Exmo. Procurador-geral da República, Dr. Paulo Gonet,
Escrevemos para compartilhar nossa preocupação de longa data com o alto nível de violência policial no Brasil. Instamos a Procuradoria-Geral da República a buscar medidas para garantir responsabilização e para defender o Estado de Direito. Um passo muito importante seria a aprovação e a implementação da Proposta de Resolução nº 1.00922/2023-01 sobre a investigação de morte, violência sexual, tortura, desaparecimento forçado e outros abusos cometidos pelas forças de segurança, que está em análise no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Seria fundamental que V. Exa. manifeste apoio e promova a resolução. Preocupa-nos que a proposta ainda não tenha sido aprovada, mais de um ano após ter sido apresentada no CNMP.
A Human Rights Watch é uma organização não governamental internacional que investiga e documenta abusos de direitos humanos em todo o mundo. Ao conduzir nossas pesquisas em vários países, aplicamos o direito internacional de direitos humanos. Trabalhamos com governos e com a sociedade civil para defender os direitos humanos e o Estado de Direito.
Violência policial no Brasil
Há décadas temos realizado pesquisas minuciosas sobre a violência das forças de segurança no Brasil, onde policiais matam mais de 6.000 pessoas a cada ano desde 2018, sendo que pessoas negras têm três vezes mais chances de serem vítimas do que pessoas brancas.
Descobrimos que embora algumas mortes decorrentes de ação policial ocorram em legítima defesa, muitas resultam do uso ilegal da força. Abusos policiais têm um grande impacto não apenas para as vítimas e suas famílias, mas também para a própria força policial. Eles colocam em risco a vida de todos os policiais que atuam em áreas de alta criminalidade, destroem sua relação com as comunidades e contribuem para altos níveis de estresse psicológico, prejudicando a performance no trabalho.
Um problema fundamental que permite a continuidade do ciclo de violência é a impunidade generalizada, que está enraizada em investigações falhas. Documentamos dezenas de casos em que policiais intimidaram testemunhas ou manipularam e destruíram evidências, inclusive levando cadáveres a hospitais, alegando falsamente que as vítimas estavam vivas, e removendo suas roupas. Identificamos também falhas nas investigações da polícia civil sobre mortes cometidas por policiais, inclusive sem a perícias ou perícias ruins, e oitivas inadequadas de policiais envolvidos na ação.
A importância da Proposta de Resolução nº 1.00922/2023-01
Está claro que as investigações da polícia civil sobre abusos cometidos por policiais civis ou militares carecem de eficácia e da necessária independência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu o Ministério Público como o órgão independente que deveria investigar as mortes e outros abusos cometidos pela polícia no Brasil. Da mesma forma, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin decidiu que o Ministério Público deve conduzir suas próprias investigações em casos de suspeita de má conduta policial. No final desta carta, incluímos uma discussão mais detalhada sobre essas decisões.
A aprovação da Proposta de Resolução do CNMP seria um passo fundamental para a implementação dessas decisões, buscando garantir investigações imediatas, completas e independentes por promotores sobre abusos da polícia. Além disso, a resolução avançaria sobre o controle externo da atividade policial, complementando e ampliando as diretrizes constantes na Resolução n° 279/2023 do CNMP.
Ficamos muito satisfeitos em ver que a Proposta de Resolução incorporou muitas das recomendações que apresentamos em uma carta de 2023 enviada ao então Procurador-Geral Augusto Aras, especialmente ao estabelecer que os promotores conduzirão as investigações em todos os casos de mortes por forças de segurança. A Proposta de Resolução também prevê que as investigações sigam padrões internacionais, incluindo o Protocolo de Minnesota Sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas; e que as vítimas e seus familiares possam acompanhar as investigações.
Também ficamos satisfeitos em saber que, paralelamente, o CNMP estabeleceu em julho de 2024 um grupo de trabalho para estudar o enfrentamento ao racismo na atividade policial, o que também era uma de nossas recomendações.
Preocupa-nos, entretanto, que a Proposta de Resolução n° 1.00922/2023-01 ainda não tenha sido aprovada, mais de um ano após ter sido apresentada na 16ª Sessão Ordinária do CNMP, em 24 de outubro de 2023.
Entendemos que cabe ao relator levar a resolução para votação no plenário do CNMP. Solicitamos ao senhor, como presidente do CNMP, que manifeste seu apoio à resolução e promova sua aprovação.
