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Brasil: Cumpra sentenças sobre violência policial

Corte Interamericana ordena melhores investigações e supervisão da polícia

Families of victims and residents march against police abuse in the context of an operation in Baixada Santista, state of São Paulo, Brazil, March 3, 2024. © 2024 Cesar Muñoz/Human Rights Watch

(São Paulo) – O governo brasileiro deveria cumprir duas novas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos que consideraram o Brasil responsável por graves violações de direitos cometidas pela polícia, disse hoje a Human Rights Watch.

As decisões publicadas em 14 de março de 2024, em casos envolvendo mortes decorrentes de ação policial nos estados de São Paulo e Paraná, chegam em meio a incursões da polícia paulista que deixaram ao menos 45 pessoas mortas no último mês e meio na Baixada Santista. O Brasil ainda não cumpriu integralmente outra decisão da Corte de seis anos atrás sobre mortes pela polícia.

“As decisões da Corte Interamericana são sobre casos que aconteceram há mais de 20 anos, mas o problema do uso ilegal da força letal pela polícia continua até hoje”, disse César Muñoz, diretor da Human Rights Watch no Brasil. “As autoridades brasileiras deveriam adotar medidas imediatas para cumprir as decisões da Corte e dar um fim aos abusos policiais, que prejudicam a segurança pública e impactam gravemente as comunidades e a própria força policial.”

O caso do Paraná trata-se da morte pela polícia militar de Antonio Tavares Pereira, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e ferimentos em ao menos 69 outras pessoas em 2 de maio de 2000. A polícia havia bloqueado uma rodovia perto de Campo Largo para impedir que cerca de 1.500 trabalhadores rurais participassem de uma marcha pela reforma agrária em Curitiba. Os policiais usaram armas letais e menos letais contra o grupo. O Ministério Público Militar não apresentou denúncia; o Ministério Público do estado apresentou, mas o tribunal determinou o arquivamento da ação.

O segundo caso envolve uma emboscada por ao menos 53 policiais, em 5 de março de 2002, que matou 12 suspeitos em uma rodovia próxima à Sorocaba, no estado de São Paulo. Dois informantes da polícia teriam persuadido os homens a roubar um avião com dinheiro, que na verdade não existia, e os homens estavam a caminho do aeroporto. A polícia militar disparou centenas de tiros durante a operação, conhecida como “Castelinho”. Um policial ficou levemente ferido. A promotoria disse que o objetivo da operação era matar os suspeitos e denunciou os 53 policiais militares por homicídio, mas o tribunal os absolveu alegando que tinham agido em legítima defesa.

A Corte Interamericana observou falhas graves nas investigações policiais em ambos os casos e disse que o Brasil deveria garantir investigações independentes. No caso Castelinho, a Corte constatou que “as autoridades policiais e judiciais atuaram com tamanho grau de negligência na preservação e coleta dos elementos de prova, que leva o Tribunal à conclusão de que buscavam impedir a investigação dos fatos e procurar que a execução extrajudicial de 12 pessoas no âmbito de uma operação policial permanecesse em absoluta impunidade.”

No caso Tavares Pereira, a Corte ordenou ao Brasil que garanta que a justiça militar não tenha competência em relação a crimes cometidos contra civis pela polícia militar. No caso Castelinho, a Corte determinou ao Brasil que garanta ao ministério público de São Paulo os recursos necessários para investigar mortes cometidas por policiais militares e civis; forneça aos órgãos de controle interno e externo da polícia as gravações das câmeras corporais e de geolocalização dos policiais; e remova temporariamente da sua função ostensiva todo agente policial envolvido em morte.

As sentenças foram publicadas em um momento em que a polícia continua realizando incursões letais na Baixada Santista, no estado de São Paulo. Em 2023, 28 pessoas foram mortas na Baixada Santista durante os 40 dias da operação Escudo, iniciada após o homicídio de um policial. A Human Rights Watch identificou falhas significativas na investigação inicial das mortes causadas pela polícia.

