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Direitos humanos vivem pior momento desde o pós-Guerra, segundo este especialista

Iain Levine, da Human Rights Watch, fala ao ‘Nexo’ sobre o desafio que o avanço conservador impõe à proteção dos mais vulneráveis no mundo atual

© 2012 Reuters

O mundo enfrenta hoje, possivelmente, a maior ameaça aos direitos humanos desde a adoção da Declaração Universal que em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra, codificou as normas mínimas para proteger a vida e a dignidade de todos os seres humanos.

A avaliação foi feita pelo britânico Iain Levine, diretor de Programas de uma das mais influentes ONGs de direitos humanos do mundo, a Human Rights Watch. Levine é especialista em crises humanitárias e na proteção de civis em situações de conflito armado.

Ele considera que os sete anos de guerra na Síria estão fazendo com que as pessoas percam a confiança no sistema internacional, recuem das Nações Unidas, da União Europeia e “da ideia de que a força militar não é a melhor forma de promover paz e desenvolvimento”.

Para Levine, “todo o sistema criado em 1948 está sendo duramente questionado e cada vez mais há rejeição ao conceito de universalidade dos direitos”. Ele esteve em São Paulo no início de maio, quando conversou pessoalmente com o Nexo.

O que são direitos humanos?

Iain Levine: É a pergunta mais óbvia, mas a resposta é muito difícil. Desde a eleição de Donald Trump, nos EUA [em novembro de 2016], e desde a ascensão de todo esse movimento populista em muitas partes do mundo, nós falamos muito sobre esse desafio. A Human Rights Watch é politicamente neutra, não apoia nenhum candidato, seja de esquerda ou de direita, mas, ao mesmo tempo, é uma organização extremamente consciente do ambiente político e da influência desse ambiente em tudo o que faz. Afinal, há mudanças políticas que vão contra os direitos humanos.

Um dos grandes desafios é justamente esse: como comunicar os valores dos direitos humanos? Eu não sou advogado, mas sei que os ativistas são acusados de sempre assumirem posições muito legalistas em relação aos direitos humanos. Nós temos de achar outras formas de falar disso, a partir de uma posição moral, de defesa de valores e de defesa de nossa humanidade compartilhada.

Tenho conversado cada vez mais com pessoas da comunidade religiosa, por exemplo, para entender como comunicar esses valores morais. Os conceitos dos direitos humanos não vêm da Declaração Universal de 1948, nem da Revolução Francesa [1789-1799]. Vieram de muito antes.

Jesus Cristo disse “trate o próximo como você gostaria de ser tratado”. Isso tem muito a ver com direitos humanos. Duas rabinas que fazem parte de um grupo de rabinas para os direitos humanos nos EUA e em Israel me explicaram que, na tradição judaica, se agradece a Deus por ele ter-nos feito à sua imagem e semelhança.

Elas dizem que todos nós — independentemente de cor, de raça, de religião, de vida sexual — fomos todos feitos à imagem de Deus e, por essa visão, todos nós temos um valor e uma dignidade inerentes, seja o prisioneiro, o terrorista, a prostituta, o traficante de drogas.

Eu até posso explicar as diferentes convenções, as leis de guerra e os direitos da mulher, mas essas leis não definem o que são os direitos humanos. Elas definem apenas as práticas necessárias para a defesa dos valores morais que são os direitos humanos.

A desvantagem — e por isso as convenções são importantes — é que alguns podem citar textos morais, como a Bíblia, para justificar perseguição, por exemplo, ao público LGBT. Então, as leis também são importantes, mas baseadas em fundamentos morais.

Uma de nossas tarefas mais importantes é como comunicar isso, pois pessoas como Donald Trump, ou Rodrigo Duterte [presidente das Filipinas], também dizem que estão aqui para defender valores. Dizem que querem proteger a civilização, sem qualquer vergonha de estar contra os direitos humanos. Temos de saber como fazer frente a isso. Se deixarmos esses populistas identificarem um certo grupo, como os muçulmanos, como excluídos da proteção, todo o conceito de direito universal começa ruir.

A defesa dos direitos humanos é uma pauta da esquerda?

Iain Levine: Essa associação acontece. Acontece, por exemplo, em Israel, onde a imprensa sempre diz “a organização esquerdista” etc [em relação à Human Rights Watch]. Eu fico realmente bravo, pois eu estudei economia política e entendo a diferença entre direita e esquerda, entendo as filosofias sobre o papel do governo. Agora, ser contra a tortura é assumir uma posição de direita ou de esquerda? Obviamente não é uma posição de um ou de outro. Você se coloca contra a tortura porque ela, moralmente, não é aceita.

Quem foi o maior advogado contra a tortura durante o período do governo de [George W.] Bush [2001-2009]? John McCain [senador que foi candidato derrotado nas primárias republicanas para a presidência dos EUA em 2000 e nas eleições presidencial 2008]. Por quê? Porque ele mesmo foi torturado [quando capturado no Vietnã, em 1967]. Ele é um conservador extremo, eu diria. Ele tem posições conservadoras sobre direitos reprodutivos e sobre LGBT, mas tomou uma posição firme contra a tortura.

Então, isso de dizer que direitos humanos é coisa de esquerda é algo completamente errado. Afinal, liberdade de imprensa, liberdade de expressão, são ideias de esquerda? Eu nem sei de onde vem essa ideia de que direitos fundamentais sejam de esquerda, não de direita.