Recomendações adicionais
Além das disposições incluídas na Proposta de Resolução, também incentivamos a Procuradoria-Geral da República a promover esforços para garantir que as forças de segurança cumpram seu dever de proteger a população dentro dos limites da lei. Para que isso aconteça, a Human Rights Watch recomenda aos Ministérios Públicos Federal e Estaduais:
Garantir investigações independentes:
- Exigir que os ministérios públicos forneçam mecanismos acessíveis para que a população possa denunciar má conduta e abusos policiais, inclusive de forma anônima, e obter informações sobre as diligências adotadas a partir da denúncia.
- Instar os ministérios públicos estaduais e federal a contratem seus próprios peritos forenses, em tempo integral, que sejam independentes da polícia civil, para ajudar promotores a avaliar a qualidade do trabalho forense, participar da reconstrução da cena do crime e conduzir sua própria análise forense de forma independente, entre outras tarefas.
- Apoiar propostas para que os órgãos estaduais de perícia forense sejam autônomos em relação à polícia, a fim de garantir a independência de seu trabalho e aumentar sua eficácia.
Estabelecer unidades especializadas de promotores:
- Instar procuradores-gerais de justiça nos estados a estabelecerem unidades de promotores com recursos suficientes, dedicada a desenvolver e fazer cumprir protocolos policiais para prevenir abusos, e investigar e processar abusos policiais quando ocorrerem. Integrantes dessas unidades poderiam adquirir expertise nesse tipo de casos, analisando padrões de abuso e reconhecendo o modi operandi; além de identificar e investigar batalhões e unidades de polícias específicos e agentes que individualmente sejam responsáveis por ocorrências de mortes; e proteger promotores naturais do risco de retaliação por investigações de abusos de policiais na sua jurisdição.
Exercer controle externo eficaz sobre as polícias civil e militar:
- Exigir que promotores estaduais revisem os protocolos e treinamento de polícias estaduais, inclusive sobre o uso da força, e garantam que estejam de acordo com as normas brasileiras e internacionais de direitos humanos.
- Exigir que promotores trabalhem com os comandos das polícias e os secretários de segurança pública para criar diretrizes para prevenir que policiais conduzam operações de vingança após a morte de um policial.
- Revisar as condições de trabalho de policiais e trabalhar com as forças de segurança para lidar com os altos níveis de estresse, inclusive assegurando que os comandos das polícias forneçam apoio psicológico adequado a servidores por meio de especialistas em saúde mental próprios da polícia e externos.
- Assegurar a implementação da Resolução n° 279/2023 sobre controle externo da atividade policial.
Promover transparência e responsabilização:
- Publicar regularmente relatórios sobre mortes decorrentes de ação policial e abusos, contendo dados desagregados por raça e outros parâmetros e informações detalhadas sobre as ações investigativas e judiciais tomadas, conforme determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Nova Brasília.
- Instar os estados e as forças policiais a reformarem os sistemas disciplinares para garantir a independência e a transparência.
- Instar os estados a fortalecerem ouvidorias independentes que supervisionem as polícias, inclusive recebendo denúncias de abusos, revisando a conduta policial, e contribuindo para mudanças de políticas e a melhoria das relações entre polícia e comunidade. Os estados deveriam fornecer recursos suficientes às ouvidorias para o cumprimento do seu mandato e acesso a todas as informações necessárias sobre as atividades policiais.
- Instar todos os estados a implementarem o uso de câmeras corporais nos uniformes policiais – começando em batalhões com maiores indicadores de letalidade policial – e a elaborar protocolos e procedimentos operacionais que promovam a transparência e, ao mesmo tempo, protejam a privacidade durante o uso das câmeras corporais. As gravações podem fornecer aos investigadores informações sobre a conduta policial, inclusive em relação ao uso da força; ajudar a proteger outros policiais da pressão de policiais abusivos para participar de acobertamentos; e proteger policiais de acusações falsas. As filmagens das câmeras devem ser disponibilizadas diretamente aos promotores sem intermediação das forças de segurança. Cumprimentamos a recomendação da Procuradoria-Geral da República ao Ministro da Justiça para que estabeleça regras que imponham medidas disciplinares aos policiais que não usarem adequadamente as câmeras corporais ou as adulterarem.
