(Dacar, 20 de Julho de 2010) - A Assembleia Nacional da Guiné-Bissau deve agir rapidamente para promulgar uma lei que criminalize o tráfico humano, anunciaram hoje a Human Rights Watch, a SOS Crianças Talibés e a Associação dos Amigos da Criança. O projecto de lei, introduzido recentemente na agenda da Assembleia e com discussão prevista para a sessão de Outubro-Novembro, dotaria a polícia, os funcionários da justiça e a sociedade civil do poder necessário para melhorar a protecção das crianças no país, milhares das quais são traficadas da Guiné-Bissau para o Senegal e outros países todos os anos.
A Guiné-Bissau, país da África Ocidental com uma população de 1,5 milhões de pessoas, não possui, actualmente, legislação contra o tráfico humano. O tráfico de crianças é um problema grave que parece estar em crescimento na Guiné-Bissau, onde são movimentadas milhares de crianças todos os anos, tanto internamente como além-fronteiras, tendo em vista a sua exploração, a qual inclui o trabalho agrícola e a mendigagem forçada.
"Este importante diploma legislativo constitui o primeiro passo no combate ao grave problema que é o tráfico de crianças da Guiné-Bissau", afirmou Corinne Dufka, investigadora sénior da Human Rights Watch para a África Ocidental. "A Assembleia Nacional da Guiné-Bissau estaria finalmente a enviar o sinal certo aos traficantes de pessoas de que o país tenciona proteger as suas crianças".
O projecto de lei iria harmonizar a legislação doméstica com as obrigações internacionais do país, incluindo o Protocolo das Nações Unidas relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, ratificado pela Guiné-Bissau em 2007. Os esforços anteriores para introduzir o actual projecto de lei na agenda da Assembleia Nacional - e para promulgá-lo enquanto lei - fracassaram repetidamente.
A SOS Crianças Talibés e a Associação dos Amigos da Criança são ambas organizações de assistência infantil com sede na Guiné-Bissau e que operam em todo o país. Têm trabalhado no sentido de garantirem a promulgação da legislação anti-tráfico.
A Human Rights Watch documentou num relatório de Abril de 2010 como, todos os anos, milhares de rapazes são trazidos em direcção ao norte, da Guiné-Bissau para o Senegal, pelos seus professores ou por um intermediário, sob pretexto de iniciarem os estudos em daaras ou escolas corânicas residenciais. Alguns rapazes descreveram à Human Rights Watch como foram levados por vias clandestinas entre aldeias fronteiriças à noite, às vezes a pé, para evitar a sua detecção.
À chegada ao Senegal, a maioria é forçada a mendigar e torna-se vítima de condições análogas à escravatura infligidas pelos seus professores nas escolas corânicas. Muitos destes rapazes sofrem abusos físicos e psicológicos graves quando são incapazes de atingir as quotas diárias de dinheiro, arroz e açúcar, exigidas pelos seus professores corânicos. Sofrem igualmente de desnutrição grave e adoecem frequentemente como consequência das longas horas passadas na rua, das condições deploráveis nas escolas corânicas e da falta de assistência médica.
Muitos destes casos correspondem claramente à definição internacional de tráfico, afirmaram as organizações. O tráfico entre a Guiné-Bissau e os países vizinhos pode igualmente ocorrer noutras circunstâncias, tais como levar crianças para trabalharem em campos de algodão ou caju, ou transportar mulheres para as forçar à exploração sexual.
As organizações entrevistaram agentes da polícia e funcionários das fronteiras que trabalham para melhorar os esforços anti-tráfico, e deram assistência ao nível da formação dos funcionários das fronteiras e da constituição de grupos comunitários para monitorizar os movimentos transfronteiriços clandestinos que envolvem crianças.
Aqueles que trabalham para extinguir o tráfico enfrentam uma paralisadora falta de recursos. Em cada uma das duas principais regiões fronteiriças da Guiné-Bissau oriental, os agentes da polícia e os funcionários das fronteiras possuem apenas um carro e uma motocicleta para monitorizarem a extensão de território fronteiriço com o Senegal e a Guiné-Conacri, que perfaz 250 quilómetros.
"Uma melhoria ao nível da formação e dos recursos dos funcionários da fronteira poderia ajudar a reduzir o fluxo de crianças em risco de serem levadas além-fronteira, e nós precisamos disso", afirmou Malam Baio, director da SOS Crianças Talibés, com sede em Bafatá. "No entanto, a promulgação desta lei é essencial. A ausência de um enquadramento legal nacional que aborde o tráfico constitui um obstáculo a que os funcionários ataquem a raiz do problema".
Actualmente, os traficantes da Guiné-Bissau enfrentam apenas consequências irrisórias ou até inexistentes. Até quando se interceptam suspeitos que não têm consigo os documentos necessários para atravessar a fronteira com uma criança, não existe legislação que permita ao governo acusá-los ou condená-los eficazmente. Face à inexistência de sanções, é frequente os traficantes fazerem repetidas tentativas até serem efectivamente bem-sucedidos, segundo funcionários da polícia e crianças contaram às organizações. Se a lei proposta for promulgada, os agentes da autoridade e o poder judiciário seriam, pelo menos, capazes de prender, acusar e condenar os suspeitos de actos de tráfico.
Agentes da polícia, procuradores e defensores dos direitos das crianças explicaram aos grupos que as leis actuais que podem ser aplicadas ao tráfico - os crimes de "abuso de confiança" ou de "lesão do bem-estar de outrem" - têm uma formulação demasiado vaga para condenar eficazmente os traficantes.
Um comissário da polícia numa região do leste da Guiné-Bissau, de onde são traficadas muitas crianças para o Senegal, descreveu o problema à Human Rights Watch em Junho: "Não podemos fazer o nosso trabalho porque não há uma lei contra o tráfico...Podemos impedir o movimento de crianças além-fronteiras, mas é impossível acusar o infractor. Também é difícil sensibilizar as famílias porque não podemos exemplificar claramente com uma lei contra o que acontece".
A SOS Crianças Talibés e a Associação dos Amigos da Criança indicaram que o problema do tráfico continua em crescimento e que, todos os anos, há mais crianças obrigadas a viver em situações de abuso e de exploração no Senegal e em outros países vizinhos.
"O agentes da autoridade bem-intencionados que tentam combater o tráfico na Guiné-Bissau têm actualmente as mãos atadas", afirmou Fernando Cá da Associação dos Amigos da Criança. "Os traficantes deixados em liberdade para continuar a praticar o seu ofício deplorável só poderão ser responsabilizados quando esta lei for promulgada".