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América Latina, é hora de acabar com o abuso policial

As polícias da região precisam de reformas urgentes. Caso contrário, é provável que sigamos vendo graves abusos contra manifestantes.

Polícia cerca um manifestante em Lima, Peru, terça-feira, dia 10 de novembro de 2020. © 2020 AP Photo/Rodrigo Abd

Em muitos países da América Latina, os cidadãos saíram massivamente às ruas para protestar em 2019 após anos de expectativas frustradas e de insatisfação com as políticas sociais de seus governos.

Desde o começo deste ano, contudo, as medidas de resposta à pandemia têm obrigado a população a lidar com suas angústias na solidão de suas casas. O mal-estar social demonstrado em 2019 não foi solucionado.

A desigualdade econômica — tema central nas manifestações — tornou-se ainda mais gritante em decorrência da pandemia. Ademais, permanecem sobre a mesa outros temas presentes nas manifestações de 2019, como o deficiente sistema de aposentadoria no Chile e os assassinatos de defensores de direitos humanos na Colômbia.

Nas últimas semanas houve manifestações no Chile, na Costa Rica e na Colômbia, e mais recentemente no Peru, para rejeitar a destituição do presidente. É possível que mais protestos aconteçam em outros países conforme se atenue a crise sanitária devido à Covid-19.

Em 2019, a Human Rights Watch documentou dezenas de casos nos quais a polícia e, às vezes as forças armadas, responderam às manifestações com uso imprudente e excessivo da força no Equador, Colômbia, Chile, Haiti e Bolívia. Muitos manifestantes morreram e centenas foram gravemente feridos.

Alguns dos manifestantes também cometeram atos de violência. No Equador, alguns manifestantes mantiveram dezenas de policiais retidos contra sua vontade durante horas. No Chile, mais de 1.800 policiais foram feridos durante os protestos.

Sem dúvida, a polícia pode prender quem comente crimes. Mas no ano passado, os policiais muitas vezes fizeram uso excessivo da força, inclusive contra manifestantes pacíficos e pessoas que estavam por perto. A violência policial frequentemente exacerbou o mal-estar e os tumultos.

Os abusos policiais na América Latina frequentemente decorrem da impunidade generalizada, da falta de supervisão adequada e de uma cultura institucional de opacidade que tolera e, às vezes, incentiva abusos.

Considerando os eventos de 2019, os governos deveriam adotar políticas urgentes em três áreas: protocolos e equipamentos para controle de protestos; o tratamento a pessoas presas e poderes legais para detenção de manifestantes; e prestação de contas.

Em primeiro lugar, a polícia precisa de regras claras e treinamento adequado para proteger os direitos humanos durante protestos. Deve usar a força somente como último recurso e sempre de forma proporcional a uma ameaça concreta.

Em 2019, os policiais usaram o que muitos deles chamavam de armas “não letais”, quase como se fossem armas de brinquedo. Gás lacrimogêneo, espingardas de pressão e tasers não são armas “não letais”, mas sim armas “menos letais” que podem causar ferimentos graves, incluindo morte. Há um ano, três policiais chilenos nos disseram que as espingardas de pressão eram inofensivas, até mesmo à queima-roupa. Na época, mais de 200 manifestantes haviam sofrido lesões oculares causadas por disparos dessas armas. No mesmo mês, a pedido da Human Rights Watch e diante de uma análise técnica sobre a composição das munições, a polícia chilena suspendeu o uso desse tipo de armamento na maioria das circunstâncias.

Em segundo lugar, as reformas deveriam dar fim a detenções arbitrárias e aos maus-tratos dos detidos, que são facilitados por leis excessivamente amplas e falhas na fiscalização. Na Colômbia, policiais prenderam manifestantes se aproveitando de uma norma que lhes permite “transferir” uma pessoa para sua própria “proteção”. No Equador, muitos manifestantes foram acusados de “rebelião”, um crime cuja definição legal é ampla. No Chile, a polícia forçou muitos detidos, incluindo crianças, a passarem por revistas vexatórias nas quais tiveram que se agachar despidos.

Em terceiro lugar, devem se aplicar punições sérias a qualquer abuso.

Alguns países têm leis que favorecem a impunidade. Na Bolívia, mais de 20 manifestantes foram assassinados em novembro de 2019, depois que o governo interino emitiu um decreto concedendo excessiva discricionariedade no uso da força às forças armadas. Ainda que o governo tenha revogado o decreto pouco depois, ninguém foi responsabilizado pelas mortes até o momento.

Na Colômbia e no Brasil, muitos policiais que cometem abusos são julgados em tribunais militares que não garantem investigações imparciais e independentes.

Mesmo em países da região que contam com leis adequadas, as investigações de abusos policiais geralmente são muito lentas. Apenas um policial foi condenado por abusos durante os protestos do ano passado no Chile, segundo o Ministério Público. No Equador, Bolívia e Colômbia não houve nenhuma condenação.

Os sistemas de justiça da região atuam lentamente em todo tipo de casos. Mas a falta de vontade política para levar adiante as investigações contra policiais e a pouca cooperação das próprias forças de segurança dificultam ainda mais os processos que envolvem policiais. Enquanto isso, os procedimentos disciplinares internos são normalmente pouco transparentes, arbitrários e propensos a ocultar abusos.

Os governos da região parecem não ter aprendido muito com os protestos de 2019. Agentes das forças de segurança em vários países, incluindo El Salvador, Honduras e Argentina, cometeram graves abusos para fazer cumprir as medidas no combate à pandemia de Covid-19, e em resposta a protestos. O caso mais recente é o Peru, onde a polícia usou gás lacrimogênio e espingardas de pressão de forma excessiva, e onde agentes à paisana realizaram detenções arbitrárias. Dois manifestantes morreram. Na Colômbia, 13 pessoas morreram e centenas ficaram feridas durante manifestações em setembro.

O Chile é o único país da região que está discutindo seriamente uma reforma da polícia. Na Colômbia, a Corte Suprema ordenou recentemente que se façam reformas. Contudo, até o momento não houve mudanças estruturais em nenhum dos dois países.

Em outros países houve graves retrocessos. O Peru aprovou uma lei que dificulta a responsabilização de policiais que fazem uso excessivo da força. O Equador adotou uma regulamentação semelhante em relação às forças armadas, mas a Corte Constitucional do país suspendeu sua aplicação.

Os abusos policiais não são casos isolados, mas o resultado de deficiências estruturais. A América Latina precisa de forças policiais profissionais, devidamente capacitadas e supervisionadas adequadamente para prestarem contas sobre o desempenho. Chegar lá será um longo processo, mas é necessário iniciá-lo imediatamente em toda a região, para o bem dos cidadãos e da própria polícia

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