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Brasil: Possível Destruição de Provas pela Polícia do Rio no Caso do Fallet

Peritos Forenses Consideram Autópsias Totalmente Inadequadas

(São Paulo, 03 de fevereiro de 2020) - Dois pareceres de peritos forenses internacionais indicam a possível destruição de evidências pela polícia em um caso no qual nove pessoas foram mortas em uma casa durante uma operação no Rio de Janeiro em 8 de fevereiro de 2019, afirmou hoje a Human Rights Watch. As análises dos peritos encomendadas pela Human Rights Watch também apontam para outras falhas graves na coleta e preservação de evidências-chave no caso.

Os pareceres, baseados em análises independentes e detalhadas dos laudos de necrópsia de nove das 13 pessoas que a polícia matou naquele dia, sugerem que a polícia militar pode ter levado os corpos para o hospital, fingindo que precisavam mover as vítimas para tentar salvar suas vidas. Há mais de uma década a Human Rights Watch têm documentado casos semelhantes de "falsos socorros" no Rio de Janeiro, nos quais a polícia usa essa armadilha para destruir provas da cena do crime e dificultar investigações.

“As autoridades do estado do Rio de Janeiro precisam interromper a prática de ‘falsos socorros’ exigindo que, como regra geral, a polícia chame os serviços médicos, para levar vítimas de tiroteiospara hospitais e punindo policiais que destruam propositalmente evidências da cena do crime”, disse José Miguel Vivanco, diretor da Divisão das Américas na Human Rights Watch.

A Human Rights Watch encaminhou os dois pareceres dos peritos internacionais ao Ministério Público do estado do Rio de Janeiro no dia 3 de fevereiro  de 2020. A alteração e destruição de provas, se comprovadas, constituem crime de fraude processual nos termos da lei brasileira, puníveis com até quatro anos de prisão.

Em 8 de fevereiro de 2019, a polícia militar do estado do Rio de Janeiro conduziu uma operação nas comunidades do Fallet, Fogueteiro e Prazeres, deixando 13 pessoas mortas. Policiais militares disseram que abriram fogo depois que suspeitos dispararam contra eles. A polícia não informou nenhum ferimento de militares.

Nove das vítimas, oito homens negros e um jovem negro de 16 anos, foram mortos na mesma casa pelo Batalhão de Choque, unidade especializada da polícia militar do Rio de Janeiro.

Buracos de bala na parede e sangue no chão de uma casa na comunidade do Fallet, no Rio de Janeiro, depois que a polícia matou nove homens no local, em 8 de fevereiro de 2019. © 2019 Thatiana Gurgel, Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro
A Human Rights Watch forneceu cópias dos laudos das necrópsias das nove vítimas ao Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, na sigla em inglês) e à Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG, na sigla em espanhol), cujos peritos realizaram análises pro bono. A Human Rights Watch não conseguiu obter os laudos das necrópsias das outras quatro vítimas, as quais a polícia civil investigava separadamente.

Ainda que tenham apontado que a qualidade das autópsias era extremamente abaixo do padrão, impossibilitando concluir definitivamente que todas as vítimas teriam morrido no local, os especialistas do Grupo Independente de Especialistas Forenses (IFEG, na sigla em inglês) do IRCT constataram que as vítimas sofreram múltiplos ferimentos a bala e traumatismos graves. Os peritos relataram que essas lesões "podem levar à morte rapidamente" e, em um caso, eram tão graves que " era altamente provável que a morte tivesse sido instantânea".

Todas as nove vítimas tiveram ferimentos a bala nos pulmões e oito tiveram ferimentos no coração, entre outras lesões, segundo as autópsias. Policiais militares disseram aos investigadores da polícia civil que usaram fuzis durante a operação. Os fuzis produzem muito mais danos do que pistolas dada a maior velocidade dos projéteis.

Por exemplo, F.G.A., de 21 anos, recebeu três tiros à curta distância (dois na cabeça e um no corpo), bem como quatro outros tiros em outras partes do corpo. O crânio de F.G.A. foi fraturado, seus vasos sanguíneos do pescoço destruídos e seu coração, pulmão, diafragma, fígado, estômago e intestino foram perfurados com balas, de acordo com a autópsia. Um vídeo gravado no hospital e uma foto incluída no inquérito  mostravam F.G.A. com o tronco aberto e os intestinos fora do corpo.

