- A pecuária ilegal devastou territórios de pequenos agricultores e povos indígenas na região amazônica, que sediará a cúpula climática COP30 este ano.
- A maior produtora de carne do mundo, a JBS, não possui um sistema para rastrear fornecedores indiretos de gado, apesar das promessas de longa data de criar um, e pode ter adquirido gado ilegal dos territórios afetados.
- O governo brasileiro precisa retomar as áreas ocupadas ilegalmente pelas fazendas de gado dessa região, e a JBS deveria cumprir suas promessas e reparar abusos de direitos humanos para os quais pode ter contribuído, mesmo que involuntariamente.
(São Paulo) – A pecuária ilegal devastou os territórios de pequenos agricultores e povos indígenas no Pará, estado que sediará a cúpula climática COP30 este ano, afirmou a Human Rights Watch em um relatório divulgado hoje. A JBS, maior produtora de carne do mundo, pode ter exportado para a União Europeia carne bovina e couro produzidos com gado proveniente de fazendas ilegais nessa região.
O relatório de 90 páginas, intitulado “Gado sujo: a exposição da JBS e da UE a violações de direitos humanos e desmatamento ilegal no Pará, Brasil”, detalha como fazendeiros se apropriaram ilegalmente de terras e devastaram os meios de subsistência dos legítimos moradores do projeto de desenvolvimento sustentável Terra Nossa e da Terra Indígena Cachoeira Seca, afetando seus direitos à moradia, à terra e à cultura. A análise da Human Rights Watch de documentos oficiais mostra que fazendas ilegais nessas áreas venderam gado para vários fornecedores diretos da JBS.
“A JBS ainda não possui um sistema para rastrear seus fornecedores indiretos de gado, apesar de ter se comprometido a implementar um já em 2011”, disse Luciana Téllez Chávez, pesquisadora sênior de meio ambiente da Human Rights Watch. “Sem ele, a empresa não pode cumprir seu compromisso de eliminar o desmatamento de sua cadeia de abastecimento até o final de 2025.”
Por meio da análise de guias de trânsito animal emitidas pelo governo do estado do Pará, a Human Rights Watch identificou cinco casos em que fazendas ilegais no Terra Nossa e na TI Cachoeira Seca forneceram gado para fazendas fora dessas áreas protegidas e, posteriormente, essas fazendas venderam gado para frigoríficos da JBS. As fazendas de gado investigadas nesses territórios são ilegais segundo a legislação federal brasileira.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), autarquia federal responsável pela reforma agrária, criou o Terra Nossa para pequenos agricultores em 2006. As famílias deveriam cultivar a terra, colher frutas e castanhas da floresta – que inicialmente constituía 80% do assentamento de 150.000 hectares – e vender seus produtos nos mercados locais.
No entanto, fazendeiros invadiram ilegalmente o Terra Nossa. Eles retaliaram violentamente contra as pessoas que se opuseram a eles. Em 2023, 45,3 por cento da área do assentamento havia sido convertida em pasto.
A partir de 2016, o INCRA fez um levantamento do assentamento e descobriu que 78,5 por cento dele estava ocupado ilegalmente. No entanto, durante anos, não tomou medidas para retomar as áreas ocupadas ilegalmente pelas fazendas. O INCRA está considerando um plano para dividir o assentamento e mudar seu status, o que provavelmente perpetuaria a impunidade dos criminosos ambientais.
Na TI Cachoeira Seca, o povo indígena Arara depende da floresta em seu território de 733.000 hectares. O governo federal é legalmente obrigado a remover os ocupantes não indígenas. Em vez disso, os fazendeiros estabeleceram mais fazendas ilegais de gado, reduzindo a disponibilidade de caça e produtos florestais, restringindo a movimentação dos povos indígenas em seu próprio território e minando seus direitos culturais. Cachoeira Seca registrou a maior área desmatada em terras indígenas na Amazônia brasileira em 2024.
A JBS não rastreia sistematicamente seus fornecedores indiretos e não pode garantir que gado ilegal não tenha entrado em sua cadeia de fornecimento, afirmou a Human Rights Watch. Não há exigência federal para rastrear o gado individualmente à medida que ele passa por várias fazendas no Brasil.
Em correspondência com a Human Rights Watch, a JBS afirmou que monitora as fazendas de seus fornecedores diretos para verificar se eles cumprem sua política de compras. A empresa também afirmou que, a partir de 1º de janeiro de 2026, será obrigatório que os fornecedores diretos disponibilizem informações sobre seus fornecedores.
O governo do Pará anunciou que estabelecerá um sistema de rastreabilidade individual de gado até 2026, e autoridades disseram à Human Rights Watch que, de modo geral, deixarão de emitir autorizações para o transporte de gado para florestas protegidas. O governo federal anunciou um plano para implementar um sistema nacional de rastreabilidade individual de gado até 2032. Dada a dinâmica interestadual do comércio de gado ilegal, uma implementação lenta do sistema federal provavelmente sabotará o progresso do controle do gado, afirmou a Human Rights Watch.
Os países da UE deveriam aplicar o Regulamento de Produtos Livres de Desmatamento a partir de janeiro de 2026. A lei proibiria a comercialização de produtos bovinos no mercado da UE se eles fossem originários de terras desmatadas após 2020 ou se a produção violasse as leis nacionais do país de origem. Os legisladores da UE estão discutindo o adiamento da aplicação da lei por um ano. Um adiamento permitiria que commodities vinculadas ao desmatamento ilegal e violações de direitos humanos continuassem entrando no mercado da UE e colocaria em dúvida o compromisso da UE de combater sua pegada global de desmatamento, afirmou a Human Rights Watch.
A Human Rights Watch analisou dados comerciais entre 2020 e 2025 e descobriu que Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Irlanda, Holanda, Espanha e Suécia importaram carne bovina dos municípios onde ficam frigoríficos da JBS identificados neste relatório, enquanto a Itália foi um dos principais destinos dos produtos de couro.
O governo brasileiro deveria retomar as áreas ocupadas ilegalmente pelas fazendas e exigir indenização contra os responsáveis pela ocupação e uso ilegais de terras nas comunidades afetadas. O governo federal também deveria acelerar a implementação e a aplicação efetiva de um sistema de rastreabilidade do gado.
A JBS deveria tomar medidas para reparar qualquer ocupação e desmatamento ilegal ou violação de direitos humanos para os quais a empresa possa ter contribuído, mesmo que involuntariamente, no Terra Nossa e na TI Cachoeira Seca.
“Combater o desmatamento e as violações de direitos humanos vinculadas com as cadeias de fornecimento de gado é uma responsabilidade compartilhada entre vendedores e compradores”, disse Téllez Chávez. “O Brasil e a UE deveriam trabalhar juntos para proteger a floresta e defender os direitos das comunidades que dependem dela.”