Desde a morte de outro policial em 2 de fevereiro de 2024, a polícia tem feito novas incursões em comunidades da região, matando ao menos 45 pessoas no âmbito da operação até o momento.

A Human Rights Watch escutou as declarações de familiares e testemunhas de mortes recentes, algumas na presença da ouvidoria da polícia e de outras organizações da sociedade civil durante visitas a comunidades afetadas. A Human Rights Watch encontrou fortes indícios de uso ilegal da força em alguns casos e recebeu denúncias críveis de intimidação, ameaças, adulteração de provas e outras ações da polícia para obstruir as investigações.

A polícia brasileira matou 6.381 pessoas em 2023, a grande maioria delas negras. Embora algumas mortes sejam em legítima defesa, muitas resultam do uso ilegal da força. A Human Rights Watch documentou dezenas de casos em que a polícia não conduziu investigações adequadas, inclusive não visitando o local dos fatos; e que a análise forense não seguiu os parâmetros internacionais.

A precariedade das investigações realizadas pela polícia é um problema antigo.

Em 2017, a Corte Interamericana concluiu que o Brasil não garantiu investigações independentes e imparciais sobre as mortes de 26 pessoas na comunidade de Nova Brasília, no Rio de Janeiro, durante duas operações da polícia civil em 1994 e 1995. A Corte concluiu que a investigação da polícia civil foi “coberta de omissões e negligência”, que não foram realizadas “as mínimas diligências necessárias”, e que houve uma “completa falta de diligência e de independência”.

A corte ordenou ao Brasil em 2017, entre outras medidas, a publicação anual de um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia e com informações sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente. Determinou também ao Estado que garanta que mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial sejam investigados por “um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente”, com o apoio pericial “alheio” ao órgão de segurança que supostamente cometeu o abuso.

Em uma resolução de 2021 sobre o cumprimento das disposições estabelecidas na sentença, a Corte Interamericana disse que tanto o Estado brasileiro quanto os representantes das vítimas concordaram que o Ministério Público seria o órgão independente que deveria investigar mortes e outros abusos cometidos por policiais no Brasil.

As determinações da Corte no caso Nova Brasília melhorariam substancialmente a investigação de mortes cometidas pela polícia, mas até hoje o Brasil não cumpriu as medidas integralmente. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou dados nacionais sobre mortes decorrentes de intervenção policial em 2023, mas o banco de dados não inclui informações sobre investigações. A polícia civil continua a investigar as mortes cometidas por policiais e as perícias ainda fazem parte da secretaria de segurança pública dos estados ou da própria polícia civil, o que não garante a necessária independência das investigações.

O Brasil tem a obrigação de cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Enquanto os governadores estaduais supervisionam suas polícias, o governo federal tem autoridade para coordenar os esforços dos estados e desenvolver políticas públicas de âmbito nacional. O governo Lula deveria promover reformas para garantir que as perícias sejam totalmente independentes, além de trabalhar com a Procuradoria-Geral da República para publicar dados completos sobre mortes cometidas pela polícia e as investigações sobre esses casos.

Uma resolução que garantiria que os promotores liderem as investigações de todas as mortes pelas forças de segurança, ao invés de deixar que a polícia investigue a própria polícia, está sendo discutida no Conselho Nacional do Ministério Público. O Conselho deveria aprová-la, disse a Human Rights Watch.

Os governadores dos estados também deveriam adotar medidas imediatas para acabar com abusos da polícia, inclusive exigindo a utilização de câmeras nos uniformes e o cumprimento de protocolos, além de adotar diretrizes para prevenir operações vingança após a morte de um policial.

“O governo do estado de São Paulo tem insensivelmente demonstrado desprezo pela vida das pessoas mortas durante operações policiais”, disse Muñoz. “O governador deveria responder à decisão da Corte Interamericana elaborando uma nova política de segurança pública que previna crimes e proteja a saúde e a vida dos cidadãos e dos policiais.”

 

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