(Nova York, 7 de dezembro, 2022) – As forças de segurança salvadorenhas têm cometido amplas violações de direitos humanos desde que, no final de março de 2022, foi implementado um estado de exceção, em resposta a um aumento de atos de violência por grupos criminosos, afirmam a Human Rights Watch e a Cristosal em um relatório conjunto divulgado hoje.
O relatório de 98 páginas, em inglês “‘Podemos prender quem quisermos’: Violações Generalizadas de Direitos Humanos sob o 'Estado de Exceção' de El Salvador”, documenta detenções arbitrárias em massa, tortura e outras formas de maus-tratos contra pessoas detidas, desaparecimentos forçados, mortes de pessoas sob custódia do Estado e processos criminais abusivos. O desmantelamento da independência judicial promovido pelo presidente Nayib Bukele desde que assumiu o cargo em meados de 2019, possibilitou essas violações de direitos humanos.
“Forças de segurança salvadorenhas têm cometido violações de direitos humanos de forma generalizada em comunidades em situação de vulnerabilidade, em nome da segurança pública”, disse Juanita Goebertus, diretora para as Américas da Human Rights Watch. “Para acabar com a violência desses grupos criminosos e com as violações de direitos humanos, o governo de El Salvador deveria substituir o estado de exceção por uma política de segurança pública efetiva, que respeite direitos e que garanta aos salvadorenhos a segurança que tanto merecem.”
Desde que o estado de exceção foi decretado, policiais e soldados realizaram centenas de operações indiscriminadas, principalmente em bairros de baixa renda, prendendo mais de 58.000 pessoas, incluindo mais de 1.600 crianças e adolescentes. Os policiais frequentemente têm como alvo comunidades de baixa renda onde as pessoas sofrem, há anos, com a insegurança e a falta de oportunidades econômicas e educacionais.
Entre março e novembro, a Human Rights Watch e a organização não governamental Cristosal entrevistaram mais de 1.100 pessoas dos 14 departamentos que compõem El Salvador, inclusive durante uma visita da Human Rights Watch ao país em outubro. Entre as pessoas entrevistadas estão incluídas vítimas de abuso, seus parentes e advogados, testemunhas e funcionários governamentais. Os pesquisadores também consultaram os processos de casos relevantes, registros médicos e atestados de óbito, e em alguns casos consultaram peritos forenses internacionais do Independent Forensic Expert Group (em português, Grupo de Peritos Forenses Independentes).
A Human Rights Watch e a Cristosal constataram que policiais e soldados cometeram violações semelhantes repetidamente, em todo o país e ao longo de vários meses. As políticas oficiais e as declarações das autoridades governamentais de alto escalão criaram, em alguns casos, incentivos para as violações, ao exigir, por exemplo, por vários meses, que policiais prendessem um determinado número de pessoas diariamente.
O presidente Bukele tem apoiado publicamente as forças de segurança e tentado intimidar os poucos juízes e promotores independentes restantes no país, que poderiam investigar tais violações. Ele também tem feito declarações que desumanizam as pessoas detidas e suas famílias e estigmatizado jornalistas independentes e grupos da sociedade civil que documentam abusos.
As autoridades salvadorenhas não relataram nenhum progresso na investigação de violações de direitos humanos cometidas durante o estado de exceção. As detenções massivas e indiscriminadas levaram à prisão de centenas de pessoas sem conexões aparentes com os delitos dos grupos criminosos. Em muitos casos, as detenções pareciam se basear na aparência e origem social dos detidos ou em evidências questionáveis. Os policiais e os soldados não mostravam às pessoas um mandado de busca e apreensão, e raramente as informavam, ou às suas famílias, das razões da detenção.
Em um caso, a polícia deteve um professor e dono de táxis de 45 anos no lugar onde administrava o seu negócio no departamento de San Salvador. Antes de entrar na prisão de Izalco, os policiais o forçaram a se ajoelhar no chão por cerca de duas horas, sob o sol, e se agachar 25 vezes nu. Segundo seu relato aos pesquisadores, os guardas da prisão lhe disseram: “Bem-vindo ao inferno”.
