Quando é presa, uma pessoa tem o direito de comparecer imediatamente perante um juiz. Trata-se de um princípio fundamental e de longa data do direito internacional. Ele é crucial para garantir que a prisão, tratamento e permanência da pessoa em detenção ocorram dentro da lei.
No entanto, até agora, esse direito não tem sido respeitado no Brasil. Muitas vezes, os detentos passam meses sem ver um juiz. Por exemplo, no estado de São Paulo (que abriga 37% da população carcerária total do Brasil), a maioria de detentos não comparece perante um juiz antes de pelo menos três meses após a detenção. O risco de maus-tratos é frequentemente maior durante os primeiros momentos que seguem a detenção quando a polícia questiona o suspeito. Esse atraso torna os detentos mais vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por policiais abusivos.
Em 2012, o Subcomitêde Prevenção da Torturae OutrosTratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantesdas Nações Unidasinformou ter recebido “relatos repetidos econsistentes de tortura e maus-tratos”, em São Paulo e em outros estados, “cometidos especialmentepor policiais militares e civis”. A tortura supostamente ocorreu nos centros de custódia da polícia ou no momento da prisão, na rua, dentro de casas, ou em “becos” e foi descrita como “violência gratuita, como uma forma de punição, para extrair confissões, e como meio de extorsão ".
Além deviolar os direitos dos presos, essas práticas abusivas tornam ainda mais difícil estabelecer o tipo de confiança com o público que muitas vezes é essencial para o efetivo controle da criminalidade pelas polícias e acabam por minar esforços legítimos para promover a segurança pública e reduzir a violência.
O direito de comparecer perante um juiz sem atrasos desnecessários consta em tratados que foram ratificados pelo Brasil há muito tempo, incluindo o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. O Comitê de Direitos Humanos da ONU (responsável por interpretar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) determinou que o atraso entre a prisão de um acusado e o momento em que ele comparece perante uma autoridade judicial “não deve ultrapassar alguns dias”, nem mesmo durante estado de emergência. No caso Castillo-Páez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que a Convenção Americana e a Constituição do Peru haviam sido violadas quando um detento no Peru não compareceu perante um tribunal competente no prazo de 24 horas (conforme estipulado pela constituição peruana).
Outros paísesda América Latina jáincorporaram esse direito na legislaçãointerna. Por exemplo, na Argentina, o Código de Processo Penal federal exige que, em casos de prisão sem ordem judicial, o detento compareça perante uma autoridade judicial competente no prazo de seis horas após a prisão. No Chile, o Código de Processo Penal determina que, em casos de flagrante, o suspeito seja apresentado dentro de 12 horas a um promotor, que poderásoltá-lo ou apresentá-la um juiz no prazo de 24 horas da prisão. Na Colômbia, o Código de Processo Penal prevêque, em casos de flagrante, o detento precisa ser apresentado ao juiz no prazo de 36 horas. No México, por fim, para a maioria dos tipos penais, pessoas detidas em flagrante precisam ser entregues imediatamente aos promotores, que, por sua vez, devem apresentar os suspeitos a um juiz no prazo de 48 horas ou liberá-los.
Em muitas dessas jurisdições, a legislação nacional exige que pessoas presas após ordem judicial também sejam levadas imediatamente a um juiz. A Constituição mexicana, por exemplo, afirma que a autoridade que executa a ordem judicial de prisão deve trazer o suspeito perante um juiz “sem demora e sob sua estrita responsabilidade”. De forma semelhante, no Chile, o detido sob ordem judicial deve ser apresentado imediatamente ao juiz que deu a respectiva ordem (se a apresentação imediata do preso não for possível, ele somente poderáser mantido sob custódia policial pelas 24 horas seguintes). Na Colômbia, o Código de Processo Penal tambémestabeleceque, em casos de prisãopor ordem judicial, o detento precisa ser colocado “à disposição” do juiz no prazo de 36 horas. Écerto que simples disposiçõesnormativas não eliminaram a prática de abusos nas detençõesnesses países, mas são parte necessária de esforços de longo prazo para coibir esses abusos.
Em contrapartida, o Código de Processo Penal brasileiro exige que quando um adulto é preso em flagrante e, consequentemente, mantido sob custódia policial, somente documentos policiais do caso (mas não o próprio detento) sejam apresentados a um juiz no prazo de 24 horas (art. 306, § 1o).Juízes avaliam a legalidade da prisão e decidem se ordenarão a detenção preventiva ou medidas cautelares com base exclusivamente nos documentos escritos fornecidos pela polícia. O Código estabelece um prazo máximo de 60 dias para a primeira audiência judicial com o indivíduo detido, mas não determina explicitamente quando esse período começa (art. 400). Na prática, isso muitas vezes significa que as pessoas podem permanecer detidas, com autorização judicial, por um longo período sem que tenham a oportunidade de ver um juiz. A única circunstânciaem que a polícia precisa levar imediatamente o preso perante o juiz, de acordo com o Código de Processo Penal,aplica-seao caso da práticadecrime inafiançável, não tendo opolicial exibido o respectivo mandado judicial no momento da prisão (art. 287). Caso contrário, o detento também pode chegar a não ver um juiz por vários meses.
Desde 2011, porém, legisladores brasileiros estão debatendo um projeto de lei para alterar o Código de Processo Penal e estabelecer a obrigatoriedade da “audiência de custódia” perante um juiz no prazo de 24 horas após cada prisão em flagrante. Essas audiências de custódia obrigatórias, além de possibilitarem a análise imediata da legalidade da prisão,permitiriam que presos em flagrante submetidos à tortura ou maus-tratos denunciassem tais abusos no início do processo e que quaisquer alegações de abuso fossem investigadas pela justiça antes que provas se perdessem com o tempo. Infelizmente, a reforma não mudaria a situação de um número relevante de pessoas presas no Brasil sob mandado judicial.
É injustificável que em uma democracia consolidada como o Brasil esse direito fundamental tenha sido ignorado por tanto tempo. Essa reforma não vai resolver, sozinha, o problema das práticas policiais abusivas e deixará desprovida do direito parte dos detentos no país, uma lacuna que o Congresso Nacional tambémdeveria abordar. Entretanto, é um passo crucial para coibir os maus-tratos de uma significativa parcela de indivíduos no momento da prisão e contribuirápara que as forças policiaistrabalhem de forma mais transparente, profissional e eficaz.