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Para: Advogado-Geral da União, Jorge Messias

CC: Ministro da Casa Civil, Rui Costa; Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara; Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida; Presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joênia Wapichana

Ao Advogado-Geral da União,

Escrevo em nome da Human Rights Watch para instar Vossa Excelência a promover a imediata revisão do Parecer n° 001/2017/GAB/CGU/AGU, adotado pela Advocacia-Geral da União em julho de 2017, durante a presidência de Michel Temer. Como sabe, dentre outros aspectos, este parecer consolida o entendimento da União a respeito do chamado marco temporal para reconhecimento de terra indígena. De acordo com este entendimento, povos indígenas não podem obter o reconhecimento legal de suas terras tradicionais se lá não estavam presentes em 5 de outubro de 1988 —dia da promulgação da Constituição Federal— ou se não tinham nesta data uma controvérsia possessória de fato ou judicializada. A própria Constituição não contém nenhum artigo que estabeleça essa regra.

A implementação dessa data arbitrária violaria as obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), adotada em 2007, afirma que os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que tradicionalmente possuem e ocupam ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido. Os Estados devem dar reconhecimento legal e proteção às terras tradicionais, incluindo aquelas que os povos indígenas foram forçados a deixar ou perderam de outra forma.

O Brasil apoiou a adoção dessa declaração da ONU. O governo à época, então chefiado pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a qualificou como “uma grande conquista, há muito esperada, que dará um novo impulso e reconhecimento aos esforços dos Estados e dos povos indígenas para fortalecer a promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também reconheceu o direito à restituição de terras historicamente pertencentes ou ocupadas por povos indígenas. Em várias ocasiões —incluindo em decisões proferidas entre 2005 e 2010 nos casos Comunidade Moiwana v. Suriname, Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai e Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai— a Corte considerou que o direito dos povos indígenas e tradicionais a seu território persiste enquanto “a conexão material, cultural ou espiritual” com a terra persistir.

Além disso, a própria Constituição Federal do Brasil reconhece o direito dos povos indígenas às “terras tradicionalmente ocupadas”, sem quaisquer limites de tempo ou um marco temporal arbitrário, e estabelece que cabe ao governo federal a demarcação e proteção dos territórios indígenas.

A demarcação é particularmente importante para definir claramente quais as áreas que pertencem aos povos indígenas e assegurar segurança jurídica sobre o direito coletivo em relação aos territórios. Mas o Parecer da Advocacia-Geral da União de 2017 impõe obstáculos ao direito dos povos indígenas às terras tradicionais.

Muitos pedidos de demarcação estão pendentes há décadas no Brasil. A incerteza sobre a demarcação torna os territórios indígenas particularmente vulneráveis à invasão por pessoas envolvidas na ocupação ilegal de terras. A implementação do marco temporal agravaria a situação ao exigir que comunidades indígenas comprovem sua presença física no território no dia 5 de outubro de 1988, atrasando ou impedindo totalmente a demarcação — criando uma insegurança jurídica que alimenta os conflitos pela terra e a violência contra povos indígenas, afirmam diversos grupos de defesa dos direitos indígenas.

O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro usou o Parecer de 2017 para, na prática, paralisar as demarcações pendentes. Enquanto isso, incursões para as práticas ilegais de extração de madeira, garimpo, caça e grilagem de terras em territórios indígenas aumentaram 180% em três anos, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Como sabe, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá sobre a constitucionalidade do marco temporal no julgamento de um recurso em uma ação envolvendo o estado de Santa Catarina, que usa esta tese para se opor ao reconhecimento de áreas reivindicadas pelo povo Xokleng. A Corte estabeleceu que esta decisão terá repercussão geral. Desta forma, requeremos à Advocacia-Geral da União que revise o quanto antes seu Parecer de 2017 e envie ao STF um novo entendimento, o qual defenda os direitos dos povos indígenas, conforme contemplados na Constituição Federal e nas normas internacionais apoiadas pelo governo brasileiro.

Além de passo fundamental na defesa dos direitos dos povos indígenas, promover a demarcação e a proteção de terras indígenas são referências de esforços bem-sucedidos de preservação ambiental. Estudos recentes mostram que as florestas manejadas por povos indígenas na Amazônia são fortes sumidouros de carbono e que a demarcação e outras medidas para proteger os territórios indígenas podem desacelerar o desmatamento. Isso é fundamental para permitir que o Brasil cumpra seus compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa sob o Acordo de Paris e políticas nacionais destinadas a combater o desmatamento na Amazônia.

Rejeitar o marco temporal é um passo necessário para cumprir as obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil. É, ademais, fundamental em um momento de extrema vulnerabilidade dos povos indígenas diante dos ataques de redes criminosas envolvidas nas invasões de terras e destruição ambiental que levam à perda de meios de subsistência e violência. A recente crise envolvendo os Povos Yanomami, que enfrentam desnutrição e doenças em meio ao avanço de milhares de garimpeiros sobre seu território, é um lembrete trágico dos graves impactos do fracasso do Estado brasileiro na efetiva proteção dos direitos dos povos indígenas.

Por todo o exposto, a Human Rights Watch respeitosamente requer a revisão imediata do Parecer n° 001/2017, rejeitando a tese do marco temporal, e a adoção de um novo entendimento que defenda os direitos dos povos indígenas.

Obrigado por sua atenção a este assunto tão importante.

Atenciosamente,

Human Rights Watch 

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