Skip to main content

Lula não deveria silenciar em Pequim

Um governo poderoso e abusivo não é um parceiro confiável

Publicado em: Estado de São Paulo
O então vice-presidente da China, Xi Jinping, à esquerda, e o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião no Palácio do Planalto em Brasília, em 19 de fevereiro de 2009. © 2009 AP Photo/Eraldo Peres

“A China é um parceiro indispensável do Brasil”, disse Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores, à imprensa, em fevereiro, sobre os planos do presidente Lula de visitar a China. Para ele, uma “parte importante” da viagem é o “sinal político que será dado”.

Durante seus primeiros mandatos, de 2003 a 2010, Lula elegeu a China parceiro fundamental para reformar o que considerava uma ordem global injusta. Ele aprofundou relações com governos do sul global e aproximou as economias chinesa e brasileira. Agora, parece traçar um caminho semelhante, prometendo fortalecer o Brics e construir “uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo”.

O presidente também tem articulado uma política nacional de justiça social e direitos humanos. Para manter sua política externa alinhada a esses valores, não pode ficar silente em relação aos abusos da China para agradá-la. A constituição federal exige que o governo defenda os direitos humanos como pilar da política externa. Isso inclui, é claro, a relação do Brasil com a China – esse é o  sinal político que o presidente Lula deveria dar no país.

Sob a liderança do presidente Xi Jinping desde 2013, o governo chinês aprofundou a repressão em toda a China. Em Xinjiang, as autoridades detiveram e prenderam arbitrariamente cerca de um milhão de uigures em “campos de educação política” e prisões, onde alguns são torturados. Elas separaram crianças de suas famílias, construíram sistemas distópicos de vigilância em massa que monitoram pessoas que consideram “desleais” e procuraram apagar a religião e a cultura muçulmana turcomena. Esses abusos são tão graves e generalizados que “podem constituir” crimes contra a humanidade, segundo o escritório de direitos humanos das Nações Unidas.

Pequim está ademais esvaziando a língua, a cultura e a religião dos tibetanos e tem desmantelado rapidamente as liberdades em Hong Kong. Em fevereiro, as autoridades iniciaram o maior julgamento até agora com base em uma lei de segurança nacional draconiana: 47 ex-legisladores, autoridades eleitas e ativistas poderão enfrentar até prisão perpétua por terem realizado eleições partidárias não oficiais. Como alguém que recentemente enfrentou  ameaças à democracia brasileira, Lula deveria defender aqueles que lutam por ela em outros lugares.

Em toda a China continental, as autoridades estão aumentando o controle ideológico e social, prendendo, assediando e intimidando qualquer um que critique o governo. O governo há muito proíbe sindicatos independentes e, em 2019, prendeu dezenas de jovens ativistas dos direitos trabalhistas, incluindo estudantes, e suprimiu o que restava do ativismo trabalhista na China.

O Brasil, durante o governo Bolsonaro, não denunciou a deterioração da situação de direitos humanos na China. Em 2019, recusou-se a assinar uma declaração conjunta na ONU para condenar os abusos em Xinjiang. Em 2022, dois meses após o escritório de direitos humanos da ONU divulgar um relatório contundente sobre Xinjiang, o Brasil se absteve em uma resolução que permitiria ao Conselho de Direitos Humanos também discutir a situação dos direitos humanos em Xinjiang. A resolução foi derrotada pela margem estreita de dois votos. A abstenção do Brasil enfraqueceu a credibilidade do Conselho de Direitos Humanos e ajudou a China a encobrir seus abusos.

Lula pode fazer melhor. Ele poderia se distanciar da política externa no mínimo indiferente aos direitos humanos de seu antecessor. Essa não será uma equação fácil, considerando que a China é o principal parceiro comercial do Brasil. Mas em uma relação comercial, ambos parceiros possuem cartas poderosas na manga. O Brasil não precisa se afastar de seus valores para sustentar suas relações econômicas, especialmente considerando seu grande mercado consumidor, a riqueza de seus recursos naturais e o papel de liderança que exerce na América Latina.

O Brasil deveria tomar cuidado para não se tornar excessivamente dependente de um governo abusivo, poderoso e ditatorial. Ao iniciar um novo mandato, Lula precisa deixar claro que os governos do Brasil e da China não compartilham dos mesmos valores.

Pequim exerce poder crescente sobre muitos países em desenvolvimento para os quais a China se tornou o maior credor e parceiro comercial. Embora Pequim afirme que está promovendo os interesses do sul global, em pelo menos uma situação, usou esse poder para intimidar um governo, ameaçando reter vacinas contra a Covid-19 se a Ucrânia votasse por mais escrutínio dos abusos de direitos em Xinjiang no Conselho de Direitos Humanos.

À medida que o Brasil ressurge no cenário global, o governo Lula deveria adotar medidas fortes para reafirmar seus compromissos com os direitos humanos. Deveria trabalhar com governos que pensam da mesma forma, especialmente no sul global, para fortalecer o sistema internacional de direitos humanos, um pilar indispensável do multilateralismo. Isso implicaria, no mínimo, colocar os abusos da China na mesa do Conselho de Direitos Humanos e pressionar pela libertação de defensores dos direitos humanos, sindicalistas e ativistas detidos arbitrariamente.

Milhões no Brasil, na China e em todo o mundo acompanharão a viagem de Lula à China. E ele deveria aproveitar a oportunidade e não se omitir.

Os direitos de todos na China, de trabalhadores comuns a membros de minorias étnicas e ativistas, estão em jogo. A credibilidade do presidente Lula como líder global também.

Your tax deductible gift can help stop human rights violations and save lives around the world.