Em 4 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro decretou a prisão domiciliar para o ex-presidente Jair Bolsonaro e proibiu o uso de seu telefone celular por supostamente violar medidas cautelares em um processo envolvendo coação ao STF e outros crimes. Isso ocorreu logo após o governo do presidente Donald Trump impor sanções contra ministros do STF e tarifas contra o Brasil, sob o manto de defensor da liberdade de expressão.
O Brasil precisa de um debate aberto, democrático e informado sobre liberdade de expressão e regulamentação das redes sociais. Mas a flagrante incoerência de Trump em relação à liberdade de expressão e suas inaceitáveis medidas para tentar coagir o STF a beneficiar Bolsonaro, contaminam ainda mais essa importantíssima discussão sobre o futuro da liberdade de expressão no Brasil.
Nos últimos anos, o Brasil tem sido assolado por desinformação e fake news, incluindo alegações infundadas de fraude eleitoral e ataques às instituições democráticas, que se espalham online mesmo depois de serem desmentidas.
Em meio à inércia das plataformas de redes sociais e do Congresso para conter o fluxo de desinformação online, o Supremo Tribunal Federal precisou atuar. Como parte de sua resposta, o ministro Alexandre de Moraes e o plenário do Supremo tomaram decisões problemáticas, como a suspensão de perfis em redes sociais sem a transparência adequada; mudanças no regime de responsabilização das plataformas de redes sociais, que poderiam incentivar estas plataformas a censurar discursos legítimos; e proibições excessivamente amplas do uso de redes sociais, em alguns casos.
No entanto, os brasileiros que valorizam o papel do STF, mas discordam de algumas dessas decisões, muitas vezes hesitam em expressar suas opiniões por medo de que suas preocupações sejam indevidamente apropriadas por apoiadores do Bolsonaro como munição em seu ataque à independência do judiciário.
O STF tornou-se um importante freio às tendências autoritárias de Bolsonaro quando ele era presidente (2019-2022), ao invalidar ou suspender políticas contrárias aos direitos humanos. Em 08 de janeiro de 2023, após Bolsonaro perder a eleição e deixar o poder, uma multidão de apoiadores insatisfeitos com os resultados das urnas invadiu o imponente prédio da Suprema Corte, bem como as sedes dos outros dois poderes, enquanto clamavam por um golpe militar.
Até hoje, esses apoiadores de Bolsonaro parecem determinados a desmantelar o STF ou substituir seus ministros por aliados complacentes. Eles focam seus ataques no ministro Alexandre de Moraes, que é o relator do julgamento contra Bolsonaro e outros por suas participações em uma suposta conspiração para impedir que Luiz Inácio Lula da Silva, eleito democraticamente, assumisse o cargo em 2023. Os procuradores alegam que a conspiração incluía um plano para assassinar Lula, Moraes e o vice-presidente Geraldo Alckmin
Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente e deputado federal, mudou-se para Washington no início deste ano e tem tentado pressionar o governo dos Estados Unidos a tomar medidas para influenciar o STF a decidir em favor de seu pai.
Trump tem sido receptivo.
Em 18 de julho, seu governo revogou os vistos para os EUA de Alexandre de Moraes, de “seus aliados no tribunal” e de seus familiares. A imprensa brasileira informou que os EUA pouparam das sanções os ministros André Mendonça e Nunes Marques, ambos nomeados por Bolsonaro, e o ministro Luiz Fux, que tem emitido alguns votos favoráveis ao ex-presidente no curso do processo. A mensagem foi clara: se um ministro votar contra Bolsonaro, corre o risco de ser sancionado por Trump.
Em 30 de julho, o governo dos EUA emitiu uma ordem executiva impondo tarifas de 50% ao Brasil, sem sequer fingir ter a pretensão de uma motivação econômica. A ordem argumentava que o Brasil merecia ser punido por perseguir Bolsonaro e por violações à liberdade de expressão, incluindo ações que supostamente prejudicariam empresas estadunidenses. O governo dos EUA também deturpou a Lei Magnitsky – criada para punir autoridades corruptas e responsáveis por tortura, assassinato e outras graves violações de direitos humanos – ao usá-la contra Moraes.
As alegações de Trump de que se trata de um processo motivado por razões políticas ignoram a realidade: o julgamento se baseia em provas substanciais. Na verdade, são as ações de Trump que têm motivação política e não são do interesse da justiça. Ele usou inadequadamente Lei Magnitsky na tentativa de proteger Bolsonaro, em vez de usá-la contra autoridades que são realmente responsáveis por gravíssimas violações de direitos humanos. Ao mesmo tempo, Trump tem se valido de outros instrumentos da legislação dos EUA para proteger aliados de processos judiciais, em vez de buscar responsabilizar os perpetradores de graves violações de direitos humanos. Isso inclui sancionar funcionários do Tribunal Penal Internacional, que emitiram mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e um ex-ministro da Defesa de Israel.
Além disso, a alegação de Trump de defender a liberdade de expressão soa vazia quando seu governo arbitrariamente detém pessoas sem a nacionalidade estadunidense, além de sancionar uma relatora de direitos humanos da ONU, tudo isso para retaliar aqueles defendendo os direitos humanos envolvendo a Palestina. No mais, Trump e seus aliados políticos, que incluem líderes de algumas das principais empresas de tecnologia, têm rotulado como censura qualquer tentativa de moderar a liberdade de expressão ou responsabilizar as empresas de tecnologia por suas ações e, em alguns casos, sujeitam aqueles que moderam suas plataformas a restrições de visto.
Sem dúvida, as decisões do STF afetaram a liberdade de expressão de brasileiros e brasileiras. Mas um país estrangeiro usar sanções para pressionar ministros a mudarem suas decisões corrói os direitos dos brasileiros a um judiciário independente e à igualdade perante a lei. Em contrapartida, as decisões do STF representam uma oportunidade para as pessoas no Brasil e o Congresso Nacional debaterem uma regulamentação das redes sociais que respeite estes e outros direitos.
Brasileiras e brasileiros merecem o direito de debater quais devem ser os limites razoáveis da liberdade de expressão e como garantir que as redes sociais sejam espaços seguros para todos, incluindo as minorias. Eles devem poder concordar ou discordar das decisões do Supremo Tribunal Federal ou dos projetos de lei no Congresso sem medo de que suas opiniões sejam mal utilizadas e exploradas por aqueles que querem desmantelar as instituições democráticas.
Isso fortaleceria a democracia brasileira.
*Uma versão deste artigo foi publicada no Correio Braziliense.