(Nairobi) – Um Ruandês requerente de asilo e fundador de um movimento de oposição, que foi forçosamente desaparecido pelas autoridades moçambicanas, corre o risco de ser entregue ao Ruanda, onde os seus direitos seriam violados e onde seria arbitrariamente detido e sujeito a um julgamento injusto, anunciou hoje a Human Rights Watch.
Embora o requerente de asilo, Cassien Ntamuhanga, tenha sido detido pela polícia moçambicana em 23 de Maio de 2021, as autoridades negam ter conhecimento da sua detenção e o seu paradeiro é desconhecido. As autoridades moçambicanas devem reconhecer urgentemente que Ntamuhanga está sob a sua custódia, devem revelar o seu paradeiro, permitir-lhe o acesso a um advogado, garantir que os seus direitos a um processo justo são respeitados, e prevenir qualquer tentativa de regresso forçado ao Ruanda.
“A polícia moçambicana deve proteger este requerente de asilo, que corre sérios riscos, se regressar ao Ruanda,” disse Lewis Mudge, diretor da Human Rights Watch para a África Central. “Além da injustiça, entregá-lo às forças policiais do país de onde fugiu devido a perseguição, seria uma violação das obrigações internacionais de não repulsão.”
Quatro fontes que viram Ntamuhanga pouco depois da sua detenção disseram que sete agentes moçambicanos com identificações e uniformes do SERNIC (Serviço Nacional de Investigação Criminal) levaram Ntamuhanga para a esquadra da polícia local na ilha de Inhaca. Agentes policiais mandaram os vizinhos que acompanharam Ntamuhanga até à esquadra, sair do local.
De seguida, disseram, foi transferido de barco da Ilha da Inhaca, a 37 quilómetros de Maputo, capital de Moçambique. Contaram também que havia um homem trajado à civil presente no momento da detenção e no barco. Uma fonte que o ouviu falar com Ntamuhanga disse que falavam a mesma língua, o que sugere que o homem poderá ser Kinyarwanda. A fonte disse que Ntamuhanga foi algemado e que lhe acorrentaram as pernas.
Desde a sua detenção, tanto a polícia moçambicana como o SERNIC negam ter Ntamuhanga sob custódia, apesar das várias tentativas do seu advogado e da Associação de Refugiados Ruandeses em Moçambique de localizar o seu paradeiro. No dia 28 de Maio, um porta-voz do serviço de investigação criminal disse a jornalistas, que a sua instituição “não tinha registo de qualquer operação para deter cidadãos ruandeses”. O advogado de Ntamuhanga escreveu ao procurador-geral de Maputo, mas ainda não conseguiu determinar o paradeiro do seu cliente. A Comissão Nacional de Direitos Humanos escreveu uma carta endereçada a polícia, a Procuradora-Geral da República e ao SERNIC, mas diz que ainda não obteve uma resposta.
Uma reportagem de um órgão de comunicação social local disse que Ntamuhanga foi entregue à embaixada de Ruanda em Maputo no dia 1 de Junho, mas a Human Rights Watch não foi capaz de confirmar esta informação.
Quando as autoridades privam um indivíduo da sua liberdade e se recusam a reconhecer a sua detenção ou ocultam o seu paradeiro, estão a cometer um desaparecimento forçado, que é crime ao abrigo do direito internacional e proibido em todas as circunstâncias. As pessoas responsáveis e envolvidas em atos desta natureza devem ser responsabilizadas penalmente, recordou a Human Rights Watch.
Ntamuhanga foi condenado no Ruanda após um julgamento altamente politizado, ao lado do cantor e ativista Kizito Mihigo, em Fevereiro de 2015. Escapou da prisão em Novembro de 2017 e fugiu para Moçambique. Mihigo foi perdoado em 2018, mas voltou a ser detido quando tentava fugir do país em Fevereiro de 2020 e morreu quatro dias depois, sob custódia policial em circunstâncias suspeitas.
