À Senadora Lídice da Mata,
Relatora do Projeto de Lei do Senado n° 757/2015 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal
Excelentíssima Senhora Senadora da República,
Gostaríamos de expressar nossa preocupação com a recente aprovação do Projeto de Lei do Senado n° 757/2015 pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, atualmente em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, sob sua relatoria.
O PLS n° 757/2015, cujos autores foram os Senadores Paulo Paim (PT-RS), Presidente da Comissão de Direitos Humanos, e Antônio Carlos Valadares (PSB-CE), tem como objetivo alterar diversas disposições da Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), da Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Estatuto da Pessoa com Deficiência), e da Lei n° 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
A abordagem de direitos humanos em relação às pessoas com deficiência baseia-se no princípio de que elas devem ter o direito de fazer escolhas e tomar decisões em suas vidas em igualdade de condições com as demais pessoas. Permitir que as pessoas com deficiência decidam se querem casar, que casa querem comprar ou onde preferem morar, deve ser considerado algo inerente a sua dignidade humana. Caso precisem de apoio para tomar decisões, os governos devem fornecer as ferramentas necessárias para tanto. Em resumo, o governo deve oferecer o suporte que as pessoas com deficiência precisam para tomar suas próprias decisões, ao invés de permitir que outras pessoas tomem decisões em seu nome.
O Brasil tomou medidas importantes para garantir a proteção dos direitos das pessoas com deficiência, incluindo a adoção da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status constitucional, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também chamado de Lei Brasileira de Inclusão .
O presente projeto de lei é uma tentativa mais ampla de solucionar conflitos entre o Novo Código de Processo Civil e a Lei Brasileira de Inclusão. Reconhecemos a importância de solucionar esses conflitos. Contudo, a harmonização do marco legal brasileiro deve cumprir as obrigações do país no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O PLS n° 757/2015, no entanto, parece ser um retrocesso em relação aos avanços na implementação da referida Convenção no Brasil, por meio da adoção da Lei Brasileira de Inclusão.
O artigo 84 dessa lei estabelece o direito das pessoas com deficiência de exercerem sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas e também limita a possibilidade de aplicação de curatela, permitida apenas para casos excepcionais, de forma “proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso” e restringindo sua duração ao “menor tempo possível” (artigo 84, parágrafo terceiro). Trata-se inclusive de um dispositivo que deveria ser revisto à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que estabelece como regra a ampla capacidade. Além disso, o artigo 85 limita a curatela somente aos negócios e atos de natureza patrimonial, proibindo a aplicação deste regime civil a questões relacionadas ao direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (artigo 85, parágrafo primeiro).
O PLS n° 757/2015 parece ser um retrocesso a todas essas questões. A disposição mais preocupante da reforma proposta busca restabelecer as disposições do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) que autorizavam a interdição total de pessoas declaradas "incapazes". Outro aspecto preocupante deste projeto é a proposta de extensão do uso do regime de curatela para questões relacionadas ao direito ao próprio corpo, sexualidade, matrimônio, privacidade, educação, saúde, trabalho e voto, das pessoas com deficiência.
O artigo 12, parágrafo segundo, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2008, exige que as pessoas com deficiência "gozem de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida". Em vez de retirar ou limitar a capacidade legal das pessoas com deficiência, o parágrafo terceiro deste mesmo artigo requer que os Estados forneçam apoio quando necessário e solicitado pelas pessoas com deficiência para que possam exercer seus direitos e tomar importantes decisões em suas próprias vidas. O parágrafo quarto exige que as medidas relacionadas ao exercício da capacidade legal ofereçam salvaguardas adequadas para prevenir abusos. Em particular, busca-se que tais medidas respeitem os direitos, vontades e preferências da pessoa, sejam livres de conflitos de interesses e influência indevida, bem como sejam proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa com deficiência. O dispositivo ainda prevê que as medidas tenham duração limitada e sejam sujeitas a revisão regular por autoridade ou órgão judiciário competente. Por fim, o parágrafo quinto desse artigo enfatiza o direito das pessoas com deficiência de "possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças”, bem como as obrigações do Estado de assegurar “que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens”. Este dispositivo é particularmente importante à luz das restrições quanto à capacidade legal atualmente existentes na Lei Brasileira de Inclusão.
