Em uma recente comédia da Netflix, A Primeira Tentação de Cristo, Jesus volta do deserto para uma festa surpresa em sua casa. Mas ele não está sozinho. Ele está acompanhado de um suposto namorado.
Em 8 de janeiro, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Benedicto Abicair, atendeu as demandas de uma organização católica e ordenou que a Netflix retirasse o programa do ar, afirmando que sua divulgação e exibição eram "mais passíveis de provocar danos mais graves e irreparáveis do que sua suspensão". O desembargador sustentou ainda que sua decisão era adequada e benéfica “não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã”.
Porém, no dia seguinte, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, suspendeu a liminar do desembargador Abicair, destacando a importância da liberdade de expressão na ordem constitucional do país. Em sua decisão, o presidente da Corte afirmou que não se deve supor “que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2.000 anos[.]” O STF rejeitou outras tentativas de censura contra LGBTs no passado.
A decisão do desembargador Abicair de bloquear o programa também violou as normas internacionais de direitos humanos. Como o Relator Especial da ONU sobre liberdade de religião ou crença enfatizou em um relatório recente, que examina os direitos à liberdade de religião ou crença e à liberdade de expressão – direitos que são inter-relacionados e que se reforçam mutuamente –, "o padrão normativo internacional é claro: os Estados não podem impor punição por insultos, críticas ou ofensa a ideias, ícones ou lugares religiosos, nem leis podem ser usadas para proteger os sentimentos das comunidades religiosas ”.
A tentativa de censura do desembargador Abicair ocorreu duas semanas depois que um grupo lançou coquetéis Molotov contra a sede do Porta dos Fundos, a produtora do programa A Primeira Tentação de Cristo, em resposta ao especial de natal. A Polícia Civil identificou um suspeito, que fugiu para a Rússia e foi expulso do partido político de extrema direita do qual fazia parte.
O caso, no entanto, ainda não foi encerrado, pois deverá continuar a ser debatido perante o tribunal de segunda instância do Rio de Janeiro, bem como por outro ministro do STF com jurisdição sobre o caso, que estava de recesso. Desta forma, as autoridades públicas no Brasil devem aproveitar esta oportunidade para expressar sua oposição a essa afronta tão clara às liberdades democráticas e artísticas no Brasil.