O Sistema de Direitos Humanos Está Sob Ameaça: Um Chamado à Ação
Basta olhar para os desafios dos direitos humanos em 2023 para entender o que precisamos fazer de diferente em 2024. Foi um ano marcante, não só pela supressão dos direitos humanos e pelas atrocidades em guerras, mas também pela indignação seletiva dos governos e pela diplomacia transacional, que trouxe profundos custos para os direitos humanos daqueles sem um assento na mesa de discussão. Mesmo assim, em meio à escuridão, vimos sinais de esperança, mostrando a possibilidade de um caminho diferente.
As renovadas hostilidades entre Israel e o Hamas e no Sudão causaram um enorme sofrimento, assim como os conflitos em curso na Ucrânia, Mianmar, Etiópia e no Sahel. Governos tiveram que lidar com o ano mais quente já registrado e com a onda de incêndios florestais, secas e tempestades que causaram prejuízos para milhões de pessoas em Bangladesh, na Líbia e no Canadá. A desigualdade econômica aumentou em todo o mundo, assim como a raiva face às decisões políticas que deixaram muitas pessoas lutando para tentar sobreviver. Os direitos de mulheres e meninas e de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) enfrentaram duros retrocessos em muitos lugares, exemplificados pela perseguição de gênero levada a cabo pelo Talibã no Afeganistão.
Os motores destas crises de direitos humanos e suas consequências muitas vezes transcendem as fronteiras e não podem ser resolvidos por governos agindo sozinhos. A compreensão e a resposta a estas ameaças devem estar enraizadas nos princípios universais dos direitos humanos internacionais e do estado de direito. Estas ideias construídas com base em histórias humanas compartilhadas foram acordadas por nações de todas as regiões há 75 anos, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a base para todas as convenções e tratados contemporâneos de direitos humanos.
Esta fundação é necessária, agora, mais do que nunca. Mas, este mesmo sistema em que confiamos para proteger os direitos humanos das pessoas em todo o mundo está sob ameaça. Cada vez que um governo ignora ou rejeita estes princípios universais e globalmente aceitos, alguém paga um preço – com suas liberdades e direitos, com sua saúde ou meios de subsistência e, por vezes, com suas vidas.
Governos que poderiam desempenhar um papel na melhoria dos direitos humanos frequentemente adotam uma seletividade de critérios na aplicação do sistema de direitos humanos, o que enfraquece a confiança nas instituições responsáveis pela aplicação e proteção dos direitos. Governos que condenam veementemente os crimes de guerra do governo de Israel contra civis em Gaza, mas silenciam quanto aos crimes contra a humanidade do governo chinês em Xinjiang, ou que exigem punições internacionais pelos crimes de guerra russos na Ucrânia, ao mesmo tempo que desencorajam a responsabilização dos EUA pelos abusos cometidos no Afeganistão, enfraquecem a crença na universalidade dos direitos humanos e na legitimidade das leis destinadas a protegê-los.
Na diplomacia transacional, os governos ignoram os benefícios das relações de longo prazo, construídas nos princípios dos direitos humanos, para alcançar ganhos comerciais ou de segurança imediatos e de curto prazo. Quando os governos escolhem quais obrigações cumprir, perpetuam a injustiça não só no presente, mas no futuro para aqueles cujos direitos têm sido sacrificados – e podem encorajar governos abusivos a ampliar o alcance da sua repressão. A base moral dos direitos humanos internacionais exige consistência e firmeza.
Os governos têm achado mais fácil ignorar as questões de direitos humanos na arena internacional, em parte porque a comunidade internacional não contesta suas violações de direitos humanos na esfera doméstica. Em todas as regiões, autocratas têm trabalhado para corroer a independência de instituições vitais para a proteção dos direitos humanos e encolher o espaço para expressões de dissidência com o mesmo objetivo final: exercer poder sem restrições.
Mas, assim como estas ameaças estão interligadas, também está o poder do sistema de direitos humanos para cumprir a promessa de proteger a liberdade e a dignidade das pessoas, independentemente de quem sejam ou onde vivam. A proteção dos direitos humanos avançou em múltiplas frentes.
