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(São Paulo) – A legislação brasileira sobre aborto é incompatível com as obrigações de direitos humanos do país, disse hoje a Human Rights Watch no lançamento de um vídeo sobre o assunto. A Human Rights Watch participará de audiência pública nos dias 3 e 6 de agosto de 2018 sobre uma ação na Suprema Corte que questiona a constitucionalidade da criminalização do aborto no Brasil nas primeiras 12 semanas de gravidez. A Human Rights Watch pedirá ao STF que considere as obrigações do Brasil sob o direito internacional para chegar a sua decisão.

O aborto é legal no Brasil apenas em casos de gravidez resultante de estupro, de risco à vida da mulher grávida, ou de anencefalia do feto – uma má formação cerebral congênita fatal. Mulheres e meninas que interrompem a gravidez sob qualquer outra circunstância podem enfrentar até três anos de prisão. Reportagens na imprensa sugerem que, em 2017, os tribunais registraram mais de 300 processos criminais contra mulheres que realizaram um aborto, muitas denunciadas por profissionais de saúde após terem procurado atendimento médico pós-aborto. A Human Rights Watch documentou as consequências das restrições ao aborto no Brasil em um relatório de julho de 2017 sobre o impacto do surto de Zika no país.

“Nenhuma mulher ou menina deve ser forçada a escolher entre continuar uma gravidez contra sua vontade e arriscar sua saúde, vida e liberdade para fazer um aborto clandestino”, disse José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas na Human Rights Watch. “A ação no Supremo Tribunal Federal é uma oportunidade crucial para oferecer às mulheres e meninas no Brasil mais escolhas reprodutivas, de acordo com seus direitos sob a legislação internacional de direitos humanos.”

Em março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com apoio da organização não-governamental Anis – Instituto de Bioética, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal contestando a criminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez. A Human Rights Watch enviou um pedido de ingresso como amicus curiae, analisando as obrigações do Brasil sob a legislação internacional de direitos humanos. A audiência pública sobre o caso será em Brasília.

No vídeo, a Human Rights Watch conversa com Rebeca Mendes Silva Leite, que em 2017 pediu ao STF para interromper sua gravidez não planejada com segurança. Ela disse que temia um aborto clandestino: “Meu medo era de tomar o remédio e ter alguma complicação dentro da minha casa e não poder ir para um hospital para falar o que está acontecendo e morrer na minha casa e deixar meus dois filhos. Ou medo de eu ir para o hospital e lá ter que falar o que aconteceu realmente e acabar indo para uma delegacia e sendo indiciada.” A ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, negou o pedido de Rebeca por motivos processuais, mas não se pronunciou sobre o mérito. Rebeca fez um aborto no exterior.

O vídeo também reúne especialistas, defensores de direitos humanos e uma médica que conta sobre como as mulheres precisam recorrer a métodos clandestinos e perigosos para interromper a gravidez devido à criminalização do aborto no Brasil. “Eu já acompanhei casos de mulheres com infecções gravíssimas por abortamentos inseguros”, disse a médica Leila Katz, obstetra-ginecologista em Recife, a maior cidade do estado de Pernambuco, no nordeste do Brasil. “Já tive, também, pacientes que, com manipulação da cavidade uterina, tiveram lesão do útero, ruptura do útero com infecção da cavidade abdominal e que ficaram... Algumas morreram e algumas [ficaram] com sequelas bem graves.”

“As mulheres mais afetadas pela criminalização, são as mulheres mais pobres, as mais vulneráveis”, disse Debora Diniz, cofundadora da Anis, que também aparece no vídeo. “Elas são as mulheres negras e indígenas, elas são as mais jovens.”

Centenas de milhares de mulheres e meninas abortam no Brasil a cada ano, na maioria das vezes clandestinamente. Estima-se que, aos 40 anos, aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras interrompeu uma gravidez.  De acordo com dados do Ministério da Saúde publicados pela Folha de São Paulo, mais de dois milhões de mulheres foram internadas em razão de complicações de abortos entre 2008 e 2017, sendo três quartos abortos provocados, e mais de 4.400 mulheres morreram entre 2000 e 2016 por causas relacionadas ao aborto.

Organismos das Nações Unidas que interpretam a legislação internacional de direitos humanos determinaram que negar o acesso de mulheres e meninas ao aborto é uma forma de discriminação que coloca em risco uma série de direitos humanos, incluindo os direitos à vida; à saúde; à liberdade de tratamento cruel, desumano e degradante; à não-discriminação e igualdade; à privacidade; à informação; e à liberdade para decidir o número e o intervalo entre crianças.

Por mais de uma década, as agências e os especialistas em direitos humanos da ONU criticaram o Brasil por suas restrições punitivas ao aborto e fizeram um apelo ao governo para que modificasse essas leis. Em 2015, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU disse que o Brasil deveria “descriminalizar o aborto em todas as circunstâncias e rever sua legislação com vistas a assegurar acesso a serviços para um aborto seguro e assistência pós-aborto.” O Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres disse que o Brasil deveria “agilizar a revisão da legislação que criminaliza o aborto, a fim de eliminar as disposições punitivas impostas às mulheres”.

Pesquisas mostram consistentemente que leis restritivas e penalidades criminais não reduzem a taxa ou incidência de aborto. Um estudo recente do Instituto Guttmacher constatou pouca diferença nas taxas estimadas de aborto entre países nos quais o procedimento é proibido ou permitido apenas para salvar a vida de uma mulher grávida, e países onde não é restrito a situações particulares. A Organização Mundial da Saúde estima que a cada ano 25 milhões de abortos inseguros são realizados. Países com leis restritivas ao aborto têm uma proporção significativamente maior de abortos inseguros do que aqueles com leis menos restritivas.

Votações históricas na Irlanda e na Câmara de Deputados do Congresso argentino em 2018, e a decisão do Tribunal Constitucional do Chile de descriminalizar o aborto em três circunstâncias em 2017, são apenas alguns exemplos de uma tendência global para expandir o acesso legal ao aborto. O Instituto Guttmacher constatou que 27 países mudaram suas leis para expandir o acesso ao aborto entre 2000 e 2017.

“O caso perante o Supremo Tribunal Federal no Brasil representa uma oportunidade para proteger os direitos e a dignidade das mulheres, descriminalizando o aborto”, disse José Miguel Vivanco. “As mulheres e meninas brasileiras não devem mais esperar para que seus direitos reprodutivos sejam respeitados.”

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