“Esta é a sala de matemática, mas isto não é mais uma sala de aula — isto é um bunker do Exército”, exclama a menina. Na sua voz há um tom de desespero e desolação. “Eu tinha muito orgulho do meu Exército, mas, ao ver minha escola neste estado, fico muito envergonhada dele.”
Essa fala é de Malala Yousafzai, menina de 17 anos vencedora do Prêmio Nobel da Paz, e está registrada em um documentário sobre sua vida, filmado antes de o Talibã tentar matá-la.
Em nossas pesquisas pelo mundo, vemos, com frequência, grupos transformarem escolas em bases militares, cercando espaços recreativos com arame farpado, enchendo salas de aula com camas para soldados, montando sentinelas no topo das escolas para vigiar as redondezas, posicionando franco-atiradores nas janelas, armazenando rifles nos corredores e granadas embaixo das mesas e estacionando veículos blindados nas quadras esportivas.
Esta prática transforma escolas em alvos de ataque e coloca a vida de estudantes e professores em risco. Alunos são expostos a abusos sexuais, trabalho e recrutamento forçados e têm de escolher entre ficar em casa e ter sua educação interrompida ou estudar em meio a fogo cruzado.
Na última década, Forças Armadas — e até forças de paz — usaram escolas como bases militares em ao menos 25 países. Este é um fenômeno global que, portanto, requer uma solução global.
Apesar da existência de uma ampla legislação internacional que exige que civis sejam poupados de danos oriundos de conflitos, não há normas claras que protejam as escolas de utilização militar.
Semana que vem, tudo isto começará a mudar. Os embaixadores de Noruega e da Argentina apresentaram em Genebra uma proposta para proteger escolas do uso militar durante guerras. As Diretrizes para a Proteção de Escolas contra o Uso Militar reúne obrigações já existentes nas leis de guerra e no direito internacional, combinando-as com boas práticas.
O Brasil tem se destacado na discussão sobre esse assunto no plano internacional. Em 2011, enquanto membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, apoiou uma resolução exigindo que envolvidos em conflitos não adotem ações que impeçam o acesso de crianças à escola. No debate sobre a resolução, a embaixadora Regina Dunlop fez um apelo à comunidade internacional para que continuasse empreendendo esforços na proteção das crianças do “peso das guerras que os adultos escolhem lutar”. As novas diretrizes são um passo nessa direção. Em Genebra, o Brasil deveria anunciar que participará de uma conferência organizada pela Noruega para 2015, na qual os países endossarão publicamente essas Diretrizes.
Mas o apoio às diretrizes é apenas um passo. O Brasil deveria adotar medidas para sua incorporação definitiva nas doutrinas e práticas militares. Como participantes das missões de paz da ONU, as Forças Armadas brasileiras já estão familiarizadas com a proibição de 2012 do uso de escola por forças de paz.
Em carta enviada à Human Rights Watch em 2010, o então vice-chefe do Estado-Maior do Exército, Alberto Sant'Ana, informou que “durante as operações militares, inexiste a previsão dessa ação [o uso e ocupação de escolas para abrigo militar] como prioridade de escolha do comandante”.
O Brasil poderia ainda contribuir para os esforços internacionais usando sua liderança perante os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para influenciá-los na adoção das diretrizes e das mudanças necessárias para melhor proteger escolas.
A luta de Malala contra o uso das escolas pelo Exército alerta o mundo de que as próprias crianças sabem que algo está errado nesta prática comum e perversa. Ao adotar as diretrizes e incentivar outros a fazê-lo, o Brasil ajudará a garantir o direito das crianças à educação, mesmo em tempos de guerra, essencial para a sua segurança, senso de normalidade e desenvolvimento.
Bede Sheppard é diretor para os direitos das crianças na Human Rights Watch.
Maria Laura Canineu é diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch.