Os ataques aéreos indiscriminados de Israel - e não o uso de escudos humanos por parte do Hezbollah, como alegaram oficiais israelenses - causaram a maioria das, aproximadamente, 900 mortes de civis no Líbano durante a guerra de julho a agosto de 2006 entre Israel e o Hezbollah, disse a Human Rights Watch em um relatório publicado hoje. A Human Rights Watch investigou mais de 500 de tais mortes.
“Israel agiu erroneamente ao desprezar a sua obrigação legal de distinguir entre alvos militares e civis, agindo como se todos os civis tivessem seguido seus avisos para evacuar o sul do Líbano, quando era sabido que não o haviam feito”, disse Kenneth Roth, diretor executivo da Human Rights Watch. “Emitir avisos não faz com que ataques indiscriminados sejam legais.”
O relatório de 249 páginas, Why They Died: Civilian Casualties in Lebanon during the 2006 War (Por que eles morreram: Vítimas civis no Líbano durante a guerra de 2006), é a investigação mais extensiva, até a data, das mortes de civis no Líbano durante a guerra. Em cinco meses de pesquisa, a Human Rights Watch investigou 94 casos de ataques aéreos, terrestres e de artilharia pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) para discernir as circunstâncias em torno das mortes de 510 civis e 51 combatentes, quase metade das, no mínimo, 1.109 mortes de libaneses durante o conflito. Das, aproximadamente, 510 mortes de civis libaneses investigadas pela Human Rights Watch, pelo menos 300 foram de mulheres ou crianças. A Human Rights Watch visitou mais de 50 aldeias libanesas e entrevistou 316 vítimas e testemunhas, assim como 39 especialistas militares, jornalistas, representantes dos governos do Líbano e de Israel e membros do Hezbollah.
A Human Rights Watch descobriu que uma simples movimentação de veículos ou de pessoas – tal como sair para comprar pão ou a ida de uma casa privada para outra – podia ser o suficiente para provocar um ataque aéreo por parte de Israel que mataria civis. Aviões de ataque israelenses também tinham como alvo veículos em movimento que estavam somente levando civis que tentavam fugir do conflito. Na maioria dos casos documentados no relatório, não há evidência de uma presença militar do Hezbollah que justificasse o ataque.
“Os combatentes do Hezbollah geralmente não carregavam suas armas em espaços abertos, nem usavam, normalmente, uniformes militares, o que fazia deles um alvo difícil de identificar”, disse Roth. “Contudo, isso não justifica a falha das IDF em distinguir entre civis e combatentes, e, se na dúvida, tratar a pessoa como um civil, como exigem as leis de guerra.”
A pesquisa da Human Rights Watch mostra que a repetida falha das IDF em distinguir entre civis e combatentes não pode ser explicada como sendo uma simples má administração da guerra ou como sendo uma coleção de erros. As evidências sugerem que oficiais israelenses devem ter sabido que sua suposição de que não havia civis no sul do Líbano estava errada. Houve inúmeros relatos de mídia sobre uma presença contínua de civis no sul, e a própria experiência de Israel em conflitos passados demonstra que nem todos os civis estão dispostos ou são capazes de deixar suas casas de acordo com o cronograma de uma força militar hostil. Na verdade, apesar dos avisos das IDF, a maioria dos civis permaneceu no sul do Líbano durante a guerra. Mesmo assim, as IDF, geralmente, aparentavam não considerar tal fato ao tomar suas decisões de ataque. Ataques indiscriminados foram um resultado freqüente.
As IDF também tiveram como alvo pessoas e edifícios civis associados, de alguma maneira, com as estruturas sociais ou políticas do Hezbollah, independentemente dos alvos constituírem alvos militares válidos sob as leis de guerra, também conhecidas como lei humanitária internacional. Sob a lei humanitária internacional, membros civis do Hezbollah perdem sua condição de protegidos somente se estiverem participando diretamente das hostilidades. As estruturas políticas e sociais do Hezbollah podem ser alvejadas apenas se estiverem sendo usadas para propósitos militares e se, ao atacá-las, se criar uma vantagem militar “concreta e direta”.
A pesquisa da Human Rights Watch mostra que as IDF atacaram um alto número de residências privadas de membros civis do Hezbollah durante a guerra, assim como várias instituições civis geridas pelo Hezbollah como escolas, agências de assistência social, bancos, lojas e escritórios políticos. Nos altamente povoados subúrbios ao sul de Beirute, aviões de guerra israelenses atacaram os escritórios de organizações de caridade do Hezbollah e de seus parlamentares, seu centro de pesquisa e edifícios de apartamentos residenciais de vários andares em áreas consideradas a favor do Hezbollah. Declarações de oficiais de Israel sugerem, fortemente, que as IDF deliberadamente atacaram bairros inteiros porque eles eram considerados pró-Hezbollah, em vez de alvos militares específicos do Hezbollah, como exigido pelas leis de guerra.
“O tratamento de Israel de todas as partes do Hezbollah como alvos militares legítimos quebra os padrões legais internacionais e estabelece um precedente perigoso”, disse Roth. “Aceitar o argumento de que todas as partes do Hezbollah podem ser consideradas alvos porque tal suposição ajuda o esforço militar seria aceitar que todas as instituições israelenses que ajudam as IDF podem ser atacadas. O resultado final seria um enfraquecimento da proteção de civis.”
