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Moçambique: Fuga em Massa após Alegados Abusos do Exército

6000 trocam Moçambique por condições precárias no Malawi

(Joanesburgo, 23 de Fevereiro de 2016) – O governo de Moçambique deve investigar com urgência as alegações de execuções sumárias, abusos sexuais e maus-tratos por parte das suas forças armadas na província de Tete, anunciou hoje a Human Rights Watch. Desde outubro de 2015, pouco depois de começarem as operações do exército para desarmar milícias ligadas ao principal partido da oposição de Moçambique, Resistência Nacional Moçambicana ou RENAMO, pelo menos 6000 pessoas fugiram para o Malawi.

Em meados de fevereiro de 2016, várias dezenas de requerentes de asilo no campo improvisado de Kapise, no Malawi, relataram à Human Rights Watch ter fugido dos abusos do exército e que por isso, têm medo de voltar para casa. Mulheres descreveram como os seus maridos foram sumariamente executados, ou amarrados e levados para paradeiro desconhecido por soldados de uniforme, alguns deles transportados por veículos do exército. Em vários casos, os soldados incendiaram casas, celeiros e campos de cultivo, acusando os residentes locais de alimentar e apoiar as milícias.

O campo sobrelotado é de difícil acesso e, aquando da visita da Human Rights Watch, dispunha apenas de dois poços de furo e quatro latrinas de fossa para atender às necessidades do número crescente de residentes.  © 2016 Human Rights Watch


“O exército de Moçambique não pode usar a desculpa de desarmar as milícias da RENAMO para cometer abusos contra as mesmas ou contra os residentes locais”, afirmou Zenaida Machado, pesquisadora da Human Rights Watch para Moçambique. “O governo deve iniciar, com urgência, uma investigação às alegações de abusos e garantir que as operações de desarmamento são conduzidas de acordo com a lei.”

As tensões entre o partido do governo, Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o partido da oposição, RENAMO, têm vindo a aumentar desde que a FRELIMO ganhou as eleições em Outubro de 2014. Antes disso, duas décadas após a guerra civil que devastou o país, a RENAMO iniciara uma insurgência de baixo nível. Em 2014, houve um novo acordo de paz, mas a RENAMO afirma que o governo não foi capaz de integrar os soldados rebeldes no exército e na polícia, nos termos do acordo. O governo diz que a RENAMO se recusou a entregar uma lista das milícias a integrar no exército nacional. A província de Tete é um reduto da RENAMO rico em carvão na fronteira com o Malawi.
 
Mulheres e raparigas num dos dois únicos poços de furo no campo sobrelotado de Kapise, no Malawi, que serve atualmente mais de 6000 pessoas.  © 2016 Human Rights Watch

Uma mulher de 20 anos da aldeia de Ndande disse que, em 7 de fevereiro, a sua família foi acusada de alimentar a milícia da RENAMO, por cinco soldados do governo. Relatou que o marido foi preso e agredido na cabeça com a coronha da arma de um soldado, tendo ficado a sangrar. Pouco depois, ela ouviu tiros e viu que o marido tinha sido alvejado à queima-roupa pelos soldados. Ela fugiu com os dois filhos e escondeu-se nas proximidades, perto do rio Mpandwe, tendo atravessado a fronteira para o Malawi na mesma noite.

Uma mulher de 22 anos de Ndande disse ter visto o marido ser detido por soldados. Quando, mais tarde, encontrou a roupa do mesmo perto do local onde fora capturado, acreditou ter sido assassinado. “Os meus familiares disseram-me para guardar a roupa porque ele ainda podia andar por lá”, disse. “Mas quando lhe ligo, não atende o telefone.” Ela acabou por fugir para o Malawi com os filhos.

Um homem de 33 anos afirmou ter sido detido durante várias horas a 5 de Fevereiro, em Ncondezi, distrito de Moatize. Disse ter sido repetidamente agredido com um sjambok, um chicote de couro pesado, por soldados que o acusaram de roubar e de pertencer à milícia da RENAMO. Mais tarde, conseguiu fugir e atravessar a fronteira para o Malawi. Na aldeia de Madzibawe, em Dezembro de 2015, os soldados detiveram um homem que acusaram de ser membro da milícia da RENAMO, colocaram-lhe uma corda ao pescoço e infligiram-lhe cortes na cabeça com uma faca de grande dimensão, ferindo-o com gravidade, relatou uma testemunha.

