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Ao desembarcar de uma viagem de mais de 24 horas entre São Paulo e Quioto no dia 25 de maio, liguei o celular e fui surpreendida com notícias perturbadoras. Enquanto dormia sobre os ares de dois oceanos, a polícia matava 9 trabalhadores rurais em um acampamento na Fazenda Santa Lúcia, no Pará.

A polícia deu a rotineira explicação: disparou em legítima defesa frente a um ataque. Mas nenhum policial ficou ferido e os corpos foram removidos antes da perícia chegar ao local. Os sobreviventes disseram que a polícia chegou atirando, torturou as vítimas e reagiu com tiros aos que clamavam por suas vidas.

Lembrei-me do "massacre de Carajás" de 1996, também no Pará, quando a polícia executou 19 trabalhadores, removeu os corpos do local, sem ser punida por isso. Eu era adolescente à época, mas tinha a vívida lembrança de mães e filhas desesperançadas enterrando seus entes queridos.

Os mesmos horrores ainda nos assombram, a falta de respeito pela vida e o absoluto desrespeito pela lei por aqueles que justamente deveriam zelar por seu cumprimento. Disputas por terra tiraram a vida de 61 pessoas em 2016, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra. O sentimento de história se repetindo me causou profunda tristeza como defensora de direitos humanos. Os psicólogos chamam isso de "ferida moral", ferida da nossa consciência que resulta de uma grave violação de valores fundamentais.

Eu chegava em Quioto para participar de uma conferência de defensores de direitos humanos e, coincidentemente, estava prestes a receber uma lição de um mestre em resiliência. Michael Kirby foi juiz da suprema corte da Austrália por anos antes de assumir, aos 74 anos, a direção dos trabalhos de investigação da ONU dos crimes contra a humanidade na Coreia do Norte. Ele disse não ter conseguido conter as lágrimas diante da revelação dos testemunhos de tortura, violência sexual, desaparecimento forçado e outros abusos em campos de concentração do país.

Apesar das imensas dificuldades de um caso tão extremo, ele parece não ter perdido o compromisso e a paixão na defesa dos direitos humanos. Para ele, o melhor remédio para curar a ferida moral é justamente enfrentar persistentemente o pior que a humanidade tem a nos oferecer.

No Brasil, a persistência de defensores dos direitos humanos, membros do sistema de justiça e cidadãos comuns trouxe importantes resultados. Levou 16 anos, mas dois comandantes do massacre dos Carajás foram condenados em 2012. E a resposta dada por autoridades estaduais e federais ao caso mais recente do Pará traz alguma esperança.

Parlamentares da comissão dos direitos humanos da Assembléia Legislativa do estado refutaram prontamente a narrativa policial, afirmando que não houve confronto. O Ministério da Justiça concordou com o pedido do Conselho Nacional de Direitos Humanos e autorizou a Polícia Federal a investigar o caso, passo positivo para assegurar uma investigação mais independente.

Uma investigação minuciosa, imparcial e imediata é crucial para a alcançar a necessária condenação dos responsáveis por essa tragédia e revigorar a esperança na luta pelos direitos humanos.

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