Após três anos de negociações diplomáticas e uma década de campanhas de grupos da sociedade civil, 83 países adotaram uma declaração política para melhor proteger civis do uso de armas explosivas em áreas povoadas durante conflitos armados. O compromisso internacional é o primeiro a abordar formalmente uma prática de longa data de países em conflito de utilizar bombardeamentos aéreos, artilharia, foguetes e mísseis em vilas, comunidades e cidades – a principal causa de mortes de civis durante conflitos armados em todo o mundo.
Esse compromisso vai além de simplesmente exigir um melhor cumprimento das leis da guerra, comprometendo seus signatários a adotarem políticas e práticas que previnam e respondam aos danos. Seis dos oito maiores exportadores de armas do mundo – Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Reino Unido e Coréia do Sul – adotaram a declaração, bem como 25 dos 31 Estados membros da OTAN.
Vários países avançaram na proteção de direitos de comunidades há muito marginalizadas. Após anos de pressão da sociedade civil, o parlamento japonês aprovou sua primeira lei para proteger as pessoas LGBT de “discriminação injusta. A Suprema Corte do Nepal instruiu as autoridades a reconhecerem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, enquanto considera um caso no qual são demandados direitos plenos de igualdade no casamento. No México, uma coalisão da sociedade civil convenceu o Congresso a aprovar uma lei que estabelece plena capacidade jurídica e o direito à tomada de decisão apoiada para todas as pessoas com mais de 18 anos, beneficiando milhões de pessoas com deficiência e idosos. Além disso, o Supremo Tribunal mexicano decidiu que o Congresso deverá eliminar as sanções penais federais para o aborto, o que significa que todos os equipamentos de saúde federais deverão prestar assistência ao aborto.
As crises humanitária e de direitos humanos têm levado que alguns questionem a eficácia do sistema de direitos humanos como modelo de proteção e de mudanças positivas – especialmente diante da indignação seletiva dos governos, da diplomacia transacional que procura ganhos a curto prazo, da crescente repressão transnacional e da disposição dos líderes autocráticos em sacrificar direitos para consolidar seu poder.
Mas isto não é motivo para desistir do sistema de direitos humanos, que permanece sendo o roteiro para a construção de sociedades prósperas e inclusivas. Os governos deveriam respeitar, proteger e defender os direitos humanos com a urgência, o vigor e a persistência necessários para enfrentar os desafios globais e existenciais que ameaçam a nossa humanidade comum.
O custo da indignação seletiva
Os ataques de 7 de outubro perpetrados por combatentes liderados pelo Hamas contra Israel foram um ataque terrível contra civis. O Hamas e outros grupos armados palestinos mataram deliberadamente centenas de civis, atiraram em famílias nas suas casas e fizeram mais de 200 reféns, incluindo crianças, pessoas com deficiência e idosos. Grupos armados palestinos lançaram milhares de foguetes contra as comunidades israelenses. Muitos países rapidamente e de forma justificada condenaram esses atos horríveis.
Em resposta, o governo de Israel cortou o acesso à água e eletricidade de 2,3 milhões de civis em Gaza e bloqueou a entrada de quase tudo, exceto uma pequena quantidade de combustível, alimentos e ajuda humanitária – uma forma de punição coletiva que constitui crime de guerra. O exército israelense ordenou que mais de um milhão de pessoas em Gaza evacuassem suas casas e bombardeou áreas densamente povoadas com armas pesadas, matando milhares de civis, incluindo crianças, e reduzindo quarteirões inteiros a escombros. Os ataques a áreas povoadas utilizando armas explosivas com efeitos de amplo alcance levantam sérias preocupações quanto a ataques indiscriminados, que são aparentes crimes de guerra. Israel utilizou fósforo branco, um produto químico que queima a pele humana e pode causar sofrimento para toda a vida, tanto em Gaza como no sul do Líbano.
Muitos dos governos que condenaram os crimes de guerra do Hamas têm sido tímidos em sua resposta aos crimes do governo israelense. A relutância destes governos em denunciar os abusos do governo israelense decorre da recusa dos EUA e da maioria dos países membros da União Europeia em pedir o fim do bloqueio ilegal de 16 anos à Gaza, imposto pelo governo israelense, e em reconhecer os crimes contra a humanidade de apartheid e perseguição em curso contra os palestinos.