A condenação anterior de Ntamuhanga, o destino de Mihigo e o historial do Ruanda de perseguição impiedosa a críticos e dissidentes em todo o mundo, suscitam sérias preocupações com a segurança de Ntamuhanga, disse a Human Rights Watch.
O desaparecimento de Ntamuhanga enquadra-se num padrão bem documentado de ataques a críticos, tanto no Ruanda quanto no exterior. As vítimas dos ataques no exterior tendem a ser opositores políticos ou críticos declarados do governo do Ruanda ou do próprio presidente Paul Kagame.
Os casos de maior visibilidade incluem o assassinato do ex-ministro do Interior Seth Sendashonga em 1998 e do ex-chefe dos serviços secretos externos Patrick Karegeya em 2014, bem como a tentativa de assassinato do ex-chefe do Estado-Maior do Exército Kayumba Nyamwasa em 2010, o primeiro no Quénia e os dois últimos na África do Sul. Um oficial militar do Ruanda ligado ao caso de Karegeya foi interrogado pelas autoridades moçambicanas em Janeiro de 2014.
Em Outubro de 2012, o ex-diretor do Banco de Desenvolvimento do Ruanda, Theogene Turatsinze, foi encontrado morto em Maputo, com o corpo amarrado com cordas, dois dias depois de ter sido dado como desaparecido. Um relatório do Departamento de Estado dos EUA disse que “a polícia de Moçambique indicou inicialmente o envolvimento do governo do Ruanda no assassinato antes de contactar o governo e de mudar a sua caracterização para crime comum”.
O retorno forçado ao Ruanda de um detido requerente de asilo ruandês em Moçambique, sem respeitar os aspetos mais básicos de um processo justo, constituiria uma violação da proibição legal internacional de repulsão, o retorno forçado de um indivíduo a um local onde correria um risco real de perseguição, tortura ou outros maus-tratos ou risco de vida. Ntamuhanga é um requerente de asilo registado na agência das Nações Unidas para os refugiados, a ACNUR, e aguardava a determinação do estatuto de refugiado pelas autoridades moçambicanas.
Ao abrigo da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que Moçambique e Ruanda ratificaram em 1999 e 2008, respetivamente, nenhum indivíduo deve ser enviado para um país onde existam razões substanciais para acreditar que poderá ser torturado ou maltratado. Esta obrigação foi interpretada como exigindo que os governos forneçam um sistema para os indivíduos contestarem as decisões de transferência para outro país.
Embora a determinação do estatuto de refugiado de Ntamuhanga esteja pendente, as obrigações de não repulsão são aplicáveis. As autoridades moçambicanas devem divulgar com urgência o paradeiro de Ntamuhanga.
Ntamuhanga deve ser sujeito a um procedimento formal de extradição num tribunal moçambicano, que inclua a consideração das implicações da transferência para os seus direitos humanos, o seu estatuto de requerente de asilo e o risco de abuso e de julgamento injusto que enfrenta no Ruanda, disse a Human Rights Watch.
“Está claro, pela forma como o governo tratou Ntamuhanga no passado, que ele corre o risco de ser perseguido no Ruanda e que há motivos para estar preocupado com a sua segurança em Moçambique”, disse Mudge. “As autoridades moçambicanas devem divulgar publicamente o seu paradeiro, permitir-lhe o acesso a um advogado e a visita de familiares e, se for acusado, apresentá-lo imediatamente a um tribunal.”
Perseguição Política de Ntamuhanga
Ntamuhanga é o ex-diretor da Amazing Grace, uma estação de rádio cristã local. Foi cofundador da Aliança Ruandesa para o Pacto Nacional – Abaryankuna, um movimento de oposição criado juntamente com outros jovens ruandeses, focado na reconciliação étnica para as vítimas da violência durante e após o genocídio.
Ntamuhanga, Mihigo, cantor e ativista, e Gerard Niyomugabo, que organizou discussões na rádio com Ntamuhanga sobre reconciliação étnica no Ruanda, foram detidos em 2014 após Mihigo ter lançado uma música que expressava compaixão não só pelas vítimas do genocídio de 1994, mas por todos os que morreram, "seja por genocídio, guerra, massacrados por vingança, desaparecidos num acidente ou por doença." A canção foi interpretada de forma geral como sendo um sobrevivente do genocídio tutsi a mostrar compaixão pelos hutus que foram mortos por soldados do atual partido no governo, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF) liderada por tutsis.
