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Familiares e amigos de pessoas que morreram durante os protestos em Juliaca, no Perú, seguram fotos de seus entes queridos em 9 de fevereiro de 2023, em uma manifestação em celebração de um mês de suas mortes. © 2023 Juan Carlos Cisneros/AFP via Getty Images
  • O exército e a polícia do Peru atuaram no que pode constituir execuções extrajudiciais ou arbitrárias, assim como outros graves abusos contra manifestantes e transeuntes durante os protestos dos últimos meses.
  • Os aparentes esforços do governo para minimizar os abusos, somados à aparente inação diante de fortes evidências de abusos, levantam questões quanto a possível negligência ou mesmo cumplicidade.
  • O governo deveria convidar especialistas internacionais independentes para respaldar as investigações criminais. A comunidade internacional deveria apoiar um diálogo nacional amplo sobre as legítimas preocupações dos peruanos.

(São Paulo) – O exército e a polícia do Peru são responsáveis por mortes que podem constituir execuções extrajudiciais ou arbitrárias e assim como outros graves abusos contra manifestantes e transeuntes durante protestos ocorridos entre dezembro de 2022 e fevereiro de 2023, disse a Human Rights Watch em um relatório divulgado hoje. Os abusos ocorreram em um contexto de deterioração das instituições democráticas, corrupção, impunidade por abusos do passado e desigualdade persistente.

O relatório “Deterioração letal: Abusos das Forças de Segurança e Crise Democrática no Peru” documenta o uso excessivo da força pelas autoridades de segurança, violações do devido processo legal, abusos contra detidos e falhas nas investigações criminais, bem como a crise política e social que está corroendo o Estado de Direito e os direitos humanos no Peru. Embora alguns manifestantes tenham sido responsáveis por atos de violência, as forças de segurança responderam com força consideravelmente desproporcional, inclusive com armas de assalto e revólveres. Quarenta e nove manifestantes e transeuntes, incluindo 8 crianças, morreram durante os protestos.

“O governo Boluarte parece ter fechado os olhos enquanto forças de segurança matavam manifestantes e transeuntes”, disse César Muñoz, diretor associado da Human Rights Watch para às Américas. “Ocorreram graves atos de violência por parte dos manifestantes, que precisam ser investigados, mas isso não justifica a resposta brutal, indiscriminada e desproporcional das forças de segurança”.

A Human Rights Watch entrevistou mais de 140 pessoas, incluindo testemunhas, manifestantes e transeuntes feridos, familiares dos falecidos, policiais, promotores, jornalistas e outros, tanto pessoalmente no Peru quanto remotamente. A Human Rights Watch também se reuniu com os ministros da Defesa e do Interior, o então comandante da polícia nacional do Peru, o inspetor-geral da polícia, a procuradora-geral e a ouvidora. A Human Rights Watch analisou mais de 37 horas de vídeo e 663 fotografias dos protestos, e revisou relatórios de autópsia e balística, registros médicos, arquivos criminais e outros documentos.

A Human Rights Watch identificou que pelo menos 39 pessoas morreram por ferimentos de bala. Mais de 1.300 pessoas ficaram feridas, incluindo centenas de policiais. Um policial foi morto em circunstâncias pouco claras. A investigação desses assassinatos precisa ser imparcial e minuciosa, e deve alcançar todos os responsáveis, inclusive nos níveis mais altos do governo.

O Peru tem vivenciado um declínio do Estado de Direito e das instituições democráticas nos últimos anos, em parte devido à corrupção disseminada e à presença de um Congresso dominado por interesses pessoais, com a intenção de impedir qualquer fiscalização de seu poder. O então presidente Pedro Castillo, que estava sob investigação por corrupção, desencadeou a atual crise em 7 de dezembro de 2022, ao tentar fechar o Congresso e assumir o controle do judiciário configurando uma tentativa fracassada de golpe. O Congresso destituiu Castillo, e a vice-presidente Dina Boluarte assumiu a presidência, conforme previsto na Constituição do Peru.

Milhares de pessoas foram às ruas – em sua maioria trabalhadores rurais e indígenas no sul do país – pedindo eleições antecipadas, além de outras reivindicações políticas. Os manifestantes disseram à Human Rights Watch que também foram motivados por frustrações decorrentes de não conseguirem proporcionar uma vida melhor para seus filhos, a falta de acesso à educação e saúde de qualidade, e uma sensação de serem esquecidos pelas lideranças políticas.

Embora a maioria dos protestos tenha sido pacífica, ocorreram graves incidentes de violência. Barreiras montadas por manifestantes contribuíram para a morte de 11 pessoas que não conseguiram chegar a hospitais ou que sofreram acidentes de carro, segundo a Ouvidoria de Direitos Humanos (Defensoría del Pueblo).

Em pelo menos 39 das 49 mortes de manifestantes ou transeuntes relatados pela Ouvidoria, a causa da morte foram ferimentos de arma de fogo, de acordo com relatórios de autópsia e balística e registros médicos revisados pela Human Rights Watch. Em outro caso, um documento de saúde listou a causa como “provavelmente” um ferimento por arma de fogo.