O comprometimento na proteção dos direitos humanos em nome da política é claro quando muitos governos não se manifestam sobre a intensificação da repressão exercida pelo governo chinês, sobre a detenção arbitrária de defensores dos direitos humanos e o seu controle cada vez maior sobre a sociedade civil, os meios de comunicação e a Internet, especialmente em Xinjiang e no Tibete. A perseguição cultural levada a cabo pelas autoridades chinesas e a detenção arbitrária de um milhão de uigures e outros muçulmanos turcomenos constituem crimes contra a humanidade, mas muitos governos, inclusive em países predominantemente muçulmanos, permanecem em silêncio.
Esta indignação seletiva enfraquece os direitos humanos não só dos palestinos em Gaza e dos uigures na China, mas de qualquer pessoa em todo o mundo que necessite de proteção. Envia a mensagem de que vale a pena proteger a dignidade de algumas pessoas, mas não a de todos – que algumas vidas são mais importantes.
O efeito cascata destas inconsistências abala a legitimidade do sistema de regras em que confiamos para proteger os direitos de todos. Governos como a Rússia e a China procuram, então, transformar esta legitimidade enfraquecida em uma arma para remodelar uma ordem baseada em regras e despojá-la dos valores de direitos humanos, enfraquecendo o sistema que poderia promover sua responsabilização pelos seus inúmeros abusos.
Cada governo tem a responsabilidade de aplicar os princípios de direitos humanos para enfrentar as crises de direitos humanos. O povo do Sudão tem sofrido devido à ausência de atenção, compromisso e liderança internacionais para enfrentar os abusos generalizados no conflito do país.
Em abril de 2023, um conflito armado eclodiu no Sudão quando os dois generais sudaneses mais poderosos começaram a lutar entre si pelo poder. A luta pelo poder entre o líder das forças armadas, general Abdelfattah al-Burhan, e o líder das Forças de Apoio Rápido, general Mohamed “Hemedti” Hamdan Dagalo, desencadeou combates que resultaram em abusos massivos contra civis, principalmente na região de Darfur. Seus abusos espelharam aqueles cometidos nas últimas duas décadas por forças leais a ambos os generais, relativamente aos quais a responsabilização tem permanecido ilusória.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão por crimes cometidos, no passado, em Darfur, e o procurador do TPI anunciou, em julho, que os atuais crimes em Darfur estão sob sua jurisdição. No entanto, as autoridades sudanesas obstruíram repetidamente os esforços do TPI, e o Conselho de Segurança das Nações Unidas não fez quase nada para combater a intransigência do governo. A impunidade resultante – exceto no caso do julgamento de um líder de milícia no TPI – tem alimentado repetidos ciclos de violência no Sudão, incluindo o conflito atual. Em 2023, quando membros do Conselho de Segurança incluíam os países africanos Gabão, Gana e Moçambique, a ONU encerrou a sua missão política no Sudão, por insistência do governo sudanês, pondo fim ao pouco que restava da capacidade da ONU de proteger civis e relatar publicamente a situação dos direitos humanos no país.
Os apelos para dar prioridade à responsabilização no Conselho de Direitos Humanos da ONU, após a retomada da violência no Sudão, encontraram forte resistência por parte dos Estados árabes, e foram amplamente rejeitados pelos governos africanos. Os governos ocidentais mostraram-se inicialmente relutantes em pressionar por um mecanismo de responsabilização no Sudão, não dispostos a comprometer os recursos ou esforços que tinham dedicado a um órgão semelhante para a Ucrânia, imediatamente após a invasão em grande escala pela Rússia em 2022.
Um grupo de países acabou por reunir votos suficientes para criar um mecanismo que pudesse coletar e preservar evidências de crimes, mas nenhum governo africano votou a favor, embora alguns tenham abstido. O governo sudanês deixou claro que não cooperará com o mecanismo, que funcionará fora do país.
