(Nova York, 11 de janeiro de 2024) – As lideranças globais não assumiram posições fortes para proteger os direitos humanos em 2023, ano marcado por algumas das piores crises e desafios da história recente, com consequências letais, disse hoje a Human Rights Watch em seu Relatório Mundial 2024. Governos deveriam parar de promover uma diplomacia ‘transacional’ e fazer o seu melhor para defender os princípios universais de direitos humanos.
O renovado conflito armado entre o governo israelense e o Hamas causou enorme sofrimento, assim como os conflitos na Ucrânia, Mianmar, Etiópia e no Sahel. O ano de 2023 foi o mais quente desde que os registos globais começaram em 1880, e gigantescos incêndios florestais, secas e tempestades causaram estragos em comunidades de Bangladesh à Líbia e Canadá. A desigualdade econômica aumentou em todo o mundo, assim como o descontentamento com decisões políticas que têm deixado tantas pessoas sofrendo para tentar sobreviver.
“O sistema internacional em que confiamos para proteger os direitos humanos está sob ameaça, uma vez que lideranças mundiais desviam o olhar quando princípios universais de direitos humanos são violados,” disse Tirana Hassan, diretora executiva da Human Rights Watch. “Toda vez que um país ignora esses princípios universais e globalmente aceitos, alguém paga um preço, e esse preço é, às vezes, pago com vidas humanas.”
Em seu Relatório Mundial 2024, de 740 páginas (na versão em inglês), sua 34ª edição, a Human Rights Watch analisa a situação de direitos humanos mais de 100 países. No capítulo introdutório, Hassan afirma que 2023 foi um ano marcante não apenas pela supressão dos direitos humanos e atrocidades cometidas em guerras, mas também pela indignação seletiva de governos e pela diplomacia transacional que acarretou custos elevados para os direitos daqueles sem um assento nas mesas de negociação. Mas ela também destaca sinais de esperança, mostrando a possibilidade de um caminho diferente, e insta governos a cumprirem de forma coerente as suas obrigações de direitos humanos.
A seletividade de critérios dos governos na forma com que tratam os direitos humanos, não apenas coloca em risco inúmeras vidas, como também enfraquece a confiança nas instituições responsáveis por fazer cumprir e proteger os direitos, disse a Human Rights Watch. Quando governos condenam veementemente os crimes de guerra do governo de Israel contra civis em Gaza, mas silenciam frente aos crimes contra a humanidade do governo chinês em Xinjiang, ou exigem punições internacionais em relação aos crimes de guerra russos na Ucrânia, ao mesmo tempo que minimizam a responsabilização dos EUA pelos abusos no Afeganistão, enfraquecem a crença na universalidade dos direitos humanos e na legitimidade das leis destinadas a protegê-los.
Os governos têm achado mais fácil ignorar questões de direitos humanos no âmbito internacional, em parte porque as violações que cometem no âmbito doméstico não têm sido contestadas pela comunidade internacional, disse a Human Rights Watch.
As crises humanitárias e de direitos humanos têm levado muitos a questionar a efetividade dos direitos humanos, quando governos abusivos são capazes de se beneficiar de um endosso tímido de uma abordagem de direitos por governos mais democráticos e respeitadores dos direitos, disse a Human Rights Watch. Organizações da sociedade civil, movimentos de base e defensores de direitos humanos podem ajudar a restabelecer a proteção dos direitos humanos como o caminho para construir sociedades prósperas e inclusivas.
Muitos governos que condenaram os crimes de guerra do Hamas têm sido tímidos ao responder aos crimes cometidos pelo governo israelense. A relutância em denunciar abusos do governo israelense decorre da recusa dos Estados Unidos e da maioria dos países membros da União Europeia em pedir o fim do bloqueio de 16 anos imposto à Gaza pelo governo israelense.
