(São Paulo) - O presidente Michel Temer deveria vetar um projeto de lei que pretende afastar da justiça comum o julgamento de membros das Forças Armadas acusados de cometer execuções extrajudiciais de civis, disse hoje a Human Rights Watch.
O Senado aprovou o projeto de lei no dia 10 de outubro deste ano e a Câmara dos Deputados em julho de 2016. De acordo com o texto, os tribunais militares julgariam soldados acusados de execuções extrajudiciais ou tentativas de homicídio de civis ocorridas em operações de policiamento ou em outras missões ordenadas pelo presidente ou pelo Ministro da Defesa.
"A lei reestabeleceria uma prática comum das ditaduras da América Latina, quando militares julgavam a si mesmos em casos de homicídios de civis", disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. “O projeto de lei estabeleceria um sistema a favor dos soldados acusados de homicídios de civis e dificultaria às vítimas de graves violações de direitos humanos obter justiça”.
O comando das Forças Armadas e os proponentes do projeto no Congresso afirmam que tirar a competência desses julgamentos dos tribunais civis é necessário para fornecer "proteção jurídica" aos membros das Forças Armadas. Em nota enviada à imprensa, o exército também afirmou que sujeitar soldados à jurisdição dos tribunais civis “pode comprometer uma pronta reação” durante confrontos em operações de segurança.
Entretanto, as regras para o uso da força letal são as mesmas tanto no código penal militar quanto no civil. E o sistema de justiça comum prevê todas as garantias do devido processo criminal a qualquer militar acusado de ter cometido execuções extrajudiciais, assim como para qualquer outro cidadão.
Membros das Forças Armadas atualmente patrulham as ruas do Rio de Janeiro e conduzem operações em conjunto com as polícias militar e civil. Se o presidente Temer sancionar o projeto de lei, soldados acusados de execuções extrajudiciais ou tentativa de homicídio de civis durante essas operações serão julgados em tribunais militares, enquanto os policiais militares e civis serão julgados na justiça comum. Tribunais civis deveriam continuar a ter jurisdição sobre todos os casos de execuções extrajudiciais, independente de quem seja o autor, disse a Human Rights Watch.
Na Justiça Militar, os tribunais de primeira instância são compostos por quatro oficiais militares e um juiz civil, todos com o mesmo poder de voto. A segunda instância (o Superior Tribunal Militar, STM) é composta por um colegiado de 15 oficiais militares e apenas 5 civis. É possível recorrer das decisões do STM ao Supremo Tribunal Federal, um tribunal civil.
O Código Penal Militar, aprovado em 1969, durante a ditadura militar (1964-1985), previa que execuções extrajudiciais de civis deveriam ser julgadas pela Justiça Militar. A redação do Código foi alterada em 1996, determinando que a competência para o julgamento desses crimes passasse a ser da Justiça comum.
As normas internacionais e regionais de direitos humanos determinam que execuções extrajudiciais e outras graves violações não devem ser julgadas por tribunais militares. A Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou que “a jurisdição penal militar não é a jurisdição competente para investigar e, se aplicável, julgar e punir os autores de violações de direitos humanos”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos considerou que não é apropriado julgar violações de direitos humanos na Justiça Militar uma vez que “quando o Estado permite que investigações sejam feitas por entidades com possível envolvimento, a independência e a imparcialidade ficam claramente comprometidas”.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU, que monitora o cumprimento das obrigações dos governos conforme o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, convocou todos os Estados a garantirem que militares sejam julgados pela justiça comum por qualquer crime que não seja "de natureza exclusivamente militar".
“O presidente Temer deveria impedir que uma conquista significativa da democracia brasileira seja abandonada", disse Canineu. "A impunidade em casos de homicídios causados por membros das forças de segurança já é um grave problema no Brasil, e esse projeto de lei só contribuiria para aumentar os abusos e prejudicaria ainda mais a segurança pública".