Skip to main content
Military police officers Roberta Moreira and Wallace Justo walk through one of the trails at Mangueira favela on January 14, 2016. Members of the local Pacifying Police Unit (UPP), they carry out social projects with children to try to gain the

Participação da Human Rights Watch na audiência pública da ADPF 635

Os policiais militares Roberta Moreira (esq.) e Wallace Justo (dir.) caminham em uma das trilhas na favela da Mangueira em 14 de janeiro de 2016. Membros da Unidade de Polícia Pacificadora local, eles promovem projetos sociais com crianças com o objetivo de conquistar a confiança da comunidade.   © 2016 César Muñoz Acebes/Human Rights Watch

Boa tarde, Excelentíssimo Ministro Edson Fachin e demais autoridades e colegas presentes nesta audiência.

Em nome da Human Rights Watch, agradeço a oportunidade de participarmos desta importante discussão sobre as estratégias de redução da letalidade policial no Rio de Janeiro. Para a elaboração de um plano com este objetivo, acreditamos que é imprescindível a ampla participação da sociedade civil.

A Human Rights Watch é uma organização internacional, independente e não governamental, dedicada a defender os direitos humanos. Atuamos em mais de 100 países. No Brasil – e particularmente no Rio de Janeiro – temos investigado a atuação das forças de segurança há décadas.

Na minha apresentação focarei em três pontos: o impacto da violência policial, as falhas nas investigações e o enfraquecimento do controle da atividade policial pelo atual Procurador Geral de Justiça do Rio.

O Brasil é um dos países com maiores números absolutos de mortes causadas pela polícia, junto com as Filipinas e a Venezuela, segundo os últimos dados disponíveis. O Rio de Janeiro é um dos piores estados do Brasil. A grande maioria das vítimas é negra.

A Human Rights Watch documentou mais de 80 casos de mortes causadas pela polícia no Rio nos últimos anos. Também entrevistou policiais e moradores de comunidades. As nossas conclusões estão baseadas principalmente nesse trabalho em campo e na nossa avaliação do direito e dos parâmetros internacionais.

Embora algumas mortes por policiais ocorram em legítima defesa, muitas outras são resultado do uso excessivo e imprudente da força. Em algumas ocasiões, vai além disso. Eu entrevistei dois policiais que me relataram operações concretas que, desde o começo, tinham como intenção matar.

A estratégia de entrar em comunidades atirando, em operações de estilo militar, com o objetivo de apreender algumas drogas e armas, simplesmente não funciona. Em nada contribui para desmantelar grupos criminosos. E tem um enorme custo.

O primeiro custo é obviamente para os cidadãos brasileiros que moram nesses locais e que deveriam ser protegidos pela polícia. Mas, em vez disso, veem a polícia com medo, como uma ameaça para eles e para seus filhos. Muitas dessas histórias foram compartilhadas nesse espaço desde sexta-feira.

Existe também um custo para a segurança pública. A cooperação entre a comunidade e a polícia é fundamental para a prevenção do crime, quer dizer, para o sucesso da polícia. Mas a violência policial a torna muito difícil. Como é que moradores vão colaborar na prevenção do crime e nas investigações quando eles veem policiais que são abusivos, violentos e corruptos? A violência policial prejudica a segurança pública.

O terceiro custo é para a própria força policial. Policiais me relataram do receio de patrulhar comunidades onde ocorreram abusos policiais, mesmo quando não participaram desses abusos. Um policial me disse que os criminosos acreditam que serão executados caso se rendam, por isso sempre atiram contra a polícia, mesmo quando encurralados.

Vários policiais também me contaram que foram testemunhas do uso ilegal da força por colegas, mas nenhum deles informou aos superiores, por medo de represálias. Eles continuaram trabalhando, calados, junto a policiais que violavam a lei.

Os abusos policiais fomentam um ciclo de violência que coloca em risco as vidas de moradores e dos próprios policiais, e contribuem para elevados níveis de estresse psicológico, prejudicando sua capacidade de fazer bem o seu trabalho. Policiais militares do Rio de Janeiro me relataram como não receberam nenhum apoio psicológico após participar ou testemunhar um confronto que resultou numa morte ou ferimento grave.

O plano de redução da letalidade deveria garantir apoio psicológico adequado aos policiais e treinamento contínuo sobre as regras e o uso apropriado da força, incluindo treinamento obrigatório para os policiais que usam as suas armas com maior frequência.