Mas, ainda assim, governos africanos tomam medidas positivas em matéria de direitos humanos em algumas questões. Eles tendem a apoiar majoritariamente resoluções do Conselho de Direitos Humanos que abordam a situação dos direitos humanos na Palestina, enquanto os países ocidentais a elas se opõem. E em dezembro, o governo sul-africano pediu ao Tribunal Internacional de Justiça que determinasse se Israel violou as suas obrigações à Convenção do Genocídio de 1948 nas suas operações militares em Gaza. Também pediu ao tribunal que impusesse medidas provisórias ordenando a Israel que cessasse os atos que pudessem violar a Convenção do Genocídio enquanto o tribunal decidia sobre o mérito do caso.
Todos os governos podem demonstrar liderança em matéria de direitos humanos para proteger civis. O desafio – e a urgência – é fazê-lo de forma consistente, de maneira baseada em princípios, independentemente do perpetrador ou da vítima.
A miopia da diplomacia transacional
Os governos deveriam colocar o respeito pelos direitos humanos e pelo estado de direito no centro de suas políticas internas e nas decisões de política externa. Infelizmente, até mesmo governos que normalmente respeitam os direitos humanos, por vezes, tratam estes princípios fundamentais como opcionais, procurando “soluções” de curto prazo e politicamente convenientes, em detrimento da construção de instituições que seriam benéficas para a segurança, o comércio, a energia e a migração a longo prazo. Escolher a diplomacia transacional acarreta um custo humano que é pago não só dentro, mas cada vez mais além das fronteiras.
Exemplos de diplomacia transacional são abundantes.
O presidente dos EUA, Joe Biden, mostrou pouca disposição em promover a responsabilização de violadores de direitos humanos que são fundamentais para sua agenda doméstica ou que são vistos como baluartes da China. Aliados dos EUA, como a Arábia Saudita, a Índia e o Egito, violam os direitos dos seus povos em grande escala, ainda assim, não enfrentaram qualquer obstáculo para aprofundar seus laços com os EUA. O Vietnã, as Filipinas, a Índia e outras nações que os EUA querem como contrapontos à China foram recebidos na Casa Branca sem que tenham sido levados em conta os abusos de direitos humanos em seus países.
Da mesma forma, no que diz respeito à migração, Washington tem sido relutante em criticar o México, em quem se apoia para impedir a entrada de migrantes e solicitantes de refúgio nos EUA. A administração Biden e a do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, trabalharam em conjunto para expulsar ou deportar dezenas de milhares de migrantes dos EUA para o México e impedir que outros milhares cheguem aos EUA em busca de segurança, mesmo sabendo que são alvo de sequestro, extorsão, agressão e outros abusos no México. Biden tem, em grande parte, permanecido em silêncio, enquanto López Obrador tem tentado enfraquecer a independência do poder judiciário mexicano e de outros órgãos constitucionais, demonizado jornalistas e ativistas de direitos humanos e permitido que os militares coloquem obstáculo a sua responsabilização por terríveis abusos.
A UE tem o seu próprio tipo de diplomacia transacional, focada em contornar suas obrigações em matéria de direitos humanos para com os solicitantes de refúgio e migrantes, especialmente aqueles da África e do Oriente Médio. A resposta preferida dos Estados-Membros é empurrar as pessoas de volta para outros países ou fechar acordos com governos abusivos como a Líbia, a Turquia e, mais recentemente, a Tunísia para manter os migrantes fora do bloco europeu. Perversamente, alguns Estados-Membros da UE, incluindo França, Grécia, Hungria e Itália, adotaram medidas inclusive para punir aqueles que prestam ajuda e assistência humanitária a migrantes e solicitantes de refúgio que chegam por meios irregulares.
Os governos democráticos na região da Ásia-Pacífico, incluindo o Japão, a Coréia do Sul e a Austrália, repetidamente desprestigiam os direitos humanos em nome da garantia de alianças militares com parceiros de segurança, como a Tailândia e as Filipinas, procurando combater a influência do governo chinês com os governos do Sri Lanka e Nepal, e garantir acordos comerciais e econômicos, com poucos ou nenhum compromisso de direitos humanos, com economias em rápido crescimento, como o Vietnã e a Indonésia.
