Em uma sala de audiência pouco iluminada, um juiz pergunta a uma mulher de mais ou menos 40 anos, sem algemas, vestida com uma jaqueta de couro, sobre as circunstâncias de sua prisão. Ela diz que foi presa por causa de uma “brincadeira idiota” — ela postou uma foto nadando em notas de cem reais que pertenciam ao seu marido (dinheiro do tráfico de drogas).
“A senhora sofreu algum tipo de violência por parte da polícia?”, pergunta o juiz.
“Física não. Mas pressão para confessar o que eu não tinha feito, sim”, ela responde.
O juiz se volta para o promotor de cabelos grisalhos, que diz: “O Ministério Público se manifesta pela concessão da liberdade”.
“A acusada escolheu mal o companheiro dela”, diz o juiz num tom paternal. Ela suspira. “Mas isso não é ... crime”, ele acrescenta, e revoga a prisão preventiva.
Essa cena — do episódio do dia 13 de setembro da novela "A Força do Querer"— pode parecer prosaica, mas retrata uma conquista demorada do sistema de justiça do país.
Até 2014, nenhuma pessoa detida era levada perante um juiz logo após a prisão. Em vez disso, os juízes decidiam se decretariam a prisão preventiva com base no relatório da polícia. Eu entrevistei detidos que esperaram dois anos na cadeia para ver um juiz pela primeira vez. Isso não é apenas uma violação de um direito básico, mas uma política pública terrível, que sobrecarrega as prisões com suspeitos não violentos, os quais não deveriam esperar por julgamento atrás das grades. Frequentemente esses suspeitos são mantidos nas mesmas celas que criminosos condenados.
Desde 2014, os estados, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça, começaram a implementar as chamadas “audiências de custódia”, como a retratada na novela. A personagem suspeita de cometer o crime na ficção, assim como muitos dos suspeitos reais, foi julgada como alguém que dificilmente fugiria ou manipularia evidências; ela permanecerá livre até o dia de seu julgamento.
Mas a maioria das pessoas detidas fora das principais cidades do Brasil, ou nos fins de semana em algumas capitais, ainda não são levadas a audiências de custódia.
Alguns juízes não perguntam sobre maus tratos cometidos pela polícia, de acordo com estudos das organizações não governamentais Instituto de Defesa do Direito de Defesa e Conectas. E ao contrário do que ocorre na novela, policiais permanecem na sala da audiência e ouvem qualquer acusação de abuso – o que intimida qualquer pessoa detida.
Além disso, alguns promotores e juízes da vida real parecem buscar prender o máximo de pessoas possível, ao invés de considerar a prisão preventiva como uma medida excepcional, conforme prevê o direito internacional.
O Brasil precisa de audiências de custódia como a que milhões de espectadores assistiram na televisão, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.