No entanto, policiais militares disseram aos investigadores da polícia civil que F.G.A. e as outras oito vítimas estavam vivas quando as levaram ao Hospital Municipal Souza Aguiar, em um esforço para salvá-las. As vítimas já estavam todas mortas quando chegaram no hospital.

Policiais militares sentam-se com os pés em cima do que parece ser o corpo de uma ou mais vítimas mortas pela polícia no Rio de Janeiro, em 8 de fevereiro de 2019. © 2019 Foto cedida pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro.
A mãe de uma das vítimas disse à Defensoria Pública que viu uma caminhonete da polícia sair da casa onde ocorreu o tiroteio, com o que ela acreditava serem os cadáveres na caçamba e policiais sentados em cima deles. Seu testemunho parece ser corroborado por um vídeo gravado por um morador e duas fotos que mostram duas caminhonetes da polícia com policiais sentados na parte de trás, com os pés em cima do que parece ser corpos embrulhados.

Um resumo do caso escrito e incluído no inquérito pela polícia civil, obtido pela Human Rights Watch, afirma ainda que “os cadáveres foram socorridos para o Hospital Souza Aguiar”.

No entanto, a polícia militar e a polícia civil encerraram suas investigações sobre o caso no ano passado, depois de concluir que não havia provas de que os policiais teriam cometido algum crime. O Grupo de Ação Especializada em Segurança Pública (GAESP), unidade especializada do Ministério Público que investiga abusos policiais, instaurou seu próprio Procedimento Investigatório Criminal (PIC) e ainda precisa decidir se apresenta alguma denúncia ou pede a um juiz que arquive o caso.

Os investigadores de polícia isentaram os policiais militares com base em investigações com falhas muito graves, disse a Human Rights Watch. Os laudos da necrópsia revelam que a polícia não solicitou estudo residuográfico das mãos das vítimas, crucial para verificar se elas realmente abriram fogo contra os policiais, como alegaram os policiais militares. Os laudos da necrópsia também mostram que o perito legista do Rio não examinou as roupas das vítimas,  fonte importante de informações forenses para entender as circunstâncias da morte.

Os peritos forenses internacionais identificaram outras graves omissões e erros nos laudos de necrópsia. Os três peritos do IFEG concluíram que as autópsias não atendiam aos padrões profissionais e científicos mínimos devido a sua "absoluta falta de qualidade".

Em declarações à Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro e à Defensoria Pública, a mãe de uma das vítimas disse que os homens que estavam na casa tentaram se render à polícia e pediram ajuda antes de serem mortos. Parentes também acusaram a polícia de torturar as vítimas.

Os peritos internacionais não conseguiram chegar a conclusões sobre as circunstâncias do tiroteio e sobre a possibilidade de tortura devido à baixa qualidade das autópsias, que não fornecem um "exame externo e documentação das lesões adequados", segundo os especialistas do IFEG. Eles apontaram que as autoridades não seguiram procedimentos de investigação de acordo com o padrão internacional para casos em que há alegação de tortura ou para mortes decorrentes de operação policial.

"As famílias das pessoas que foram mortas há quase um ano pela polícia na comunidade do Fallet têm o direito de saber o que realmente aconteceu naquele dia", disse José Miguel Vivanco. "O Ministério Público deveria apurar qualquer tentativa de destruir evidências e, se assim comprovado, apresentar denúncia contra os responsáveis, além de garantir que as falhas flagrantes e evidentes na investigação deste caso não ocorram novamente."

 

Falsos socorros

A Human Rights Watch tem documentado casos de “falsos socorros”mais de uma década no Rio de Janeiro. A polícia frequentemente afirma levar pessoas atingidas por seus disparos a hospitais em uma tentativa de prestar socorro, e essas pessoas chegam mortas. No entanto, a polícia militar, em geral, não leva vítimas de acidentes de trânsito a hospitais; em vez disso, chama os serviços de emergência médica, segundo disseram à Human Rights Watch policiais militares e a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro.

Essa diferença de procedimento indica que o objetivo de mover corpos é destruir evidências e dificultar as investigações em relação às mortes causadas pela ação policial, disse a Defensoria Pública à Human Rights Watch.