Um homem de 74 anos de Ndande, que estivera refugiado no Malawi durante a guerra civil de Moçambique que terminou em 1992, disse: “Agora que voltaram os confrontos, a vida perdeu o valor. Por isso, decidimos partir para o Malawi em busca de segurança. […] Cheguei no mês passado só com a roupa do corpo. Os soldados do governo incendiaram-me a casa e tudo o que tinha. Também incendiaram muitas outras casas e campos de cultivo na minha aldeia.”

A Human Rights Watch também ouviu relatos credíveis de violência e abusos sexuais, embora as mulheres e raparigas tivessem demonstrado relutância em falar sobre o que lhes aconteceu com medo do estigma. Uma mulher de 19 anos, grávida, da aldeia de Madzibawe, relatou ter-se cruzado com dois soldados a caminho do mercado, em Outubro, que lhe ordenaram que se deitasse, levantaram-lhe a saia e abriram-lhe as pernas. Um dos soldados utilizou um pau para tocar nos órgãos genitais e seios da mulher, ordenando-lhe que dissesse o nome de cada uma das partes. Eventualmente, deixaram-na levantar-se, pontapearam-na nas costas e mandaram-na embora. Posteriormente, a mulher fugiu para o Malawi, tendo passado mais de um mês no mato até alcançar a segurança.

Em 18 de Fevereiro, o Alto Comissariado das Nações Unidos para os Refugiados (ACNUR) declarou que mais de 6000 requerentes de asilo, na sua maioria mulheres e crianças, foram registados no Malawi desde meados de Dezembro. A maioria está alojada num campo improvisado em Kapise, no distrito de Mwanza, a 300 metros da fronteira com Moçambique. Este campo sobrelotado é de difícil acesso e, aquando da visita da Human Rights Watch, dispunha apenas de dois furos de água e quatro latrinas de fossa para atender às necessidades do número crescente de residentes. O campo não tinha quaisquer instalações escolares.

O governo do Malawi não está a registar os recém-chegados como requerentes de asilo, nem tem envidado quaisquer esforços para melhorar as condições do campo. Pelo contrário, os oficiais têm deixado claro que querem que os residentes regressem à casa. Um alto oficial do Ministério da Administração e Segurança Interna, Beston Chisamire, disse à Human Rights Watch: “Verificámos que os refugiados vêm do distrito moçambicano de Moatize, na província de Tete. Não temos intenção alguma de abrir um campo de refugiados. O nosso foco é a sua repatriação.”

Na sua declaração de 18 de Fevereiro, o ACNUR instou tanto Moçambique como o Malawi a respeitar o direito dos recém-chegados de requerer asilo, e levantou preocupações sobre a pressão a que estão sujeitos para regressar à casa. Funcionários do governo moçambicano já visitaram o campo de Kapise pelo menos três vezes desde meados de janeiro para falar com os requerentes de asilo.

Os residentes do campo com quem a Human Rights Watch falou afirmaram que não querem regressar a Moçambique por temerem a violência e o assédio dos soldados estatais. Negaram as alegações do governo de Moçambique de que é seguro regressar. “Por que razão deixaria a minha casa, os meus campos e os meus bens para vir viver para este campo sobrelotado se fosse seguro ficar em Moçambique?”, disse uma idosa.

Em Janeiro, o governo de Moçambique negou que os recém-chegados ao Malawi fossem refugiados de Moçambique, alegando tratarem-se de agricultores que atravessavam a fronteira regularmente. Em 17 de Fevereiro, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Moçambique, embaixador António Matonse, disse à Human Rights Watch que, no seguimento de uma visita de alto nível à província de Tete e ao campo de Kapise em Malawi, o governo concluiu que “tensões militares, confrontos esporádicos e a seca grave” podem ter levado as pessoas a fugir.

“O governo do Malawi deve permitir de imediato que os requerentes de asilo apresentem pedidos de proteção e facilitar ajuda de emergência num campo de refugiados funcional e seguro”, afirmou Dewa Mavhinga, investigador sénior da Human Rights Watch para o sul de África. “Os governos de Moçambique e do Malawi não devem tentar enviar as pessoas para casa sem primeiro garantir que é seguro fazê-lo.”
 

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