(Nova York) — Uma nova onda de violência por facções criminosas no Haiti matou centenas de pessoas nas últimas semanas e agravou a crise humanitária, política e de direitos humanos no país. Governos estrangeiros, inclusive da América Latina, Europa e Estados Unidos, deveriam parar de expulsar pessoas para o Haiti e apoiar urgentemente os esforços da sociedade civil local e agências da ONU para garantir que os haitianos tenham proteção e acesso à justiça.
Desde o início de julho de 2022, grupos criminosos mataram e sequestraram centenas de pessoas em Porto Príncipe, segundo a ONU, e assumiram o controle do Palácio da Justiça, onde fica o principal tribunal da cidade, agravando ainda mais a violência e dificultando o acesso à justiça no país. Em 15 de julho, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estendeu o mandato do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti até julho de 2023, ampliando o número de especialistas em segurança da ONU no país.
“Embora estender o mandato do Escritório da ONU no Haiti seja um passo positivo, outros países deveriam fazer muito mais para apoiar a sociedade civil haitiana e agências da ONU à medida que a crise no país se agrava”, disse César Muñoz, pesquisador sênior para as Américas da Human Rights Watch. “Os governos deveriam aumentar seu apoio aos esforços para proteger a população, reforçar o acesso à justiça e parar imediatamente de enviar pessoas de volta ao Haiti, até que as condições do país melhorem”.
De acordo com o Escritório Integrado da ONU no Haiti, 540 pessoas foram sequestradas e mais de 780 foram mortas entre janeiro e maio de 2022. Nos últimos cinco meses de 2021, 396 pessoas foram sequestradas e 668 mortas.
Desde 7 de julho, uma coalizão de grupos criminosas conhecida como “G-9 an Fanni e Alye” tem atacado o bairro de Nan Brooklyn, na zona de Cité Soleil, em Porto Príncipe, com o aparente objetivo de tomar o controle da área de outra facção criminosa. Cerca de 300 pessoas foram mortas, incluindo 21 cujos corpos foram aparentemente queimados, e 16 pessoas foram dadas como desaparecidas, de acordo com a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, um grupo de direitos humanos. As organizações criminosas também queimaram casas e usaram máquinas de demolição para destruir o que restou delas, disse a Red, que documentou a destruição de125 casas.
Em 10 de junho, uma facção criminosa conhecida como “5 Seconds” tomou o controle do Palácio da Justiça de Porto Príncipe. Eles forçaram a saída de funcionários do sistema de justiça, feriram um promotor e roubaram computadores, mesas e outros bens, disse o presidente da Associação Nacional de Escreventes do Poder Judiciário do Haiti.
A falta de audiências no Palácio da Justiça e em alguns outros tribunais do Haiti significa que milhares de pessoas em prisão preventiva não foram levadas a um juiz ou tiveram seus casos revisados. Mais de 90% dos presos em Porto Príncipe estão em prisão preventiva. Algumas de essas pessoas estão detidas arbitrariamente, pois nunca foram levadas a um juiz. Outras não tiveram informações sobre seus casos por mais de um ano.
Autoridades judiciais e advogados vinham alertando há anos sobre os níveis crescentes de violência de grupos criminosos na área ao redor do palácio, que fica em um bairro controlado por facções, e pedindo que o tribunal fosse transferido para outro lugar. A Associação de Magistrados Haitianos e o Escritório de Proteção ao Cidadão identificaram um prédio onde o tribunal poderia ser instalado e pediram diversas vezes que o governo o realocasse, mas não receberam nenhuma resposta das autoridades, disse o presidente da associação.
O Palácio da Justiça estava praticamente inoperante desde 2018 devido a riscos de segurança. Os servidores iam ao tribunal apenas para fazer cópias de documentos ou receber novas provas, mas as audiências foram suspensas em sua maioria. “Quando os servidores iam ao tribunal, eles o tinham que fazer por sua conta e risco, e se esquivando de balas”, disse um membro do Conselho Superior da Magistratura.
Grupos criminosos parecem ter roubado ou destruído arquivos de casos e provas que, segundo o presidente da Associação de Magistrados Haitianos, seriam impossíveis de recuperar, pois os tribunais haitianos não têm cópias digitais dos arquivos. Os tribunais mantinham provas e arquivos sobre vários massacres cometidos desde 2018 por grupos criminosos, além de corrupção, crimes financeiros e homicídios.
A polícia ainda não conseguiu recuperar o controle do tribunal. Um grupo criminoso patrulha e monitora com drones, disse o Diretor do Escritório de Proteção ao Cidadão do Haiti. O “5 Seconds” não permite a entrada de estranhos no bairro, disse a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos.
As autoridades haitianas deveriam tomar medidas urgentes para recuperar os arquivos, realocar o tribunal e proteger os servidores do sistema de justiça para que possam retornar ao seu trabalho e avaliar os danos, disse a Human Rights Watch. O Escritório Integrado da ONU no Haiti, o Escritório da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos e governos estrangeiros deveriam trabalhar com as autoridades haitianas para melhorar a proteção de juízes, promotores e outros funcionários do sistema de justiça e ajudar na realocação do tribunal.
As prisões no Haiti estão superlotadas, oferecem pouco ou nenhum acesso a alimentos, água e remédios, e houve vários relatos de grupos de direitos humanos e do Escritório de Proteção ao Cidadão sobre casos de maus-tratos ou tortura por guardas prisionais e de estupro por outros detentos.
O Escritório Integrado da ONU no Haiti documentou 54 casos em que presos morreram por causas relacionadas à desnutrição entre janeiro e abril. Oito detentos morreram por essas causas em 23 de junho na prisão de Les Cayes, no sul do Haiti. A prisão tem 833 presos, três vezes sua capacidade, e tem pouca comida e água porque os grupos criminosos bloquearam a estrada entre Porto Príncipe e Les Cayes reiteradamente.
As autoridades haitianas deveriam priorizar a libertação de pessoas em detenção arbitrária, garantir que os tribunais possam funcionar de forma eficaz, revisar os casos e melhorar as condições carcerárias, disse a Human Rights Watch. Governos e organismos internacionais deveriam trabalhar com as autoridades haitianas para abordar prontamente esses problemas.
Mesmo com a deterioração da segurança e do acesso à justiça no Haiti, vários países continuam repatriando pessoas para o país. Mais de 19.000 pessoas foram expulsas ou deportadas para o Haiti entre janeiro e junho de 2022, a grande maioria pelos Estados Unidos, em comparação com quase 3.000 durante o mesmo período de 2021.
“Retornar pessoas ao Haiti põe em risco a sua vida, e continuarão sendo assim as condições do país não melhorarem”, disse Muñoz. “Os Estados Unidos e outros governos deveriam interromper todas as repatriações e ajudar a estabelecer um programa de reintegração para fornecer assistência e proteção aos já repatriados”.