Enquanto os detidos caminhavam para suas celas, os policiais ficavam de ambos os lados e os espancavam, disse ele. A cela tinha capacidade para 30 pessoas, mas acomodava 125. Os guardas disseram aos detidos que eles não podiam falar ou rezar e lançavam gás lacrimogêneo na cela toda vez que alguém desobedecia. Ele foi liberado sob fiança em 22 de setembro.
Em alguns casos, os oficiais se recusaram a fornecer informações sobre o paradeiro dos detidos as suas famílias, o que constitui desaparecimento forçado de acordo com o direito internacional.
Reiteradamente juízes e promotores violaram garantias do devido processo legal definidas pelo direito internacional, violando os direitos humanos dos detidos e dificultando, quando não impossibilitando, sua adequada defesa durante processos criminais. As audiências eram realizadas em grupos de até 500 detidos, e mais de 51.000 pessoas foram presas provisoriamente sob leis recém aprovadas que violam o direito internacional dos direitos humanos.
A população carcerária aumentou de 39.000 em março de 2022 para cerca de 95.000 em novembro, mais de três vezes a capacidade oficial. Milhares foram mantidos incomunicáveis por semanas ou meses, ou só foram autorizados a ver seus advogados por alguns minutos antes de suas audiências.
Algumas das poucas pessoas libertadas relataram condições desumanas e, em alguns casos, tortura e outras formas de maus-tratos. Noventa pessoas detidas durante o estado de exceção morreram enquanto estavam sob custódia, em circunstâncias que ainda não foram devidamente investigadas.
Existem sérias razões para questionar a eficácia a longo prazo das medidas de segurança implementadas pelo presidente Bukele, disseram a Human Rights Watch e a Cristosal. No passado, os grupos criminosos se aproveitaram do encarceramento em massa e usaram as prisões para recrutar novos membros e consolidar seu controle territorial fora dos centros de detenção. O fracasso em investir recursos significativos em políticas de prevenção e reintegração, bem como em lidar com economias ilegais que permitem que os grupos criminosos prosperem, contribuíram para ciclos prolongados de violência. Por sua vez, as tréguas anteriores entre o governo e esses grupos muitas vezes causaram apenas uma redução de mortes no curto prazo, seguida por aumentos na violência relacionada às facções.
O governo de Bukele e a Assembleia Legislativa deveriam adotar medidas sustentáveis e que respeitem direitos humanos para desaparelhar os grupos criminosos e proteger a população de seus abusos, disseram a Human Rights Watch e a Cristosal. Isso inclui combater as causas subjacentes da violência das facções, incluindo altos níveis de pobreza e exclusão social, e conduzir processos criminais estratégicos focados em responsabilizar líderes desses grupos e investigar crimes violentos.
A administração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e a União Europeia deveriam reunir apoio multilateral, inclusive de governos da América Latina, para que haja pressão e a devida atenção à situação em El Salvador, inclusive no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Os governos estrangeiros e as instituições financeiras internacionais, em particular o Banco Centro-Americano de Integración Económica (BCIE), deveriam suspender os empréstimos existentes que beneficiam entidades governamentais diretamente envolvidas em abusos de direitos humanos, incluindo a Polícia Nacional Civil, as Forças Armadas, a Procuradoria Geral da República e o sistema prisional.
Os governos estrangeiros também deveriam intensificar os esforços para apoiar jornalistas independentes e organizações da sociedade civil.
“A comunidade internacional deveria redobrar seus esforços para proteger o Estado de direito em El Salvador e ajudar a garantir a segurança da população tanto perante os crimes hediondos cometidos por grupos criminosos como as violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança, e outros abusos de poder”, disse Juanita Goebertus.