Para interromper esse ciclo de desconfiança e violência, será necessário enfrentar um de seus principais problemas subjacentes: a generalizada impunidade por abusos policiais no Rio de Janeiro.

Os últimos dados disponíveis são de um inquérito parlamentar da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e apontam que 98 por cento das investigações sobre homicídios cometidos por policiais de 2010 a 2015 foram arquivadas. O Ministério Público do Rio nunca publicou um relatório abrangente sobre homicídios cometidos por policiais com dados sobre quantos casos foram levados à justiça. Isso por si só é uma falha que seria muito importante retificar.

Isso me leva ao segundo ponto desta apresentação: os enormes problemas nas investigações de abuso policial.

Começam com a preservação inadequada do local. Nos últimos anos, a Human Rights Watch documentou diversos casos em que policiais prestaram “falso socorro” às vítimas, deslocando cadáveres aos hospitais com o objetivo de destruir evidências e dificultar as investigações.

Em alguns casos, não há nenhuma perícia do local da morte.

No caso de 9 jovens mortos pela polícia em uma casa no morro do Fallet em fevereiro de 2019, a Human Rights Watch enviou os laudos de necropsia para a análise de dois grupos de peritos forenses internacionais. Os dois pareceres concluíram que as necropsias não atendiam aos padrões profissionais e científicos mínimos devido a sua "absoluta falta de qualidade".

Este tribunal destacou a importância da aplicação do Manual das Nações Unidas sobre Prevenção Eficaz de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias, conhecido como Protocolo de Minnesota, que detalha procedimentos básicos para a investigação de mortes causadas pela polícia. Este protocolo deveria ser rigorosamente implementado no Rio de Janeiro como parte do plano de redução da letalidade policial.

O Brasil é obrigado, segundo o direito internacional, a conduzir investigações adequadas sobre execuções extrajudiciais. A Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que “em casos de execuções extrajudiciais, é essencial para o Estado que se investigue com eficácia a privação do direito à vida e que os responsáveis sejam punidos, especialmente quando agentes do Estado estão envolvidos, já que não fazê-lo criaria, dentro de um ambiente de impunidade, as condições para que tais eventos se repitam...” A investigação eficaz é aquela “completa, imediata e imparcial”, segundo os padrões internacionais.

No entanto, conforme Vossa Excelência apontou no curso desta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, as investigações da Polícia Civil sobre abusos cometidos por policiais não atendem à “exigência de imparcialidade, reclamada pelos tratados internacionais de direitos humanos.”

Isso me leva ao terceiro ponto desta apresentação: o papel do Ministério Público.

Em última instância, a responsabilidade de acabar com a impunidade em casos de abuso policial é do Ministério Público – a instituição com a competência constitucional de exercer o controle externo da polícia, inclusive com autoridade para conduzir suas próprias investigações.

Esta Corte afirmou que a investigação do Ministério Público competente deve ser prontamente desencadeada em casos de abusos policiais. A Corte Interamericana, no caso Nova Brasília, também determinou ao Brasil que delegue as investigações sobre mortes, tortura e outros abusos decorrentes de ação policial “a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público”.

Nesta manifestação, gostaria de chamar atenção justamente para este exercício independente do controle externo.

Durante anos, a Human Rights Watch pediu a criação de um grupo de promotores especializado no controle externo da polícia no Rio. Os membros dessa unidade teriam a possibilidade de adquirir experiência com esse tipo de caso; analisar padrões de abuso e reconhecer os modi operandi; identificar e investigar batalhões de polícia específicos e agentes que sejam responsáveis ​​por um grande número de homicídios; e conduzir a oitiva de parentes das vítimas e de testemunhas, que podem temer o risco de retaliação por parte da polícia caso forneçam informações a Policia Civil. O grupo deveria ainda garantir que as forças policiais tenham e cumpram protocolos e outras normas para prevenir abusos. 

Em dezembro de 2015, o então Procurador-Geral de Justiça criou o GAESP, o Grupo de Atuação Especializada de Segurança Pública, uma unidade de promotores especializada no controle externo da atividade policial. Desde então, solicitamos reiteradamente o seu fortalecimento aos sucessivos Procuradores-Gerais de Justiça.