Tem havido considerável debate em relação aos precisos contornos e à adequada implementação do artigo 12 da Convenção. O Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que monitora a implementação da convenção, recomendou ao governo brasileiro “retirar todos os dispositivos legais que perpetuem o sistema de tomada de decisão ‘substitutiva’”. Recomendou, ainda, que, em consulta com as organizações de pessoas com deficiência e outros prestadores de serviços, "o Estado Parte adote medidas concretas para substituir o sistema de tomada de decisão substitutiva por um modelo de tomada de decisão apoiada, que defenda a autonomia, vontade e preferências das pessoas com deficiência em plena conformidade com o artigo 12". Além disso, o Comitê solicitou ao governo brasileiro que apresente relatório de acompanhamento sobre essa recomendação especificamente, refletindo a importância dada ao cumprimento do artigo 12.
Em seu cerne, o artigo 12 requer uma mudança de paradigma que afaste a forma como todos os sistemas jurídicos domésticos abordaram essas questões no passado. Reconhecemos a profunda complexidade prática e ética de conceber novos sistemas que atendam ao artigo 12 em sua integralidade, bem como o fato disso levar o Brasil a terrenos genuinamente desconhecidos. Mas ao mesmo tempo que os artigos 84 e 85 da Lei Brasileira de Inclusão demonstraram um grande esforço do país em avançar com o cumprimento do artigo 12, o presente projeto de lei parece abandonar esse empenho.
Existem diversos mecanismos de tomada de decisão apoiada em outros países que poderiam ser considerados na regulamentação e implementação da Lei Brasileira de Inclusão. Alguns envolvem o “apoio informal de pares” para a tomada de decisões específicas, como aquelas relativas à habitação ou decisões financeiras. Há, ainda, o mecanismo das “diretivas antecipadas”, adotado no Canadá, por exemplo, que permite que uma pessoa decida de antemão, por meio de uma declaração por escrito, como ele ou ela gostaria de administrar esses assuntos. Além disso, as pessoas com deficiência poderiam elas mesmas optar por delegar a sua capacidade jurídica a um “garantidor” que as ajudaria a tomar decisões específicas. Há uma série de possibilidades e, por meio de uma audiência pública, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania teria a oportunidade de debater outras alternativas com a sociedade civil e especialistas.
Nesta perspectiva, solicitamos à Vossa Excelência que rejeite a aprovação do projeto de lei da forma em que se encontra. Solicitamos também que lidere a criação de uma comissão legislativa especial e plural, envolvendo senadores e deputados, que trabalhe em intensa interlocução com pessoas com deficiência e suas organizações representativas, juristas, especialistas e outras partes interessadas, com o objetivo de:
Responder aos problemas e contradições identificadas nas leis brasileiras sobre o assunto aqui tratado e realizar audiências públicas com ampla participação da sociedade civil;
Propor projeto de lei alternativo para harmonizar o ordenamento jurídico brasileiro em consonância com as obrigações do país no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e que inclua:
Eliminação de toda referência à "interdição" do sistema jurídico brasileiro, incluindo do Novo Código de Processo Civil;
Regulamentação abrangente do processo de tomada de decisão apoiada no novo Código de Processo Civil;
Desenvolver soluções concretas para as dificuldades práticas de estabelecer e consolidar um marco legal que seja plenamente compatível com o artigo 12; e
Realizar uma revisão completa de qualquer tipo de modelo de tomada de decisão substitutiva, entre eles o modelo de curadoria.
Com os mais elevados votos de estima e consideração, ficamos inteiramente à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessários nesse processo.
Atenciosamente,
Human Rights Watch, por Maria Laura Canineu, Diretora do escritório Brasil e Carlos Ríos-Espinosa, Pesquisador e Advogado Sênior.
Instituto Baresi, por Marcelo Higa, Presidente.
Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente, por Vinícius Gaspar Garcia, Coordenador.
Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo - Abraça, por Francisco Alexandre Dourado Mapurunga, Presidente.
ONG Essas Mulheres, por Marcia Gori, Presidenta.
Instituto MetaSocial, por Helena Werneck, Coordenadora-Geral.
Movimento Down, por Maria Antonia Goulart, Coordenadora-Geral.
Inclusive – Inclusão e Cidadania, por Patrícia Almeida, Coordenadora-Geral.
Rede Latino Americana de Organizações Não Governamentais de Pessoas com Deficiência e suas Famílias – RIADIS, por Ana Lucía Arellano, Presidente.
Federação das Fraternidades Cristãs de Pessoas com Deficiência do Brasil – FCD/BR, por Giovani Silveira Rodrigues, Coordenador Nacional/Presidente.