No estado de São Paulo, o secretário de segurança pública adotou uma resolução em 2013, e o comandante da polícia militar emitiu um protocolo no mesmo sentido, que obrigam a polícia a acionar os serviços de emergência ao encontrar qualquer pessoa gravemente ferida, mesmo se baleada pela polícia. O policial militar só pode levar a pessoa ferida a um hospital se não houver serviço de emergência disponível ou se autorizado pelo Centro de Operações da Polícia Militar (COPOM) quando o tempo de resposta dos serviços de emergência for considerado muito longo.

O secretário de segurança pública à época disse que a resolução causou uma redução de 40% nas mortes por policiais nos primeiros três meses de 2013 em São Paulo. Mas a secretário deixou o posto e a implementação da resolução apresenta falhas, disse o Ouvidor da Polícia de São Paulo, Benedito Domingos Mariano, à Human Rights Watch. Benedito disse que a resolução, que também estabelece a preservação estrita do local do crime, "é importante", mas precisa ser aplicada.

Falhas nas autópsias

O mesmo perito legista da polícia civil do Rio de Janeiro realizou todas as nove autópsias em 9 de fevereiro de 2019, um dia após o tiroteio.

A Human Rights Watch forneceu cópias dos laudos de necrópsia aos peritos do IFEG e a um perito da FAFG. O IFEG e a FAAG conduziram suas análises separadamente, mas os dois concluíram que as autópsias foram deficientes.

Por exemplo, os laudos de necrópsia dizem que a análise de resíduos de pólvora nunca foi realizada porque os investigadores da polícia civil não a solicitaram. “A falta deste procedimento fundamental é inaceitável e uma forte limitação para sustentar conclusões”, disseram os três especialistas do IFEG.

Os laudos da necrópsia também alegam que o exame das roupas não era de "interesse forense", uma declaração contestada pelos peritos internacionais. Os especialistas do IFEG apontaram que a preservação e a análise de roupas são de especial importância para estimar a distância dos disparos e outras circunstâncias da morte.

Alguns vídeos e uma foto dos corpos, fornecidas pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro à Human Rights Watch, mostram as roupas dos indivíduos sendo removidas no hospital, onde podem sofrer contaminação e provas podem se perder, segundo os peritos forenses internacionais. Em lugar disso, o perito legista deveria ter examinado os corpos com a roupa para procurar com cuidado qualquer vestígio de evidências, inclusive resíduo de pólvora nas roupas.

Os laudos da necrópsia não incluem uma descrição adequada das lesões externas e internas, afirmaram os peritos da FAAG e do IFEG. Além disso, a escassa informação incluída pelo perito legista era por vezes parcial ou mesmo contraditória.

No caso de A.L.P.D., de 38 anos, o laudo da necrópsia mencionava uma ferida no tornozelo direito, mas não fornecia descrição. No caso do R.S.S., de 18 anos, o laudo primeiro diz não haver fraturas no crânio nem sangramento interno nos músculos temporais; mas depois afirma que a causa da morte foi tiros que atingiram o crânio, a pelve, não descrita na autópsia, e as costas. E no caso de C.A.J.C., de 26 anos, a autópsia menciona uma lesão na região escapular direita, mas o diagrama apresenta a lesão na região escapular esquerda.

Os peritos forenses internacionais também destacaram a péssima qualidade das fotografias dos feridos, a falta de fotografias dos projeteis encontrados nos corpos e a falha em recuperar todos os projéteis ou em realizar radiografia dos corpos para facilitar a localização de projéteis.

O perito legista do Rio de Janeiro concluiu uma autópsia em apenas 10 minutos e as outras oito entre 30 e 40 minutos, de acordo com os laudos. Isso é tempo insuficiente para autópsias adequadas, especialmente as complexas que envolvem múltiplas lesões traumáticas, como neste caso, concluíram, separadamente, os especialistas internacionais.

O especialista do FAFG descreveu as autópsias como "incompletas" e os especialistas do IFEG disseram que estão "muito abaixo dos padrões mínimos aceitáveis" por causa de "múltiplas insuficiências e deficiências substanciais e significativas". Os peritos do IFEG acrescentaram que as autópsias "representam uma violação grave e flagrante da leges artis dos exames post-mortem”.

