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Manifestantes fazem ato contra estupro e violência contra a mulher em Brasília. 29 de Maio de 2016. © 2016 Ueslei Marcelino/Reuters

No domingo passado, às 6h30 da manhã, Cláudia Zerati foi morta em seu apartamento, em um prédio com piscina, sauna e academia em Perdizes, um bairro de classe média alta em São Paulo. Cerca de 34 horas depois, Síria Silva Souza foi morta em um barraco de madeira em uma área sem ruas asfaltadas ou eletricidade, no Jardim Ângela.

Cláudia tinha 42 anos e era branca. Síria tinha 18 anos e era negra. Cláudia era juíza. A profissão de Síria não consta no boletim de ocorrência.

Há ainda a dona de casa Maria do Carmo Cândido, 67 anos, e a advogada Celina Moura Mascarenhas Gama, 35 anos. Elas também foram mortas em São Paulo na segunda-feira.

Quatro mulheres mortas em dois dias por parceiros ou ex-parceiros. Homens que diziam que as amavam.

Esses casos não são excepcionais, como mostram nossas pesquisas em São Paulo e Roraima – o estado com a maior taxa de homicídio de mulheres no Brasil, de acordo com os dados nacionais mais recentes. Na verdade, são um bom retrato das vítimas de homens que enxergam o corpo de uma mulher como sua propriedade. Essas vítimas são mulheres de todas as idades, classes sociais, e vivem em todos os cantos do país.

Elas muitas vezes são mortas com uma brutalidade extraordinária, com o uso de facas e martelos, ou fogo. Quando os assassinos são policiais, costumam usar suas armas. Os agressores às vezes também atacam familiares e amigos dessas mulheres, quando não seus próprios filhos. Se sobrevivem, essas crianças carregam as cicatrizes dessas experiências traumáticas para o resto de suas vidas.

Quando uma mulher é morta como resultado da violência doméstica, todos nós falhamos. É imperativo que os responsáveis pelas mortes sejam levados a julgamento e punidos. Mas ainda assim, será que poderíamos ter feito mais enquanto sociedade para prevenir essas mortes?

A resposta é um inequívoco sim.

Atitudes que inicialmente parecem “menos graves”, como tentar controlar o que a mulher faz ou onde ela vai, ameaças e pequenos empurrões, podem ser as primeiras ações de um padrão de abuso que leva à morte. Milhares de mulheres brasileiras sofrem muitos episódios de violência antes de criarem coragem para denunciá-la. E o acesso à justiça pode se tornar um sofrimento.

Conversei com mulheres que caminharam durante a noite para uma delegacia de polícia depois de terem sido espancadas, apenas para serem orientadas a ir embora e esperar a delegacia especializada da mulher abrir para fazerem a denúncia. A maioria dessas delegacias estão fechadas à noite e nos fins de semana, quando ocorre a maior parte dos casos de violência doméstica.

Mesmo nas delegacias da mulher, algumas vítimas precisam contar suas histórias de sofrimento, incluindo abuso sexual, em áreas abertas na recepção. Sem qualquer privacidade, elas ficam expostas ao constrangimento, ao estigma ou mesmo a maiores riscos caso os agressores descubram que procuraram a polícia. Os policiais que tomam as declarações frequentemente possuem treinamento insuficiente em violência doméstica. Ou sequer o possuem.

E mesmo que as mulheres consigam fazer a denúncia, provavelmente esse fato não levará a lugar nenhum. Uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) de 2013 constatou que, em alguns estados, apenas uma pequena porcentagem dos boletins de ocorrência se transforma em inquéritos, e desses, somente uma pequena parte resulta em denúncias contra os agressores. A maioria dos estados nem sequer forneceram os dados requeridos pela a CPI, cujas conclusões são corroboradas por nossa pesquisa em Roraima.

Graças à lei Maria da Penha, de 2006, mulheres sob ameaça podem obter medidas protetivas, mas a grande maioria dessas medidas ainda não é monitorada.

Geralmente há uma escalada na violência doméstica. Ela pode ser fatal quando o Estado perde a chance de interromper o ciclo da violência, não respondendo adequadamente às vítimas que buscam ajuda. O Estado está falhando nas suas responsabilidades perante as adolescentes e mulheres brasileiras.

É tarde demais para as quatro que morreram em São Paulo nos últimos dias. A melhor homenagem que podemos prestar a elas é não desviar o olhar quando nossas colegas de trabalho, nossas vizinhas, nossas irmãs e nossas mães estão sofrendo, e pressionar as autoridades para que também abram os seus olhos. E atuem. 

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