A investigação da Human Rights Watch no terreno recusa o argumento feito por oficiais israelenses de que a maioria das mortes de civis libaneses foi causada pelo Hezbollah ter se escondido entre civis e os ter usado como “escudos humanos” no conflito. O Hezbollah, às vezes, realmente lançou mísseis a partir de áreas povoadas, além de ter guardado armamentos e de ter mobilizado suas forças entre a população civil. Tal fato violou sua obrigação legal de tomar todas as precauções possíveis para poupar civis dos perigos do conflito armado. Em poucos casos documentados pela Human Rights Watch, tais violações por parte do Hezbollah causaram mortes de civis. No entanto, em contraste com essa atitude ilegal de pôr civis em risco, a Human Rights Watch não encontrou evidência em tais casos de outra violação legal, que é o uso deliberado de civis como escudos para fazer com que combatentes fiquem imunes a ataques. Os inúmeros filmes e fotografias publicados pelas IDF e por seus aliados não demonstram esse fato.
O Hezbollah também fez disparos, diariamente, a partir da vizinhança de postos das Nações Unidas, o que geralmente levou a contra-ataques israelenses. Para fins de observação, os postos da ONU costumavam ficar localizados em pontos altos, o que também oferecia posições estratégicas para que o Hezbollah fizesse disparos contra Israel. No entanto, na medida em que os comandantes ou combatentes do Hezbollah escolhiam tais localizações para lançar ataques porque a proximidade com funcionários da ONU faria com que contra-ataques fossem dificultados, tal atitude seria caracterizada como fazendo uso de escudos. Tal conclusão não pode ser excluída mesmo que os motivos dos combatentes do Hezbollah tenham sido mistos. É necessária mais investigação a esse respeito.
Com as poucas exceções acima, a Human Rights Watch descobriu que o Hezbollah armazenava seus mísseis em casamatas e em instalações localizadas em campos e vales inabitados; que ordenava a seus combatentes e oficiais civis que saíssem de áreas povoadas por civis assim que o conflito começasse; e que lançava seus mísseis de posições pré-preparadas fora de aldeias. Na vasta maioria de ataques aéreos que resultaram em mortes de civis e que foram investigados pela Human Rights Watch, não houve presença ou atividade militar do Hezbollah que justificasse o ataque.
Em suas investigações, os pesquisadores da Human Rights Watch realizaram entrevistas detalhadas com diversas testemunhas, checando as declarações com pessoas que não haviam se falado e, geralmente, testando tais testemunhos com detalhes que seriam difíceis de tramar e coordenar. Os pesquisadores também realizaram inspeções físicas em locais de ataques, procurando sinais da presença do Hezbollah ou dos tipos de armas usados. Para cada local visitado, os pesquisadores da Human Rights Watch fotografaram a área, documentaram todas as evidências forenses e anotaram as coordenadas geográficas com aparelhos de GPS. Sempre que possível, os pesquisadores da Human Rights Watch também visitaram os cemitérios onde as pessoas mortas em ataques israelenses foram enterradas para examinar se suas lápides os identificavam como civis, “mártires” ou “combatentes” do Hezbollah ou de outros grupos armados. Uma vez que familiares geralmente gostam de rotular de “mártir” ou “combatente” qualquer ente querido que morresse lutando, as lápides forneceram evidência importante sobre quem era e quem não era um combatente.
O relatório faz as seguintes recomendações principais:
- Israel deve revisar suas políticas militares que praticamente tratam todas as pessoas remanescentes em uma área, após avisos para evacuação, como combatentes, para que no futuro possa alvejar somente pessoas ou estruturas que sejam alvos militares válidos sob as leis de guerra. A Comissão Winograd de Israel, em especial, deve investigar tal questão.
- O Hezbollah deve tomar todas as medidas possíveis para garantir que as suas forças não coloquem civis ou funcionários da ONU sob risco desnecessário ao mobilizar forças, ao lançar mísseis a partir de ou ao armazenar armas em áreas povoadas. O governo libanês deve investigar tais práticas. (Um relatório da Human Rights Watch sobre ataques a míssil deliberados e indiscriminados contra áreas civis de Israel também pede que o governo libanês investigue tais práticas.)
- Os Estados Unidos devem investigar o uso, por parte de Israel, de armas fornecidas pelos EUA em violação das leis de guerra e suspender a transferência das armas que foram usadas ilegalmente, assim como suspender o financiamento ou apoio para uso de tal material, após o Departamento de Estado dos EUA confirmar se Israel parou de usar tais armas em violação da lei e mudou a doutrina militar por trás de tal abuso.
- A Síria e o Irã não devem transferir para o Hezbollah materiais, incluindo mísseis, que o Hezbollah tenha usado em violação das leis de guerra até que o Hezbollah se comprometa que não os usará de tal modo e, na verdade, cesse tal uso.
- O secretário-geral das Nações Unidas deve estabelecer uma comissão internacional de inquérito para investigar relatos de violações das leis de guerra, incluindo possíveis crimes de guerra, por todas as partes envolvidas no conflito.
Este relatório é a continuação de um relatório da Human Rights Watch de agosto de 2006, chamado Fatal Strikes: Israel’s Indiscriminate Attacks Against Civilians in Lebanon (Golpes mortais: Ataques indiscriminados de Israel contra civis no Líbano). Em um relatório publicado na semana passada, a Human Rights Watch abordou os ataques a míssil deliberados e indiscriminados, por parte do Hezbollah, contra áreas civis em Israel, em violação das leis de guerra. Em um relatório a ser publicado, a Human Rights Watch tratará do uso ilegal, por parte de Israel, de munições de fragmentação durante o conflito no Líbano em 2006.