Um projeto de lei sobre o terrorismo em tramitação no Congresso brasileiro adota definições amplas e vagas, colocando em risco direitos humanos fundamentais como a liberdade de associação e de expressão, disse hoje a Human Rights Watch. A Câmara dos Deputados deveria rejeitar o projeto de lei.
"Definições imprecisas dão margem à potencial utilização indevida da lei contra pessoas que não têm nada a ver com o terrorismo", disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. "A Câmara dos Deputados deve proteger os direitos fundamentais de todos os brasileiros, rejeitando o projeto de lei."
O Senado aprovou a proposta em 28 de outubro e agora ela está pendente na Câmara dos Deputados como projeto de lei nº 2016/2015.
O projeto de lei define o crime de terrorismo como "atentar contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por extremismo político [grifo nosso], intolerância religiosa, preconceito racial, étnico ou de gênero ou xenofobia, com o objetivo de provocar pânico generalizado." O projeto de lei considera “terrorismo por extremismo político" como "o ato que atentar gravemente contra a estabilidade do Estado Democrático, com o fim de subverter o funcionamento de suas instituições."
O Senado retirou uma salvaguarda do projeto de lei apresentado pela Câmara dos Deputados, que afirmava que a definição de terrorismo adotada não se aplicaria à conduta de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, com o objetivo de defender direitos e liberdades.
Se aprovado o projeto, uma pessoa condenada por terrorismo poderá receber uma pena entre 16 a 24 anos de prisão, e nos casos em que o ato resultar em morte, à pena de 24 a 30 anos.
Segundo o projeto, "apoderar-se" de diversos locais, como rodovias, escolas ou "edifícios públicos ou privados", deve ser considerado "ato terrorista" se motivado por "extremismo político" com o objetivo de provocar "pânico generalizado". Esta proposição genérica que não condiciona o verbo "apoderar-se" à existência de efetivo risco à vida ou à segurança, poderia ser interpretada para permitir o enquadramento como terroristas de agricultores dos movimentos sem-terra que bloqueiam estradas, de estudantes que ocupam escolas, ou mesmo de representantes dos povos indígenas que permanecem em edifícios públicos durante os protestos. O Brasil já dispõe de leis para garantir proteção contra crime de dano, por exemplo, que determina punições, como multa ou detenção de até três anos caso haja emprego de violência ou grave ameaça.
O projeto de lei também introduz o crime de "apologia ao terrorismo" sem qualquer explicação sobre o que isso significa, estabelecendo para ele uma pena de reclusão de 3 a 8 anos. O projeto de lei também inclui penas de prisão que vão de 10 a 20 anos para quem integrar organização terrorista – sem definir o que seria essa organização –, recrutar, treinar ou financiar indivíduos para praticar ato de terrorismo. Por serem vagas as definições adotadas no projeto de lei para determinar o que pode ser tratado como "terrorismo", elas poderiam ser usadas contra grupos que promovem protestos pacíficos.
Ao não definir o âmbito dos crimes de forma restrita, a lei não satisfaz o critério internacionalmente reconhecido da legalidade, que exige que asleis sejam definidas com precisão e clareza suficientes para que sua aplicação seja previsível e para que as pessoas possam regular sua conduta com garantia do cumprimento da norma.
Quatro especialistas da ONU, incluindo os relatores especiais para os direitos de associação e de reunião, de liberdade de expressão, e para a proteção dos defensores dos direitos humanos, criticaram o projeto de lei em uma declaração conjunta em 4 de novembro, afirmando que o projeto "está redigido em termos demasiado amplos e poderia restringir indevidamente as liberdades fundamentais".
Embora não haja uma definição universalmente reconhecida para terrorismo no direito internacional, as normas internacionais estabelecem que o termo não deve ser usado para criminalizar atos que não possuam os elementos da intenção de causar morte, ou lesões corporais graves, ou da tomada de reféns. A Assembleia Geral da ONU fez um apelo aos países para que "garantam que suas leis que criminalizam atos de terrorismo sejam... formuladas com precisão." Da mesma forma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos alertou que as leis que adotam "uma definição abrangente de terrorismo que seja inexoravelmente ampla e imprecisa" violam o princípio da legalidade. De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, "definições de crimes devem descrever claramente a conduta criminalizada, estabelecendo seus elementos e os fatores que a distinguem de outras formas de conduta que não são puníveis ou o são com medidas não penais."
A Comissão Interamericana também observou que "as leis que criminalizam de forma ampla a defesa pública (apologia) do terrorismo ou de pessoas que possam ter cometido atos terroristas sem considerar o elemento do incitamento ‘à violência ilegal ou a qualquer outra ação semelhante’ são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão. "
Pesquisas da Human Rights Watch mostram que países de todo o mundo têm usado leis contra o terrorismo vagamente formuladas para atingir grupos não-governamentais, sufocando a manifestação pacífica e restringindo a liberdade de expressão.
No Equador, promotores têm usado disposições antiterroristas radicais contra participantes de protestos públicos e outros eventos. Em um caso em maio de 2013, dez pessoas foram condenadas a um ano de prisão por atentado terrorista ao participarem de uma reunião pacífica para planejar um protesto.
No Egito, o governo tem usado penas severas e uma definição demasiado ampla de terrorismo, que pode abarcar desobediência civil, para combater opositores políticos.
Uma lei na Rússia proíbe a mídia de justificar publicamente o terrorismo – um termo impreciso que poderia ser usado como um mecanismo de censura – e permite que autoridades neguem o acesso de jornalistas a zonas especiais de "operações de contraterrorismo", onde policiais têm amplos poderes de busca e apreensão. Autoridades públicas se utilizaram deste dispositivo para impedir que jornalistas escrevam sobre a repressão em áreas da instável região do Norte do Cáucaso, como Ingushetia.
"De acordo com a atual proposta de lei, um manifestante que ameaçar um policial durante um protesto poderia enfrentar, pelo menos, 16 anos de prisão sob alegação de terrorismo", disse Maria Laura. "Obviamente, manifestantes que promovam atos violentos devem ser responsabilizados, mas a punição deve ser proporcional ao crime cometido."