afegão.

Publicado em: Foreign Policy In Focus
Uma pessoa sentada atrás de uma caixa com dinheiro a espera por clientes que precisem realizar câmbio na cidade velha de Cabul, Afeganistão, 14 de setembro de 2021. © 2021 AP Photo/Bernat Armangue

A situação humanitária do Afeganistão está se transformando em uma catástrofe.

Milhões de afegãos estão agora enfrentando grave crise econômica e insegurança alimentar na esteira da tomada do Talibã em agosto, desencadeada pela diminuição de renda generalizada, falta de notas impressas e aumento do preço dos alimentos. Representantes da ONU e de vários governos estrangeiros estão alertando sobre um colapso econômico e riscos de agravamento da desnutrição aguda e fome.

Pesquisas do Programa Mundial de Alimentos (PMA) revelam que mais de nove em cada dez famílias afegãs têm quantidade insuficiente de comida para o consumo diário e a metade delas afirmou ter ficado sem comida pelo menos uma vez nas últimas duas semanas. Um em cada três afegãos já enfrenta fome aguda. Outros relatórios das Nações Unidas alertam que mais de 1 milhão de crianças podem enfrentar desnutrição aguda no próximo ano.

Uma das principais causas da crise é que, em agosto, governos suspenderam os pagamentos do Fundo Fiduciário de Reconstrução do Afeganistão administrado pelo Banco Mundial, anteriormente usado para pagar salários a milhões de funcionários públicos, médicos, enfermeiras, professores e outros trabalhadores essenciais. Os sistemas de saúde e educação do Afeganistão, entre outros setores, estão entrando em colapso. Milhões de famílias afegãs perderam sua renda.

Ao mesmo tempo, os bancos afegãos e instituições financeiras globais, incluindo Western Union, MoneyGram e o Banco Central do Afeganistão, agora não têm papel-moeda suficiente para cobrir saques. Titulares de contas que recebem transferências estrangeiras ou que tem depósitos no banco, como afegãos comuns, empresas, agências da ONU e organizações de ajuda humanitária, não podem acessar seu dinheiro.

Os governos doadores estão compreensivelmente preocupados com ações que possam apoiar ou parecer legitimar as autoridades do Talibã que estão arbitrariamente prendendo e atacando ativistas, jornalistas e ex-funcionários do governo anterior e adotando políticas e práticas que violam os direitos de mulheres e meninas à educação, emprego e liberdade de movimento. O Talibã já impôs restrições severas a ativistas, mulheres e à mídia, e retomou as execuções.

Contudo os problemas econômicos e humanitários subjacentes do Afeganistão, que afetam desproporcionalmente mulheres e meninas, não podem ser simplesmente ignorados por causa do histórico do Talibã.

Em 24 de setembro, os Estados Unidos emitiu novas orientações e licenças que autorizam transferências eletrônicas com bancos afegãos e outras entidades para fins humanitários. O problema é que as transações eletrônicas por si só não podem resolver a crise. O Banco Central do Afeganistão precisa ser capaz de fornecer dólares e afegane (moeda local) em espécie.

Porém, após a tomada do Talibã, o Banco da Reserva Federal dos Estados Unidos (o banco central americano) em cortou o acesso do Banco Central do Afeganistão aos seus ativos em dólares americanos e lhe impediu liquidar transações em dólares com outros bancos, assim como comprar dólares em espécie da Reserva Federal dos Estados Unidos para garantir liquidez e estabilidade da moeda local. O Banco Mundial também impediu o Banco Central de acessar seus ativos mantidos pelo Fundo Monetário Internacional.

As transações em dólares americanos, incluindo as transações em moeda em espécie, são essenciais para a economia do Afeganistão. A maior parte do produto interno bruto do país vem de fora do país na forma de dólares, como doações, remessas e receita por exportações. Se o Banco Central do Afeganistão não obter um método de liquidação de contas em dólares e de acessar novo papel-moeda em dólares, os problemas de liquidez e escassez de caixa só irão piorar. As questões da moeda local também precisam ser tratadas. As empresas que imprimem moeda afegã na Europa, preocupadas com as sanções, ainda não podem enviar novas notas para Cabul. As autoridades do Talibã não têm capacidade para imprimir dinheiro.

A economia do Afeganistão tem pouca resiliência. As novas autoridades do Talibã, como o governo anterior, não possuem fontes de receita adequadas para financiar os serviços públicos básicos. Este é um país que se apoiou em doadores externos para ajudar com esses serviços durante a maior parte de sua existência moderna.

A ONU anunciou um plano para enviar US$ 45 milhões para apoiar o setor de saúde por meio de agências da ONU, mas isso não resolverá a crise de papel-moeda e de liquidez. Não é função da ONU enviar milhões de dólares físicos para o Afeganistão. Os governos estrangeiros precisam descobrir como restaurar o financiamento dos serviços públicos, não só de saúde, mas também de educação, usando os bancos do país e sem enriquecer o Talibã ou facilitar seus abusos.

Ao fazer isso, o governo dos EUA e os principais demais doadores do Afeganistão precisarão ajustar as políticas de sanções e chegar a acordos que permitam ao Banco Central processar algumas transações selecionadas e obter papel-moeda. Os doadores e o Talibã também precisarão chegar a um acordo sobre métodos de apoio a serviços vitais por meio de organizações independentes, como a ONU ou organizações não-governamentais.

O Talibã terá de aceitar que as preocupações dos atores externos sobre o fornecimento de apoio orçamentário direto e a prevenção da corrupção exigirão supervisão financeira independente, algo que a ONU e as autoridades financeiras internacionais já fazem. O Talibã também precisará aceitar que os doadores apoiarão apenas assistência e serviços que sejam distribuídos de forma equitativa a mulheres e homens, meninas e meninos, e permitir que os sistemas monitorem e garantam que os serviços beneficiem toda população afegã.

A inação é insustentável. As crueldades do Talibã são horríveis, mas abandonar o apoio anterior a serviços vitais, isolar política e economicamente o país e manter restrições financeiras generalizadas e amplas não mitigará os abusos, apenas prejudicará ainda mais o povo afegão.

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