Apesar de recursos muito limitados, o GAESP fez contribuições importantes no enfrentamento da violência policial. Em março, o grupo tinha sob sua responsabilidade mais de 700 investigações de abusos policiais e havia apresentado 24 denúncias em casos de homicídios cometidos pela polícia desde 2019 – incluindo casos com grande repercussão, como o homicídio da menina Ágatha Felix, no Complexo do Alemão. As denúncias nesses casos de grande relevância transmitem uma mensagem importante à polícia de que abusos não serão tolerados.

O Gaesp também abriu inquéritos civis sobre as condições de trabalho de policiais, bem como sobre condutas das forças de segurança que violam direitos básicos, forçando a adoção e cumprimento de protocolos para coibir abusos. Além disso, apresentou uma ação contra o estado do Rio para obrigá-lo a cumprir determinações da Corte Interamericana na sentença do caso Nova Brasília, cobrando a elaboração de um plano para redução da letalidade e da violência policial.

Essa atuação foi inclusive reconhecida nos autos desta ADPF, em manifestação do Procurador-Geral da República, Augusto Aras. E foi novamente ressaltada na sexta-feira pelo promotor que representava o recém-empossado Procurador-Geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos.

Neste contexto, nos surpreende muito a decisão do Procurador Geral de Justiça de extinguir o GAESP – uma decisão que enfraquece os mecanismos de controle externo da atividade policial. À imprensa, ele explicou que os casos envolvendo policiais serão conduzidos pelos promotores naturais.

Contudo, nossas pesquisas apontam para algumas dificuldades relevantes que provavelmente surgirão:

Os promotores naturais podem ter que investigar crimes cometidos pelos mesmos policiais com quem interagem ou trabalham em outros casos sob a mesma jurisdição. Eles podem, justificadamente, temer riscos de retaliação ao assinarem sozinhos uma denúncia contra esses policiais. Além disso, podem apresentar dificuldade em lidar com casos de abuso policial, muitas vezes complexos, ao mesmo tempo que possuem um grande número de outros casos sobre todos os tipos de atividades criminosas. 

Assim, os promotores naturais podem optar por não realizar suas próprias investigações sobre abusos policiais e, em vez disso, confiar apenas nas conclusões das investigações da Polícia Civil – o que, conforme esta Suprema Corte ressaltou, levanta sérias questões sobre imparcialidade das apurações.

O Procurador-Geral de Justiça anunciou uma nova Coordenadoria-Geral de Segurança Pública, com a missão de coordenar os trabalhos do Ministério Público nesta matéria. No entanto, a resolução que cria a Coordenadoria não confere a ela autoridade para investigar e oferecer denúncias em casos individuais de abuso policial. Além disso, não confere autoridade para conduzir inquéritos civis e outras ações judiciais sobre protocolos e práticas policiais que podem ser instrumentais para garantir o respeito aos direitos humanos.

Por essas razões, o mandato da nova coordenadoria está muito aquém do que é necessário para enfrentar o gravíssimo problema dos abusos policiais no Rio de Janeiro.

Para o sucesso de qualquer plano para reduzir a letalidade policial é crucial o compromisso do Ministério Público de defender vigorosamente a lei em casos que envolvam atividades criminosas praticadas por policiais. Acreditamos que, para isso, é preciso ter uma unidade especializada de promotores de justiça.

A Human Rights Watch considera fundamental a atuação do STF em um dos problemas de direitos humanos mais graves no Brasil, o uso abusivo e criminoso da força letal pela polícia. É crucial que o governo do Rio de Janeiro elabore urgentemente um plano para reduzir a letalidade policial, incluindo ações e metas concretas. Recomendamos que esse plano inclua maior apoio psicológico para os policiais e treinamento continuado sobre os protocolos e as práticas do uso da força que respeitem os parâmetros internacionais. Também recomendamos que acate a decisão deste Tribunal de aplicar o Protocolo de Minnesota em casos de mortes causadas pela polícia; e que o Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro designe um grupo de promotores especializados, com recursos e apoio suficientes para acompanhar e denunciar casos de abusos policiais.

Em nome da Human Rights Watch, agradeço a oportunidade de participar desta audiência. Esse espaço tem sido extremamente importante para que mães e pais de vítimas, e moradores de comunidades compartilhem com a Suprema Corte sua dor e indignação. O que falta são ações concretas por parte das autoridades do Rio para a defesa dos direitos básicos de todas e todos.

Your tax deductible gift can help stop human rights violations and save lives around the world.

Região/País