Depoimentos de testemunhas, corroborados por horas de vídeos analisados pela Human Rights Watch, mostram que as forças de segurança estavam equipadas com armas de fogo e que as usaram contra manifestantes em alguns locais fora de Lima. Todos os tipos de projéteis de arma de fogo identificados nos laudos de balística e autópsia como causa da morte podem ser disparados com armas com os quais as forças de segurança foram vistas. A polícia não apreendeu nenhuma arma de fogo, caseira ou não, com manifestantes, nem a Human Rights Watch encontrou nenhuma imagem de manifestantes portando uma arma de fogo.

Cinco pessoas foram mortas por projéteis disparados de espingardas e um manifestante provavelmente foi morto por uma bomba de gás lacrimogêneo disparada à queima-roupa, de acordo com documentos e vídeos analisados pela Human Rights Watch. A Human Rights Watch não conseguiu determinar a causa da morte nos três casos restantes, das 49 mortes.

Essas mortes são provavelmente execuções extrajudiciais ou arbitrárias segundo o direito internacional dos direitos humanos, pelas quais o Estado é responsável.

A Human Rights Watch também documentou violações do devido processo legal e abusos contra detentos. A polícia parece ter empregado de forma abusiva uma disposição legal excessivamente ampla, permitindo a detenção de pessoas para verificar sua identidade, e parece ter conduzido uma abusiva detenção em massa na Universidade Nacional Maior de San Marcos, em Lima, e maltratado detentos.

As investigações criminais realizadas pelo Ministério Público têm apresentado graves falhas, incluindo na coleta de importantes provas iniciais. Em alguns casos, as autoridades não preservaram o local das mortes, nem ordenaram a realização de testes de resíduo de arma de fogo em militares e policiais, para detectar se haviam disparado com arma de fogo. Além disso, não foram retidas as armas para análise balística de forma oportuna. Em outros casos, os promotores não buscaram imagens de câmeras de segurança dos locais onde as pessoas foram feridas ou mortas. Em dois casos, eles falharam em providenciar autópsias antes dos enterros.

Em janeiro de 2023, procuradoria-geral abriu uma investigação preliminar contra a presidente Boluarte, o primeiro-ministro Alberto Otárola e outras autoridades, tanto em exercício quanto afastadas do governo, inclusive por homicídio e lesão corporal grave cometidos durante os protestos.

Evidências de que a polícia e membros das forças armadas faziam o uso excessivo da força surgiram já em meados de dezembro de 2022. No entanto, autoridades minimizaram os abusos, muitas vezes negando que tenham ocorrido, alegando sem provas que as mortes foram causadas por armas caseiras ou por armas de fogo e munições vindas da Bolívia, ao mesmo tempo em que constantemente desqualificavam e estigmatizavam os manifestantes, insinuando que seriam "terroristas".

Diante de fortes evidências de abusos, a retórica do governo que parecia justificar ou minimizar os abusos, combinada com a aparente inação das mais altas autoridades civis supervisionando as forças de segurança, levanta questões sobre uma possível negligência ou mesmo cumplicidade nos abusos, afirmou a Human Rights Watch. Até o início de fevereiro, o Ministério do Interior não havia instaurado investigações sobre os abusos contra manifestantes, transeuntes ou jornalistas, e nenhum policial havia sido sancionados ou afastado de suas funções.

Enquanto isso, setores do Congresso estão ativamente trabalhando para eliminar quaisquer mecanismos de controle sobre seu poder, incluindo por meio de esforços para enfraquecer a independência de autoridades eleitorais e da Ouvidoria Pública. Novas acusações de corrupção contra a presidente Boluarte surgiram, e dezenas de membros do Congresso estão sob investigação.

O governo do Peru deveria convidar uma comissão independente de especialistas internacionais e conceder-lhes acesso às informações do governo e aos processos judiciais para apoiar as investigações criminais em andamento e documentar a atual crise e as violações dos direitos humanos, disse a Human Rights Watch. Também deveria tomar medidas concretas para recuperar a confiança pública e abrir caminho para o diálogo com manifestantes e comunidades afetadas, além de trabalhar com o Congresso para garantir uma reforma policial há muito necessária para que se torne uma força mais eficiente e respeitadora da lei.

De acordo com o direito internacional dos direitos humanos, as autoridades devem proteger manifestações pacíficas e não as dispersar, mesmo que as considerem ilegais. A polícia e as forças armadas devem usar a força apenas se inevitável e, nesse caso, com moderação e proporcionalidade em relação às circunstâncias. O uso intencional e letal de armas de fogo deve ser empregado apenas quando estritamente inevitável para proteger a vida.

Em geral, governos estrangeiros não têm se pronunciado nem adotado medidas de maneira consistente para defender a democracia e os direitos humanos durante a crise. Estados Unidos e Canadá não denunciaram as mortes e outros graves abusos por meses. Argentina, Bolívia, Colômbia, Honduras e México defenderam Castillo. Poucos governos parecem ter se concentrado nas novas ameaças às instituições democráticas vindo do Congresso.

“Muitos países se pronunciaram de forma seletiva sobre a crise no Peru, no lugar de reconhecer que a defesa das instituições democráticas e do Estado de Direito no Peru anda de mãos dadas com a proteção dos direitos humanos”, disse Muñoz. “A comunidade internacional precisa ser muito mais enfática e consistente ao denunciar violações de direitos humanos e ameaças aos sistemas democráticos no Peru, pressionar por responsabilização e ajudar a criar condições para um diálogo genuíno que leve em consideração as preocupações legítimas dos peruanos”.

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