Os venezuelanos foram às urnas no dia 06 de dezembro e pediram mudanças. Apesar das condições pré-eleitorais que favoreciam os governistas, da intimidação aos candidatos de oposição, da falta de independência do Conselho Nacional Eleitoral e da ausência de um acompanhamento internacional significativo, a oposição conquistou uma "supermaioria" - 112 das 167 cadeiras - na Assembleia Nacional.
Alguns podem tomar isto como prova de que a democracia na Venezuela está em plena forma. No entanto, a verdade é que a governança democrática não é resultado apenas do respeito à "vontade do povo", como descrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não é suficiente realizar eleições ou mesmo aceitar seus resultados – e, neste caso, a esmagadora vitória da oposição seria extremamente difícil de esconder. A governança democrática exige também respeito ao princípio fundamental da separação dos poderes. O atual governo venezuelano, entretanto, não compartilha dessa visão.
Desde a tomada política da Suprema Corte em 2004, –que culminou com o aumento do número de juízes que a compõem de 20 para 32, e com seu aparelhamento a partir da nomeação de aliados governistas - o judiciário venezuelano deixou de funcionar como um poder independente. A Suprema Corte tem rejeitado abertamente o princípio da separação dos poderes e, sistematicamente, validado o crescente desprezo do Executivo em relação aos direitos fundamentais. Esta falta de independência se espalhou por todo o judiciário: mais de 60% dos juízes de instâncias inferiores não possuem estabilidade no cargo, podendo ser removidos por uma comissão da Suprema Corte, sem o devido processo legal.
As autoridades venezuelanas têm usado a falta de independência do sistema de justiça para punir veículos de comunicação e perseguir críticos, incluindo proeminentes políticos da oposição, como Leopoldo López.
Ao longo da última década, a maioria governista da Assembleia Nacional continuou a aparelhar a Suprema Corte. No momento, há na Corte 18 vagas em aberto, 13 das quais pertenciam a juízes que solicitaram aposentadoria em outubro, supostamente quando faltava um ano para o fim de seus mandatos de 12 anos. Os parlamentares governistas cujos mandatos se aproximam do fim ainda possuem a maioria simples necessária para nomear juízes para a Corte, mas teriam de apressar o processo, para fazê-lo antes da nova legislatura.
Isto garantiria muitos anos a mais de uma Suprema Corte chavista, a qual possui uma Câmara Constitucional com poderes para anular leis aprovadas pela Assembleia Nacional, incluindo aquelas para reformar o judiciário ou para reverter processos penais com natureza de persecusão política.
Os governos latino-americanos, em especial o do Brasil, têm um papel crucial a desempenhar para garantir que as vozes dos venezuelanos que foram às urnas no último domingo não sejam abafadas pelas descaradas tentativas do governo de enfraquecer ainda mais o Estado de Direito.
A Carta Democrática Interamericana, assinada em 2001 autoriza a OEA a responder ativamente a ameaças à ordem democrática em qualquer de seus estados-membros. Ela descreve como elementos essenciais de uma democracia representativa "a separação e independência dos poderes ".
O Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no Mercosul, reconhece que a "a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial" para a integração entre os Estados Partes. O Protocolo de Montevidéu reitera o "compromisso com a promoção, defesa e proteção da ordem democrática, do estado de direito e suas instituições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais" dos Estados-membros como sendo "condições essenciais e indispensáveis" para pertencer ao bloco.
Dada a relevância do Brasil na região e sua expectativa de ser considerado líder global, o governo do país tem uma responsabilidade fundamental de garantir que esses acordos internacionais sejam levados a sério.
Em novembro, após um longo silêncio e apenas depois de um líder político da oposição ser assassinado durante um evento de campanha, o governo de Dilma Rousseff publicou uma declaração pública mais contundente, instando as autoridades venezuelanas a garantirem que as eleições transcorressem “de forma limpa e pacífica”, permitindo que o povo tivesse “plenamente respeitada sua vontade soberana”.
Neste momento, é crucial que o Brasil apoie e articule todos os esforços que impeçam que a Venezuela promova o reaparelhamento da Suprema Corte. Do contrário, a legitimidade democrática advinda dos resultados eleitorais naquele país será traída.
Uma versão deste artigo foi publicada hoje no jornal Folha de São Paulo.