Conduzir diplomacia transacional com miopia é perigoso. Tentar separar os direitos humanos e o estado de direito de decisões mais “pragmáticas” desperdiça oportunidades valiosas para influenciar as práticas e políticas de governos que violam os direitos humanos. Pode também contribuir para novas violações de direitos humanos, incluindo a repressão transnacional.
O alcance alarmante da repressão transnacional
Governos cometem atos de repressão transnacional, também conhecidos como repressão extraterritorial, quando cometem violações de direitos humanos contra os seus nacionais que vivem no exterior ou contra seus familiares no país de origem. Embora este seja um fenômeno de longa data, o aumento das comunicações, das viagens e das novas tecnologias permitiu um incremento das práticas ilegais, incluindo deportações arbitrárias, sequestros e assassinatos.
Sob o primeiro-ministro Narendra Modi, a democracia da Índia deslizou em direção à autocracia, com as autoridades perseguindo minorias, reforçando a repressão e desmantelando instituições independentes, incluindo agências federais de investigação. Durante encontros com Modi, os seus interlocutores nos EUA, Austrália, Reino Unido e França não levantaram publicamente preocupações em matéria de direitos humanos, dando prioridade ao comércio e à segurança. O presidente francês Emmanuel Macron até concedeu a Modi a Legião de Honra, a mais alta ordem de mérito da França, durante as celebrações do Dia da Bastilha.
O silêncio sobre o agravamento do histórico de direitos do governo indiano parece ter encorajado o governo Modi a estender táticas repressivas além das fronteiras, inclusive para intimidar ativistas e acadêmicos da diáspora ou restringir sua entrada na Índia.
Em março, autoridades indianas bloquearam as mensagens de vários usuários canadenses importantes do Twitter, críticos do governo indiano. Em setembro, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, descreveu “alegações críveis” de que agentes do governo indiano estavam envolvidos no assassinato de um ativista separatista Sikh no Canadá, uma afirmação que as autoridades indianas negaram. E, em novembro, as autoridades dos EUA indiciaram um homem por uma conspiração fracassada com um funcionário do governo indiano para assassinar um ativista separatista Sikh nos EUA.
A repressão transnacional da Índia não é um exemplo isolado. Três décadas de impunidade face à repressão dos direitos civis e políticos por parte do governo ruandês encorajaram-no a reprimir a dissidência para além das suas fronteiras. À medida que Ruanda se tornou mais proeminente na cena internacional, liderando instituições multilaterais e se tornando um dos maiores fornecedores africanos de tropas de manutenção da paz, a ONU e os parceiros internacionais de Ruanda têm consistentemente fracassado no reconhecimento do alcance e da gravidade de suas violações dos direitos humanos.
O governo ruandês realizou mais de uma dúzia de sequestros ou tentativas de sequestros, desaparecimentos forçados, agressões, ameaças e assassinatos, bem como assédio contra cidadãos ruandeses considerados críticos do governo que vivem na Austrália, Bélgica, Canadá, França, Quênia, Moçambique, África do Sul, Tanzânia, Uganda, Reino Unido e EUA. Seus familiares que vivem em Ruanda também estão sob intenso escrutínio e são vulneráveis a violações de direitos humanos.
Da mesma forma, o fracasso dos países em reagir contra os abusos do governo chinês tacitamente permitiu que Pequim escalasse e exportasse sua repressão contra pessoas e instituições chinesas e não chinesas críticas ao Partido Comunista Chinês no poder. Estudantes e acadêmicos pró-democracia em universidades ocidentais têm enfrentado assédio, vigilância e intimidação por denunciarem abusos do governo chinês em Hong Kong, Tibete ou Xinjiang. O governo chinês pressionou os governos a devolverem à força defensores dos direitos humanos, como Lu Siwei, um advogado, do Laos. E, em um esforço flagrante para impedir as críticas internacionais sobre o desmantelamento da democracia pelo governo chinês em Hong Kong, as autoridades locais emitiram mandados de prisão infundados e recompensas de 1 milhão de dólares de Hong Kong (128 mil dólares) em relação a oito ativistas pró-democracia e ex-legisladores exilados.
Se governos repressivos conseguirem se safar, com táticas agressivas, para silenciar defensores dos direitos humanos, políticos exilados, jornalistas e críticos para além das suas fronteiras, então nenhum lugar será seguro.