Ntamuhanga foi julgado num processo muito politizado e altamente mediático ao lado de Mihigo e duas outras pessoas, em 2014. Ntamuhanga foi condenado pelo Tribunal Superior de Kigali, em Fevereiro de 2015 por formar um gangue criminoso, conspiração contra o governo ou o presidente, cumplicidade num ato terrorista e conspiração de homicídio, e condenado a 25 anos de prisão.
Niyomugabo, que foi detido ao mesmo tempo que Ntamuhanga, está desaparecido desde então. Numa entrevista de Setembro de 2020, a mãe de Niyomugabo disse que teve de fugir do Ruanda porque, quando o filho desapareceu, todas as noites apareciam oficiais do exército em sua casa. Além disso, as autoridades locais mandaram-na exilar-se. Contou que antes do seu desaparecimento, Niyomugabo disse que estava ciente de que corria o risco de ser assassinado devido ao seu trabalho de reconciliação.
No julgamento, Ntamuhanga declarou-se inocente e descreveu a sua detenção de uma semana em regime incomunicável em “Kwa Gacinya”, uma esquadra de polícia que costuma servir como prisão informal no bairro de Gikondo em Kigali, após a sua detenção em Abril de 2014. Ele disse ao tribunal que, juntamente com o seu colega Niyomugabo, foi enganado pela polícia, detido e levado para Kwa Gacinya, onde descreveu ter sido acorrentado e mantido num quarto escuro. Contou ao tribunal que foi forçado a assinar uma confissão sob coação, mas o juiz indeferiu o pedido e não ordenou a abertura de uma investigação. A Human Rights Watch tem documentado dezenas de casos de detenção em regime incomunicável e de tortura em Kwa Gacinya desde 2012.
Quando questionado sobre este período de detenção incomunicável, Ntamuhanga disse numa entrevista no YouTube: “Eles disseram-nos: o que é que o governo vos fez a vocês, miúdos? O governo patrocinou a vossa educação, vocês têm bons empregos e agora metem-se a colaborar com os inimigos do país…. [Eles disseram que nos] vão reabilitar depois de confessarmos os crimes”.
O abuso descrito por Ntamuhanga coincide com os relatos de Mihigo sobre maus-tratos graves e violações dos princípios de processo justo durante o mesmo período, que Mihigo partilhou com a Human Rights Watch num áudio. Mihigo disse que foi ameaçado por altos funcionários do governo, espancado e aconselhado a pedir perdão e a declarar-se culpado.
Ntamuhanga fugiu da prisão de Mpanga no distrito de Nyanza, Província do Sul, em 31 de Outubro de 2017 e registou-se como requerente de asilo em Moçambique, em Fevereiro de 2018.
De acordo com um blogue publicado por Ntamuhanga e várias fontes próximas de si, três dos seus irmãos foram dados como desaparecidos em 2016. Um familiar disse à Human Rights Watch que continuam desaparecidos. A Human Rights Watch não foi capaz de verificar de forma independente as circunstâncias dos seus desaparecimentos.
Mihigo foi libertado em Setembro de 2018, após um perdão presidencial. Com medo de que agentes do Estado, incluindo o chefe da polícia, Dan Munyuza, que continuava a pressioná-lo, tentassem matá-lo, tentou fugir do Ruanda, em Fevereiro de 2020. A polícia declarou tê-lo encontrado morto na cela, quatro dias depois, alegando que ele “se auto-asfixiara” até à morte. As autoridades ruandesas não conduziram uma investigação fiável, independente e eficaz à sua morte suspeita sob custódia.
