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Sempre que um recurso criminal chega às mãos da juíza Kenarik Boujikian, ela confere um fato básico: se o preso já cumpriu sua sentença e permanece encarcerado. Ela me disse que no último ano ela determinou a soltura de aproximadamente 50 pessoas que estavam atrás das grades, ainda que já tivessem cumprido sua pena. A manutenção da prisão era ilegal, arbitrária e uma violação dos direitos fundamentais dos detidos.

No entanto, em vez de receber aplausos, a juíza Kenarik enfrenta um processo disciplinar que pode resultar em uma sanção desde a advertência até a aposentadoria compulsória. Vinte e cinco desembargadores decidirão nesta quarta (3) seu destino.

Em agosto, um magistrado instaurou uma representação contra Kenarik alegando que ela violou o regimento interno do Tribunal de Justiça de São Paulo ao expedir alvarás de soltura em dez casos, ao invés de remeter a questão para o colegiado de três juízes que decidiria sobre os recursos.

A questão sobre se o regimento do tribunal foi violado é, na melhor das hipóteses, uma distração do verdadeiro problema. A representação contra Kenarik reflete a crença amplamente difundida entre alguns juízes, policiais e promotores de que o encarceramento em massa é a solução para o grave problema da criminalidade no Brasil.

Essa crença tem contribuído para a crise nas prisões brasileiras, que hoje abrigam 61 por cento mais pessoas do que sua capacidade, em celas insalubres e violentas que são um terreno fértil para o recrutamento por facções criminosas.

A juíza Kenarik acredita que ela não só pode como tem a obrigação legal de expedir alvarás de soltura sempre que verificar que um preso já cumpriu sua sentença. A Constituição Federal diz que o Estado indenizará a pessoa que ficar presa "além do tempo fixado na sentença".

Em 3 dos 10 casos em questão, o Ministério Público interpôs recurso requerendo sentenças mais longas. Mas os três presos já tinham cumprido suas penas, e exigir que eles esperassem na prisão até que os recursos fossem decididos seria ilegal.

Ainda pior, nos outros casos, os recursos foram interpostos pelos próprios presos, questionando as penas a eles impostas. Ou seja, não havia qualquer possibilidade de terem que servir mais tempo na prisão.

De 2008 a 2014, o Conselho Nacional de Justiça identificou pelo menos 48.000 pessoas presas mesmo depois de terem cumprido suas penas. Por exemplo , J. P. deveria ter sido liberado em 2004 de uma prisão de Pernambuco. No entanto, sem um advogado ou um familiar que pudesse auxiliá-lo, passou uma década a mais atrás das grades. Ele foi solto após uma defensora publica ter ingressado com um habeas corpus em seu favor.

Não é de todo claro que Kenarik tenha violado o regimento do tribunal; um parecer do professor de direito Maurício Zenoide de Moraes, encomendado pelos advogados de Kenarik, concluiu que não. Entretanto, mesmo se houvesse qualquer violação processual, seria inaceitável que pessoas que já cumpriram suas penas sejam obrigadas a aguardar, atrás das grades, que três juízes encontrem tempo para examinar seus processos.

Kenarik acredita que só a abertura de processo disciplinar contra ela já mandou um recado a todos os juízes do estado que pensem duas vezes antes de liberarem presos, mesmo aqueles detidos ilegalmente. Priorizar a punição ao invés de defender o Estado de Direito é a antítese do que o Brasil precisa para enfrentar as mazelas em suas prisões.

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