O avanço conservador no mundo, mencionado pelo Sr., impõe aos direitos humanos o contexto mais difícil desde 1948, quando a Declaração Universal foi adotada?

Iain Levine: Provavelmente, sim. Há dois ou três exemplos para demonstrar. Existem hoje 65 milhões de refugiados e de deslocados internos no mundo. Esse é o maior número desde a Segunda Guerra Mundial. Esses números criaram uma crise política e até cultural em vários países, com demonstrações de xenofobia, de islamofobia, de nacionalismo muito perigoso. Isso vai contra os princípios de universalidade e de solidariedade, que são dois pilares do movimento de direitos humanos.

A segunda coisa é a guerra na Síria. Ela é perigosa não apenas pelo sofrimento que causou, com quase meio milhão de pessoas mortas, 12 milhões de deslocados internos, 7 milhões de pessoas que tiveram de deixar o país. Não tenho ideia de como será possível trazer de volta a paz, a justiça, a estabilidade na Síria.

Todo um sistema erguido depois da Segunda Guerra, depois do Holocausto, para tentar garantir um certo nível de proteção dos civis, tudo isso está falhando. Estamos no sétimo ano de guerra [na Síria] e não há qualquer processo de paz à vista, não há garantia de acesso humanitário, nenhuma expectativa de uma justiça civilizada. Em 1997, foi criado o Tribunal Penal Internacional exatamente para julgar esse tipo de situação. Por sete vezes, o Conselho de Segurança tentou criar mecanismo para julgar os piores crimes cometidos na Síria — pelo governo, pelo Estado Islâmico, pelos rebeldes — e todos esses esforços falharam.

As pessoas estão perdendo a confiança no sistema nternacional, estão recuando das Nações Unidas, recuando da União Europeia, da ideia de que a força militar não é a melhor forma de promover paz e desenvolvimento. Então, todo o sistema criado em 1948 está sendo duramente questionado. Cada vez mais há rejeição ao conceito de universalidade dos direitos.

Como o sr. vê o Brasil nesse contexto?

Iain Levine: Eu me decepcionei com o empenho da política externa brasileira em relação aos direitos humanos. Quando nós [da Human Rights Watch] começamos a pensar em estabelecer uma presença aqui no Brasil, na Índia e na África do Sul, há seis ou sete anos atrás, nossa análise era de que o Brasil estava se tornando um mercado emergente. Para nós, não importava o mercado como tal, mas o caráter de potência emergente.

Como nós já havíamos criado uma capacidade em relação aos poderes mais estabelecidos — em Londres, em Bruxelas, nos EUA e nas Nações Unidas em Nova Iorque e em Genebra —, consideramos fundamental criar uma capacidade semelhante aqui para não apenas continuar com o trabalho de pesquisa e de documentação de violações de direitos humanos cometidas dentro do Brasil, mas para começar a influenciar o comportamento do Brasil em política externa.

Nós esperávamos que o Brasil exercesse uma influência importante para a promoção e a proteção dos direitos humanos no mundo. Nós considerávamos isso muitíssimo importante, porque, quando os poderes ocidentais usam sua influência para promover os direitos humanos é muito bom, mas sempre há aquela velha acusação — às vezes justificável — de neocolonialismo, de os países do norte estarem sempre dizendo para os países do sul como eles devem se comportar. Portanto, achávamos que um poder do sul que falasse, por exemplo, sobre o que ocorre no Zimbábue, na Síria, no Afeganistão, na Venezuela, teria um certo impacto, pois ninguém pode dizer que o Brasil seja colonizador, o Brasil, ao contrário, sofreu com a influência dessa colonização.

Com toda franqueza, o Brasil nunca chegou [a esse patamar]. Lula saiu, Dilma nunca teve interesse na política externa, com exceção da área econômica. Depois, com todos os problemas de vocês, de corrupção, de impeachment, das perdas econômicas, me parece que, cada vez mais, o país está recuando de um papel que poderia ser influente.

Ainda com todos esses problemas, o Brasil ainda tem muito potencial. O Brasil é uma grande democracia, que tem um sistema Judiciário independente, tem imprensa livre, tem milhões de pessoas bem educadas e ativas, é um país no qual vigora o estado de direito e um país que tem a possibilidade e o potencial de exercer uma influência muito positiva, por meio de seu papel nas Nações Unidas, na Organização dos Estados Americanos, é um país que estava se convertendo em doador humanitário, mas encolheu.

No Brasil, o movimento conservador cresce sobretudo entre pessoas jovens, com boa renda e com boa educação. Isso é o contrário do que ocorre no mundo. Como o sr. interpreta essa diferença?

Iain Levine: Isso me surpreende muito, pois é exatamente o contrário do que ocorre nos EUA, onde a população que mais apoia Donald Trump é a população rural de cidades pequenas, menos escolarizada, pessoas mais velhas do que jovens. Então, é algo que me surpreende e que me preocupa bastante. A Human Rights Watch não toma nenhuma posição política a favor ou contra qualquer candidato. Entretanto, quando um candidato fala em favor da tortura e usa linguagem extremamente agressiva contra grupos étnicos, religiosos, pessoas LGBT, obviamente, nos preocupa o fato de que populações bem educadas apoiem essas ideias. É preocupante e é um desafio para nossa organização.

 

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