Os membros das Forças Armadas brasileiras empregados em operações de segurança pública no Rio de Janeiro atuam sob regras que conferem ampla e inadmissível discricionaridade para o uso de força letal, disse hoje a Human Rights Watch.
As regras de engajamento das Forças Armadas permitem o emprego de munição letal, “como último recurso”, quando há “grave ato ameaçador contra a integridade física própria, de terceiros, de instalações e/ou de bens materiais essenciais ao cumprimento da missão”. Em contrapartida, os Princípios Básicos da ONU sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei só permitem o uso deliberado de força letal, quando estritamente inevitável, para proteger a vida e nunca para evitar danos à propriedade. Os Princípios da ONU constituem uma declaração de referência internacional que impõe limites ao uso da força, devendo ser observada por qualquer agente que atue em operações de segurança pública no Rio de Janeiro, independentemente de seu uniforme.
“As Forças Armadas estabeleceram regras para o uso da força letal que poderiam até fazer sentido se seus membros estivessem em uma operação de combate ao inimigo, mas esse não é o caso”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. “No Rio de Janeiro, as Forças Armadas foram convocadas para atuar como polícia e, assim, devem seguir as mesmas regras que se aplicam à polícia”
A linguagem vaga das regras de engajamento fixadas pelo Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas em julho de 2017, permitiria que um soldado deliberadamente matasse uma pessoa que estivesse danificando um quartel ou um veículo do Exército, mesmo que ninguém estivesse dentro.
Em julho de 2017, o presidente Michel Temer ordenou o emprego das forças armadas para melhorar a segurança no Rio de Janeiro. Em 16 de fevereiro de 2018, ao decretar uma intervenção federal para restaurar a segurança pública no estado, Temer foi além, e conferiu às Forças Armadas todo o comando das forças policiais do estado e de seu sistema prisional.
O manual sobre as missões de Garantia da Lei e da Ordem do Ministério da Defesa sobre o emprego de tropas em atividades de segurança pública caracteriza essas como operações de “não guerra” e esclarece que os militares devem confeccionar regras de engajamento para cada operação para o uso da força, “de forma limitada”.
João Paulo Charleaux, repórter especial do site de notícias Nexo, divulgou uma matéria em 28 de março de 2018 sobre as discrepâncias entre as “regras de engajamento da operação Rio de Janeiro” de julho de 2017 e os padrões internacionais. Em resposta às indagações encaminhadas por Charleaux a esse respeito, o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas disse que os Princípios Basicos da ONU fornecem “diretrizes gerais” que a ONU usa como base para estabelecer outras regras de engajamento, “que podem ser mais rigorosas ou mais brandas, a depender do cenário para onde estará indo a missão de paz”.
“A explicação das Forças Armadas para essas regras de engajamento não faz sentido algum e a seus membros não deveria ser dada tamanha licença para matar”, disse Maria Laura Canineu. “Eles estão no Rio para atuar contra o crime, não para travar uma guerra.”
As regras de engajamento das Forças Armadas acabam por conferir a seus membros discricionariedade muito maior para o uso de munições letais do que tem os policiais militares que participam das mesmas operações.
Uma instrução normativa publicada em outubro de 2015 pelo comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro estabelece que os policiais só podem usar suas armas de fogo em duas circunstâncias: em legítima defesa do policial ou de terceiros, e quando um suspeito resiste à prisão com o uso de uma arma de fogo ou outro “instrumento com potencial de letalidade."
A instrução normativa também proíbe tiros de advertência, afirmando que os “disparos a esmo” constituem crime nos termos do artigo 15 da Lei federal 10.826, de 2003, sujeitando a pena de até quatro anos de prisão aquele que atirar aleatoriamente em áreas povoadas. Em contraste, as regras de engajamento das Forças Armadas nao só permitem que soldados façam disparos de advertência, mas os encorajam a fazê-lo, “sempre que possível.”
As regras da polícia militar e das Forças Armadas também diferem quanto aos procedimentos antes de abrir fogo. Os policiais militares devem primeiro se identificar como policiais “em todos os casos”. Em segundo lugar, devem dar uma advertência clara antes de atirar, com tempo suficiente para a pessoa entender, contanto que a advertência não represente um “risco indevido” para os oficiais ou outra pessoa. Esses requisitos são necessários para garantir que a ação policial respeite os direitos e não resulte em mortes injustificáveis.
As regras das Forças Armadas não exigem que os soldados se identifiquem antes de atirar. A sequência de ações perante uma ameaça envolve desde advertência e emprego de armas com menor letalidade até o uso de municoes letais. Ao mesmo tempo, as regras estabelecem que essa progressão de ações deve ser seguida apenas “sempre que possível”, abrindo a possibilidade de que em alguns casos os soldados abram fogo sem aviso prévio.
A Human Rights Watch documentou muitos casos em que a polícia militar disparou no Rio de Janeiro sem seguir suas próprias diretrizes. Neste contexto, é ainda mais importante reforçar as regras e aplicá-las a todo agente de segurança, em lugar de miná-las de forma perigosa.
As normas de julho de 2017 também afirmam que as ações, “sempre que possível, deverão ser filmadas e/ou fotografadas, de modo a permitir a identificação dos APOP (agentes de perturbação da ordem pública) e demonstrar o correto procedimento da tropa perante a Justica e a opinião pública, quando necessário”. Mas não indicam o procedimento no caso das gravações mostrarem que o comportamento das tropas não foi “correto”.
“De acordo com as normas vigentes, um policial que atira em alguém em circunstâncias injustificáveis pode e deve ser punido, enquanto que se o mesmo for feito por um membro das Forças Armadas, durante uma mesma operação, este não teria punição”, disse Maria Laura Canineu. “As Forças Armadas estão simplesmente tentando garantir tratamento privilegiado para seus membros empregados no policiamento do Rio de Janeiro e evitar qualquer responsabilização pelo uso excessivo da força.”