Contribuir no enfrentamento ao racismo sistêmico na aplicação da lei:
- Recomendar que as forças policiais estaduais estabeleçam grupos de trabalho envolvendo a sociedade civil e especialistas para examinar e endereçar o racismo sistêmico no contexto da aplicação da lei, inclusive por meio da avaliação de políticas, práticas, cultura institucional e treinamentos.
- Apoiar o novo grupo de trabalho do CNMP sobre enfrentamento ao racismo, assim como o grupo de trabalho interinstitucional do Ministério Público Federal sobre o mesmo tema. Em consulta com a sociedade civil, especialistas e autoridades, esses grupos de trabalho deveriam analisar a questão racial na atuação das polícias, dos ministérios públicos e de outros atores do sistema de justiça, por meio da avaliação de políticas, práticas, cultura institucional e treinamentos.
Garantir a conformidade com os protocolos do CNMP:
- Fornecer a promotores, peritos e outros funcionários treinamento adequado sobre controle externo eficaz das atividades policiais e sobre investigações de mortes e violações de direitos humanos decorrentes de ação policial, de acordo com as resoluções do CNMP, o Protocolo de Minnesota e outras normas internacionais.
- Estabelecer mecanismos para monitorar o cumprimento por promotores das resoluções e protocolos do CNMP sobre investigações de mortes e outras violações de direitos humanos decorrentes de ação policial, e sobre o controle externo, e instruir as corregedorias dos ministérios públicos estaduais a fazer cumprir essas diretrizes.
Decisões relevantes da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o Brasil falhou em garantir investigações independentes e imparciais sobre as operações policiais realizadas em Nova Brasília, no Rio de Janeiro – caso em que a Human Rights Watch foi uma das peticionárias iniciais. A Corte constatou que a atuação da polícia estava “coberta de omissões e negligência”; que os investigadores não realizaram “as mínimas diligências necessárias”, suas ações foram “tendenciosas” e careciam de “independência concreta”
A Corte determinou que, em casos de mortes, tortura ou violência sexual cometidas pela polícia, “se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado”.
Em uma resolução de 2021 sobre o cumprimento das disposições estabelecidas na sentença, a Corte Interamericana afirmou que tanto o Estado brasileiro quanto os representantes das vítimas concordaram que o Ministério Público seria o órgão independente que deveria investigar mortes e outros abusos cometidos por policiais no Brasil. Além disso, a Corte deixou claro que este órgão independente “deve ter não apenas a faculdade, mas também a obrigação de levar a cabo as referidas investigações, de forma autônoma e sem a participação das forças policiais envolvidas no incidente”.
Em 2023, a Corte emitiu duas novas decisões que consideraram o Brasil responsável por graves violações de direitos humanos cometidas pela polícia e reiterou o pedido de investigações independentes. No caso Honorato, por exemplo, que envolveu a execução extrajudicial de 12 pessoas no estado de São Paulo em 2002, a Corte concluiu que as forças policiais e outras autoridades agiram “com tamanho grau de negligência” que levou à conclusão de que buscavam “impedir a investigação” e garantir “absoluta impunidade”.
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal afirmou que a Constituição Federal incumbe o Ministério Público de garantir a responsabilização por abusos policiais. Em uma decisão preliminar de 2020, o ministro Edson Fachin considerou que as investigações da polícia civil sobre abusos cometidos por policiais não atendem “à exigência de imparcialidade, reclamada pelos tratados internacionais de direitos humanos”, ressaltando que o Ministério Público deve conduzir suas próprias investigações em casos de suspeita de conduta ilegal de policiais.
O ministro Fachin decidiu: “Sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal, a investigação será atribuição do órgão do Ministério Público competente. O exercício dessa atribuição deve ser ex officio e prontamente desencadeada, o que em nada diminui os deveres da polícia de enviar os relatórios sobre a operação ao parquet e de investigar, no âmbito interno, eventuais violações.”
Um chamado à ação
O Ministério Público tem um papel fundamental a desempenhar para interromper um ciclo de violência e impunidade que prejudica a segurança pública e coloca em risco a vida tanto da população quanto de policiais. Esperamos que essas recomendações possam contribuir com os esforços da sua instituição para implementar as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, prevenir abusos de direitos humanos e, quando eles acontecerem, garantir a responsabilização.
Estamos à sua disposição para quaisquer informações adicionais que possa precisar.
Atenciosamente,
César Muñoz
Diretor da Human Rights Watch no Brasil