(São Paulo) – O Exército não está disponibilizando seus soldados para prestarem depoimento ao Ministério Público do estado do Rio de Janeiro no âmbito da investigação sobre a chacina de oito pessoas durante uma operação conjunta entre o Exército e a Polícia Civil no dia 11 de novembro de 2017 no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, disse hoje a Human Rights Watch.
Em 28 de novembro, promotores públicos do estado compareceram a uma reunião sobre o caso com o general Walter Braga Netto, Chefe do Comando Militar do Leste. Um servidor público que acompanhou o encontro disse à Human Rights Watch que, imediatamente após o encontro, os promotores requisitaram uma cópia das declarações feitas pelos soldados que participaram da operação ao Exército e pediram para entrevistá-los. Os assessores de Braga Netto concordaram com o pedido, mas até o momento, três meses após o encontro, não encaminharam os documentos e nem disponibilizaram os soldados para as entrevistas.
“A obstrução das investigações por parte do General Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis”, disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório do Brasil da Human Rights Watch. “Isso é um péssimo sinal para os cidadãos do Rio de Janeiro, considerando seu novo posto como chefe da segurança pública do estado”.
Em 16 de janeiro de 2018, o presidente Michel Temer transferiu o comando de todas as forças policiais do Rio de Janeiro e seu sistema prisional para o General Braga Netto, após decretar a intervenção federal na segurança pública do estado. É a primeira vez que isso ocorre desde que a atual Constituição foi promulgada em 1988, logo após o fim de duas décadas de ditadura militar.
Durante o ano de 2017, comandantes do exército brasileiro, incluindo Braga Netto, repetidamente clamaram por “proteção jurídica” para as tropas envolvidas em operações de policiamento e insistiram que o Congresso protegesse aqueles acusados de execuções extrajudiciais da jurisdição civil.
Em outubro, o Congresso cedeu a essa demanda ao aprovar uma lei que transferiu à justiça militar os casos de homicídios contra civis cometidos por membros das Forças Armadas durante operações de segurança pública, como pode ter sido o caso das mortes no Salgueiro. Qualquer potencial julgamento neste caso se daria perante um tribunal dominado por militares. A lei torna virtualmente impossível a condução de uma investigação independente de crimes dessa natureza, em violação das normas internacionais e regionais de direitos humanos. Por isso, esta lei precisa ser imediatamente revogada, disse a Human Rights Watch.
Mesmo que a lei impeça o Ministério Público estadual de investigar os membros do Exército na condição de suspeitos das mortes em questão, os promotores podem colher seus depoimentos na condição de testemunhas. O testemunho de todos os participantes da operação é crucial para descobrir o que realmente aconteceu em 11 de novembro e qual foi o papel dos membros da polícia civil no caso, sobre os quais os promotores têm jurisdição.
Investigadores da divisão de homicídios e os membros do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública do Ministério Público (GAESP-MPRJ) – promotores responsáveis pela investigação de execuções extrajudiciais e outros abusos cometidos pela polícia – seguiram até o momento o procedimento padrão de colher os depoimentos dos policiais civis envolvidos no caso. Em contraste, mais de três meses após as mortes, os promotores sequer sabem os nomes ou unidades dos soldados que participaram das duas operações na região onde as mortes ocorreram.
De acordo com lei de outubro de 2017, membros do Ministério Público Militar são os que podem apresentar denúncia de homicídio contra membros das forças armadas. Uma procuradora de justiça militar de fato instaurou um inquérito sobre o caso, mas até agora não houve nenhum sinal de progresso.
Apesar de ter competência para colher os depoimentos dos membros das forças armadas que participaram da operação de novembro, a procuradora disse à Human Rights Watch em dezembro que ela contaria com o próprio exército para colher esses depoimentos. Ela disse que confiava nos procedimentos do exército.
Em 7 de novembro, helicópteros do exército transportaram membros das forças armadas para uma área de mata dentro do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, como parte de uma grande operação de segurança, disse o Comando Militar do Leste. Os soldados se esconderam na mata para interceptar suspeitos que fugissem do complexo pela Estrada das Palmeiras, mas a operação teria fracassado, uma vez que alguém aparentemente avisou as facções criminosas sobre o plano.
Na madrugada de 11 de novembro a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) – uma unidade de elite da Polícia Civil – e o Exército conduziram uma nova operação na mesma área, porém dessa vez com menor efetivo para evitar o vazamento de informações, disse um integrante do sistema de justiça. Quando chegaram à Estrada das Palmeiras a bordo de três veículos blindados encontraram pessoas baleadas e feridas. Sete morreram no local e mais um morreu algumas semanas depois em decorrência dos ferimentos.
Duas pessoas feridas disseram aos promotores e repórteres que os tiros vieram da área da mata e que os atiradores surgiram da mata após atirar. Um sobrevivente disse que vestiam preto e portavam capacetes e fuzis com mira a laser. Um integrante do sistema de justiça contou à Human Rights Watch que o tipo de equipamento mencionado pela vítima é típico das forças especiais do Exército e que a CORE não dispõe de tais armas.
Um representante do Defezap –serviço independente de telefone para denúncias sobre abusos policiais– contou à Human Rights Watch que moradores do Salgueiro relataram ao serviço que viram, por volta das 23h do dia 10 de novembro, homens descendo de rapel dos helicópteros, no escuro, para dentro da mata.
No dia 11 de novembro, o Comando Militar do Leste afirmou, em uma nota à imprensa, que aqueles que participaram da operação enfrentaram “resistência armada por parte de criminosos.” Mais tarde, o Comando mudou a versão, informando apenas que os “militares ouviram tiroteios.”
O Comando afirmou ainda que os militares não fizeram disparos, e que, portanto, o Exército não abriria um inquérito sobre as mortes. A procuradora de justiça militar acabou, sim, abrindo uma investigação, mas está deixando o próprio Exército apurar os fatos.
As normas internacionais e regionais determinam que casos envolvendo supostas execuções extrajudiciais e outras graves violações de direitos humanos não devem ser julgados por tribunais militares. A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que “a jurisdição penal militar não é a jurisdição competente para investigar e, se aplicável, julgar e punir os autores de violações de direitos humanos.”
Já a Comissão Interamericana de Direitos Humanos considerou que não é apropriado julgar violações de direitos humanos na Justiça Militar uma vez que “quando o Estado permite que investigações sejam feitas por entidades com possível envolvimento, a independência e a imparcialidade ficam claramente comprometidas.”
“As autoridades brasileiras devem garantir que a ´proteção jurídica’ que comandantes militares repetidamente exigem para suas tropas não se torne uma carta branca para cometer abusos,” disse Canineu. “Como chefe de todas as forças de segurança do Rio de Janeiro, Braga Netto tem a obrigação de mostrar que não está tentando enterrar o caso e que está sim comprometido em encontrar os assassinos e garantir justiça, como exige o seu dever.”