Sacrificando os direitos humanos para consolidar o poder
Este ano, quase metade da população mundial poderão votar em eleições nacionais todo o mundo. Se forem livres e justas, as eleições podem ser uma expressão crítica da vontade pública no que diz respeito às prioridades e valores de um país. Mas uma governança responsável – nas quais governos priorizam os direitos humanos e o estado de direito em suas políticas e na tomada de decisões – depende de muito mais do que uma ida às urnas.
Instituições independentes e que respeitam os direitos humanos, incluindo o poder judiciário, ouvidorias e comissões de direitos humanos, podem fornecer proteção efetiva contra a tomada de decisões arbitrárias, conter excessos legislativos e defender o estado de direito. Uma sociedade civil ativa e independente é fundamental para garantir que as decisões daqueles que exercem o poder político sirvam ao interesse público. Mas a sociedade civil e as instituições necessárias para proteger os direitos e as sociedades livres tornaram-se novos campos de batalha para líderes autocráticos ao redor do mundo, que buscam eliminar o escrutínio das suas decisões e ações.
Na Tunísia, o presidente Kais Saied, eleito em 2019, tem gradualmente eliminado os sistemas de controle e fiscalização, inclusive enfraquecendo o poder judiciário, reprimindo adversários políticos e supostos críticos, e atacando a liberdade de expressão e de imprensa.
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tem usado a detenção em massa de pessoas, na sua maioria de baixa renda, como uma solução ostensiva para os elevados níveis de criminalidade no país. Ele tem utilizado desta repressão para tomar e consolidar o poder, um esforço facilitado pelo expurgo da Suprema Corte e pela captura constante do poder judiciário. O Congresso do Peru tem adotado medidas para enfraquecer outras instituições democráticas e limitar a responsabilização dos legisladores, inclusive procurando destituir membros do Conselho Nacional de Justiça, um órgão fundamental para proteger a independência de juízes, procuradores e autoridades eleitorais.
Na Guatemala, um sistema judiciário em grande parte cooptado por políticos e outros atores corruptos ameaçou anular a vitória eleitoral do presidente eleito Bernardo Arévalo, que fez campanha com base em uma plataforma anticorrupção. Na Nicarágua, onde o presidente Daniel Ortega e sua esposa, a vice-presidente Rosario Murillo, têm praticamente nenhum controle sobre seu poder, o governo usou legislação abusiva para fechar mais de 3.500 organizações não governamentais – cerca de 50% dos grupos registrados no país.
A lenta destruição destes freios e contrapesos vitais pode resultar em consequências alarmantes para os direitos humanos e o estado de direito.
Na Tailândia, o Tribunal Constitucional politicamente comprometido subverteu efetivamente a vontade do povo tailandês nas eleições de 2023, quando suspendeu o principal candidato a primeiro-ministro do parlamento com base em acusações falsas. No Bangladesh, o governo da primeira-ministra Sheikh Hasina ordenou a detenção de mais de 10 mil líderes e apoiadores da oposição antes das eleições de janeiro de 2024, e um sistema judiciário complacente desqualificou centenas de candidatos.
Embora as eleições na Polônia tenham dado início a um novo governo no final de 2023, o governo anterior, do partido Lei e Justiça, corroeu sistematicamente o estado de direito, enfraquecendo a independência judicial e silenciando grupos independentes da sociedade civil e outros críticos, inclusive através dos tribunais e da polícia. A captura do sistema judicial pelo partido Lei e Justiça tornou possível os ataques característicos do governo anterior aos direitos de saúde sexual e reprodutiva das mulheres.
O custo pode ser medido em vidas: após uma decisão de 2020 do Tribunal Constitucional politicamente comprometido, que praticamente proibiu o aborto legal na Polônia, pelo menos seis mulheres morreram depois que médicos não interromperam sua gravidez, apesar de complicações. Em maio de 2023, uma ativista pelos direitos ao aborto foi condenada por ajudar uma mulher a obter pílulas abortivas e foi condenada a oito meses de serviço comunitário – o primeiro processo conhecido deste tipo na UE. O novo governo da Polônia enfrentará um desafio para restabelecer a independência das principais instituições, incluindo o poder judiciário, o que provavelmente levará anos.