Normas internacionais para autópsias

O padrão internacional para a realização de autópsias em casos de mortes causadas por agentes estatais ou grupos paramilitares é definido pelo Manual das Nações Unidas sobre Prevenção Eficaz de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias, conhecido como Protocolo de Minnesota. Esse protocolo fornece diretrizes detalhadas sobre os padrões para fotografias, radiografias, descrições de lesões externas e a trajetória de projéteis, dissecção de tecidos, análise de vestígios em roupas e na pele, detecção de resíduos de disparos de armas de fogo nas mãos das vítimas, entre outros procedimentos necessários.

Em maio de 2019, a Human Rights Watch pediu às autoridades o protocolo para a realização de autópsias no Rio de Janeiro, por meio da Lei de Acesso à Informação. A diretora do Instituto de Medicina Legal, instituição que faz parte da polícia civil, respondeu em julho que ainda estava elaborando o protocolo. Em dezembro, a Human Rights Watch solicitou novamente o protocolo, mas o Instituto simplesmente respondeu que realiza autópsias de acordo com a legislação brasileira.

Os peritos forenses internacionais

Djordje Alempijevic, Duarte Nuno Vieira e Antti Sajantila revisaram as autópsias por parte do IFEG, e José Mario Nájera Ochoa por parte da FAFG.

Alempijevic, professor da Universidade de Belgrado, trabalhou em exumações na ex-Iugoslávia, coletou evidências forenses sobre tortura na Federação Russa, as quais foram submetidas como evidência ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e participou de várias missões como membro do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura.

Sajantila, professora da Universidade de Helsinque, foi consultora da Comissão de Verdade e Reconciliação no Peru, trabalhou na identificação de corpos de militares finlandeses mortos na Segunda Guerra Mundial e já escreveu mais de 200 publicações científicas.

Vieira, professor da Universidade de Coimbra e da Universidade da Beira Interior, é presidente do Conselho Consultivo Científico do Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional e presidente da Rede Ibero-Americana de Medicina Forense, e publicou mais de 350 artigos científicos e tem 13 livros editados ou co-editados.

Nájera Ochoa, assessor do Ministério Público da Guatemala, forneceu análises forenses em relação a casos em El Salvador, Nicarágua, México e perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

O IFEG é um organismo internacional de 39 especialistas forenses independentes de destaque, reconhecidos como líderes globais em investigação médico-legal e fornecem assistência técnica e expertise a muitos Estados, órgãos regionais e intergovernamentais e à sociedade civil. A FAFG é uma organização científica não governamental que recuperou os restos mortais de mais de 8.000 vítimas da guerra civil da Guatemala (1960-1996) e identificou mais de 3.000.

Recomendações

  • O GAESP, unidade especializada do Ministério Público do estado do Rio de Janeiro que investiga abusos policiais, deveria investigar qualquer tentativa para alterar ou destruir provas no caso do Fallet e, se comprovadas, apresentar denúncia contra os responsáveis. O GAESP deveria, ainda, examinar as graves falhas na investigação policial do caso e garantir que elas não ocorram novamente, exercendo o controle externo eficaz sobre as investigações da polícia civil sobre mortes por policiais. O Ministério Público deveria, ainda, responder a falhas de investigação exercendo pressão institucional sobre a polícia civil, acionando a corregedoria da polícia civil e processando criminalmente os casos de prevaricação.
  • O governador do estado do Rio de Janeiro deveria adotar uma resolução que estabeleça que, como regra geral, os serviços de emergência em saúde; e não a polícia devem levar ao hospital pessoas feridas pela polícia, com exceções muito limitadas quando o resgate por serviços médicos não seja viável. A resolução também deve exigir que polícia e os serviços médicos de emergência ajam de forma coordenada para assegurar a disponibilidade de socorro antes de realizar operações policiais em comunidades, as quais frequentemente resultam em mortes. Além disso, a resolução deve estipular que as roupas das vítimas sejam preservadas pela polícia e por funcionários da área da saúde como evidência.
  • O secretário da polícia civil do estado do Rio de Janeiro deveria criar um protocolo para a realização de autópsias em casos de mortes decorrentes de intervenção policial ou grupos criminosos com vínculos com agentes estatais, como as chamadas “milícias” do Rio, em conformidade com o Protocolo de Minnesota. O governo do estado do Rio de Janeiro deveria fornecer financiamento adequado para que o protocolo seja implementado.
  • A corregedoria da polícia civil deveria apurar as falhas na investigação do caso Fallet, incluindo as graves omissões e erros nas autópsias, e punir os responsáveis.

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