Sequestros e retornos forçados de refugiados do Ruanda
Várias vítimas ruandesas de ataques no exterior receberam o estatuto de refugiado no país para o qual fugiram, em reconhecimento dos riscos que enfrentaram no Ruanda. Os refugiados ruandeses ou requerentes de asilo conhecidos como opositores políticos, críticos do governo ou jornalistas que falam abertamente, correm um risco maior. O facto de refugiados ou ruandeses conhecidos e com dupla nacionalidade, terem sido vítimas destes ataques, fez crescer o medo entre os exilados ruandeses, que agora acreditam que ninguém está fora de perigo.
O caso mediático mais recente é o de Paul Rusesabagina, que era gerente do Hotel des Mille Collines, um hotel de luxo no centro de Kigali onde centenas de pessoas procuraram proteção durante o genocídio de 1994 no Ruanda. Após o genocídio, Rusesabagina fugiu do Ruanda, temendo pela sua segurança. Mais tarde, tornou-se um crítico feroz do governo do Ruanda e foi cofundador do Movimento Ruandês pela Mudança Democrática (Mouvement rwandais pour le changement démocratique, MRCD), cujo braço armado assumiu a responsabilidade de vários ataques na Província do Sul do Ruanda, desde 2018.
A detenção e prisão de Rusesabagina em Agosto de 2020, que começou como um desaparecimento forçado, cai no mesmo padrão de abuso e levanta sérias preocupações sobre se irá realmente ter direito a um julgamento justo no Ruanda. Rusesabagina, que agora é cidadão belga, vivia nos Estados Unidos quando viajou dos EUA para o Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, no dia 27 de Agosto. Desapareceu à força, na noite de 27 de Agosto ou por volta dessa altura. Em 31 de Agosto, o Gabinete de Investigação do Ruanda anunciou que tinha Rusesabagina sob custódia em Kigali, no Ruanda. A Human Rights Watch documentou várias violações dos princípios de julgamento justo desde que o seu julgamento começou, em 17 de Fevereiro de 2021.
Alguns refugiados e requerentes de asilo ruandeses enfrentaram ameaças de segurança no seu país de asilo. Em 2013, homens armados sequestraram Joel Mutabazi, um ex-guarda-costas presidencial no Ruanda com estatuto de refugiado no Uganda. Mutabazi foi levado a julgamento no Ruanda e condenado a prisão perpétua, depois de um tribunal militar decidir que Mutabazi era culpado de actos de terrorismo, formação de quadrilha armada, e outros crimes ligados a uma alegada colaboração com um grupo da oposição exilado e as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda (FDLR), um grupo armado predominantemente ruandês que opera no leste da Republica Democrática do Congo e que é parcialmente composto por pessoas que participaram do genocídio do Ruanda em 1994.
Nos últimos 10 anos, vários refugiados ruandeses e requerentes de asilo no Uganda, reportaram à Human Rights Watch, uma série de incidentes, incluindo ameaças pessoais, por parte de indivíduos que sabem ser ou que acreditam ser ruandeses, ataques às suas casas, agressões físicas, tentativas de sequestro e, nos casos mais graves, homicídios ou tentativas de homicídio. Alguns refugiados também reportaram terem sido ameaçados e intimidados por representantes diplomáticos ruandeses no Uganda.
Outro caso notável é o de Norbert Manirafasha, um ativista de oposição política e refugiado ruandês registado, que foi detido por agentes dos serviços secretos ruandeses, em Abril de 2014 em Goma, no leste do Congo, e transferido para o Ruanda no mesmo dia. No momento do seu sequestro no Congo, Manirafasha era um refugiado registado no ACNUR. Normalmente, este estatuto fornece proteção aos refugiados ao abrigo do direito internacional. Manirafasha disse à Human Rights Watch que foi torturado no campo militar de Kami, um notório centro de tortura e de interrogatório nos arredores de Kigali, e forçado a confessar que trabalhava com grupos de oposição e as FDLR. Foi condenado a prisão perpétua no Ruanda, embora tenha contado ao tribunal que foi torturado até fazer uma confissão falsa. Os juízes não descartaram a confissão, embora tenha afirmado que foi extraída sob tortura; nem ordenaram uma investigação às suas alegações.