Nos EUA, as legislaturas estaduais e os tribunais enfraqueceram as leis para prevenir a discriminação racial no voto, como a Lei dos Direitos de Voto, quase ao ponto da ineficácia. Na Flórida e em outros estados dos EUA, a censura educacional está limitando a capacidade das pessoas de aprenderem sobre a sexualidade e a identidade de gênero, bem como sobre a história da escravidão e do racismo nos EUA. Políticos sabem que informações precisas sobre tais questões é um fator que inspira as pessoas a participarem do ativismo cívico e a responsabilizar as autoridades. Cerca de 4,6 milhões de pessoas nos EUA, na sua maioria negras, foram privadas de direitos sob as leis dos EUA até 2022, após terem sido condenadas por um crime.
Enquanto isso, o engajamento cívico incrementado para atender à urgência da crise climática desencadeou o uso nefasto de leis vagas para perseguir ativistas, dificultando a expressão de discordância. Em toda a Europa, nos EUA, na Austrália e no Vietnã, os governos estão impondo medidas duras e desproporcionais para punir ativistas e deter o movimento climático. Os Emirados Árabes Unidos (EAU), um dos maiores produtores de petróleo do mundo, sediaram a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, COP28, em 2023, em uma aparente tentativa de melhorar sua imagem, ao mesmo tempo que impulsionam a expansão dos combustíveis fósseis e minam os esforços para enfrentar a crise climática. Pessoas que tentam falar abertamente sobre o histórico dos EAU enfrentam riscos de vigilância ilegal, prisão arbitrária, detenção e maus-tratos.
Os governos utilizam cada vez mais ferramentas tecnológicas para silenciar críticos e censurar opositores. Especialmente em países que carecem de sistemas judiciários independentes ou de controle, governos podem impor leis que se tornam essencialmente armadilhas para críticos, ativistas e usuários da Internet desprevenidos. Um exemplo especialmente flagrante é a sentença de morte imposta pela Arábia Saudita a Muhammad al-Ghamdi, um professor aposentado de 54 anos, por violar a lei antiterrorista do país com base na sua expressão pacífica no X e no YouTube.
Meses antes das eleições de maio de 2023, o parlamento turco reforçou o controle das redes sociais e introduziu um novo crime abusivo de discurso, aparentemente para combater a propagação de notícias falsas online. Na prática, as leis acrescentaram-se ao arsenal existente de legislação sobre censura online, proporcionando mais restrições possíveis ao acesso à informação e ameaçando com sanções severas as empresas tecnológicas por não cumprirem as exigências de remoção de dados e conteúdo dos usuários. Como resultado, o governo do presidente Recep Tayyip Erdoğan dotou-se da capacidade de limitar ainda mais as opiniões divergentes online antes e durante as eleições, as quais o partido no poder acabou por vencer.
Como as instituições defenderam os direitos humanos
Apesar de todos os retrocessos em 2023, também vimos exemplos brilhantes em que instituições e movimentos conquistaram vitórias em prol dos direitos humanos. Na verdade, estes sucessos ilustram a razão pela qual políticos com interesses próprios e governos repressivos trabalham tão arduamente para restringir direitos - e porque todos os governos deveriam reconhecer e apoiar estas frágeis conquistas.
Em março, o TPI emitiu mandados de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, e sua comissária para os direitos da criança, Maria Lvova -Belova, por crimes de guerra relacionados com a deportação de crianças dos territórios ocupados da Ucrânia para a Rússia e transferências forçadas de crianças para outros territórios ocupados pela Rússia na Ucrânia. O mandado de prisão criou um dilema diplomático para o governo sul-africano, que acolheu uma cúpula dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) em agosto. Depois de meses de mensagens contraditórias das autoridades sul-africanas sobre as obrigações do país – membro do TPI – de prender Putin caso ele colocasse os pés na África do Sul, surgiram notícias de que Putin não compareceria pessoalmente à cúpula. Dois dias depois, o Tribunal Superior de Gauteng decidiu que a África do Sul tinha a obrigação de prender Putin e que o mandado de prisão do TPI deveria ser executado no país.