O comprometimento na proteção dos direitos humanos em nome da política é claro quando muitos governos não se manifestam sobre a intensificação da repressão exercida pelo governo chinês. A perseguição cultural e detenção arbitrária de um milhão de uigures e outros muçulmanos turcomenos pelas autoridades chinesas constituem crimes contra a humanidade; ainda assim, muitos governos, incluindo de países predominantemente muçulmanos, permanecem em silêncio.
No Sudão, que mergulhou em um conflito armado em abril de 2023, quando os dois generais sudaneses mais poderosos começaram a disputar o poder, as Nações Unidas fracassaram em impedir os abusos massivos contra civis, principalmente na região de Darfur. O Conselho de Segurança da ONU encerrou sua missão política no Sudão por insistência do governo sudanês, acabando com o que restou da capacidade da ONU no país para proteger civis e denunciar publicamente a situação de direitos humanos. Ademais, também não fez quase nada para combater a intransigência do governo sudanês em cooperar com o Tribunal Penal Internacional (TPI).
Nos EUA, o Presidente Joe Biden mostrou pouco interesse em promover a responsabilização de perpetradores de violações que são fundamentais para sua agenda doméstica ou aqueles que estão sob a influência da China. Aliados dos EUA como a Arábia Saudita, a Índia e o Egito, continuam a violar os direitos de suas populações em grande escala.
A UE tem contornado suas obrigações de direitos humanos, empurrando solicitantes de refúgio e migrantes de volta para outros países ou firmando acordos com governos abusivos como a Líbia e a Turquia para manter os migrantes afastados. Os governos democráticos na região Ásia-Pacífico, incluindo o Japão, a Coréia do Sul e a Austrália, desprestigiam consistentemente os direitos humanos em nome de alianças militares e comerciais.
Sob o governo do primeiro-ministro Narendra Modi, a democracia da Índia deslizou em direção à autocracia, com autoridades perseguindo minorias, aumentando a repressão e desmantelando instituições independentes.
Na Tunísia, o presidente Kais Saied eliminou o sistema de freios e contrapesos. O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tem se aproveitado dos altos níveis de criminalidade visando estabelecer políticas repressivas de segurança pública a fim de acumular poder. Em Bangladesh, o governo da primeira-ministra Sheikh Hasina ordenou a prisão de mais de 10 mil líderes e apoiadores da oposição antes das eleições de janeiro de 2024.
Mas, assim como estas ameaças estão interconectadas, também está o poder do sistema de direitos humanos para proteger a liberdade e a dignidade das pessoas.
Em uma decisão histórica, em novembro, o Tribunal Internacional de Justiça ordenou ao governo sírio que tome todas as medidas para prevenir a tortura e outros abusos. O parlamento japonês aprovou sua primeira lei para proteger lésbicas, gays, bissexuais e transexuais de “discriminação injusta”. No México, uma coalizão da sociedade civil convenceu o Congresso a aprovar uma lei que estabelece a plena capacidade jurídica, beneficiando milhões de pessoas com deficiência e idosas.
Em março, o TPI emitiu mandados de prisão contra o Presidente russo, Vladimir Putin, e sua comissária para os direitos das crianças por crimes de guerra relacionados com a transferência forçada de crianças, dos territórios ocupados da Ucrânia para a Rússia. O Supremo Tribunal Federal do Brasil confirmou os direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionais, que são uma das barreiras mais eficazes contra o desmatamento na Amazônia.
E, em novembro, o mais alto tribunal do Reino Unido concluiu por unanimidade que Ruanda não é um país seguro para o governo mandar solicitantes de refúgio, derrubando um acordo que na prática transferia as responsabilidades de refúgio do Reino Unido para Ruanda.
“As crises de direitos humanos ao redor do mundo demonstram a urgência de aplicar princípios de longa data e mutuamente acordados do direito internacional dos direitos humanos em todo o mundo”, disse Hassan. “A diplomacia embasada em princípios, por meio da qual os governos colocam suas obrigações em matéria de direitos humanos no centro das suas relações com outros países, pode influenciar condutas opressivas e ter um impacto significativo para as pessoas cujos direitos estão sendo violados.”