Em novembro, o Tribunal Internacional de Justiça ordenou que o governo sírio tomasse todas as medidas ao seu alcance para prevenir atos de tortura e outros abusos. O caso perante o tribunal mundial é um contrapeso crítico à pressa de vários países árabes para normalizar os laços com o governo sírio, apesar dos contínuos abusos de direitos e da pouca ou nenhuma responsabilização por crimes que ocorreram no passado, sob o presidente Bashar al-Assad. Há também esforços para responsabilizar indivíduos pela tortura e outras atrocidades cometidas na Síria perante tribunais na Alemanha, Suécia e França. Estes casos são fundamentais para que as vítimas vejam seus agressores levados à justiça e podem ajudar a estabelecer que os refugiados nestes países não deveriam ser enviados de volta para um país onde enfrentam riscos reais para suas vidas.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil confirmou os direitos de todos os povos indígenas às suas terras tradicionais, frustrando os esforços do estado de Santa Catarina de desafiar as reivindicações de terras do povo indígena Xokleng se eles não conseguissem provar que estavam fisicamente presentes nas terras em 5 de outubro de 1988, quando a atual Constituição Federal foi adotada. A decisão foi um enorme impulso para os povos indígenas na sua luta para preservar seu modo de vida. Foi também relevante na luta contra as mudanças climáticas, já que a demarcação de territórios indígenas tem se demonstrado repetidamente como uma das barreiras mais eficazes contra o desmatamento na Amazônia. No entanto, a poderosa bancada ruralista do Congresso brasileiro reagiu, aprovando o projeto de lei do ‘marco temporal’ para limitar as reivindicações de terras indígenas, contrariando a decisão do Supremo Tribunal Federal. Posteriormente, o Congresso anulou o veto presidencial a esse projeto de lei. Grupos indígenas e outros afirmaram que apresentariam petições ao Supremo Tribunal para invalidar a lei.
Em novembro, o mais alto tribunal do Reino Unido concluiu por unanimidade que Ruanda não é um país seguro para o governo mandar solicitantes de refúgio, anulando um acordo que efetivamente terceirizava e transferia as responsabilidades do Reino Unido em matéria de refúgio para Ruanda. Ao chamar a atenção para o fraco histórico de direitos humanos de Ruanda, incluindo ameaças aos ruandeses que vivem no Reino Unido, o tribunal concluiu que os solicitantes de refúgio enviados para Ruanda poderiam enfrentar um risco real de serem devolvidos aos seus países de origem, onde poderiam enfrentar maus-tratos. Concluiu-se que o acordo violava as obrigações do Reino Unido sob o direito internacional e doméstico.
Desde então, o governo do Reino Unido apresentou uma “Lei de Segurança (de Refúgio e Imigração) de Ruanda” ao parlamento para contornar a decisão do tribunal. Mas o Reino Unido não pode legislar para contornar o fato de que Ruanda responde às críticas com violência e abusos, inclusive contra refugiados.
Estas vitórias destacam o tremendo poder das instituições independentes, respeitadoras dos direitos e inclusivas, e da sociedade civil para desafiar aqueles que exercem o poder político a servir o interesse público e a traçar um caminho respeitoso aos direitos humanos. Todos os governos, nas suas relações bilaterais e multilaterais, deveriam redobrar esforços para melhorar as principais instituições e proteger o espaço cívico onde quer que esteja sob ameaça.
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Estas crises de direitos humanos demonstram a urgência de todos os governos aplicarem princípios de longa data e mutuamente acordados do direito internacional dos direitos humanos em todo o mundo. A diplomacia baseada em princípios, pela qual os governos centram suas obrigações de direitos humanos em suas relações com outros países, pode influenciar a conduta opressiva e ter um impacto significativo para pessoas cujos direitos estão sendo violados. O apoio a instituições que solidifiquem a proteção dos direitos humanos ajudará a promover governos que respeitem os direitos. Defender os direitos humanos de forma consistente e transversal, independentemente de quem sejam as vítimas ou onde as violações dos direitos sejam cometidas, é a única forma de construir o mundo em que queremos viver.