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A proibição absoluta da tortura e de maus-tratos, prevista em inúmeras convenções e tratados ratificados pelo Brasil, foi consagrada pela Constituição Federal de 1988. Trata-se de um dos maiores compromissos assumidos entre os diversos países do mundo com relação aos valores que embasam os direitos humanos. A tortura, crime contra a humanidade, grave violência contra pessoas que não podem se defender, simboliza violação flagrante da dignidade humana. Contudo, um decreto recentemente publicado pelo governo federal – o Decreto nº 9.831, de 10 de junho de 2019 – torna mais perturbador o caminho, já originalmente difícil, rumo à eliminação completa da tortura no Brasil. 

Ao assiná-lo, o presidente da República Jair Bolsonaro desmontou o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (“Mecanismo”), órgão composto, até então, por peritos profissionais que vinham cumprindo importante missão havia quatro anos. Na condição de especialistas, eram autorizados a fiscalizar centros de detenção, penitenciárias masculinas, femininas, unidades de internação, comunidades terapêuticas e outras instituições, em todo o Brasil, documentando maus-tratos e tortura. Esta equipe trabalhava a partir das políticas e diretrizes firmadas pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, formado por servidores públicos e representantes de organizações da sociedade civil com atuação no tema.

Bolsonaro exonerou os peritos e quer substituí-los por voluntários. E, nos termos do decreto, esses voluntários não podem vir de instituições acadêmicas ou organizações da sociedade civil voltadas ao combate à tortura que sejam membros do Comitê Nacional. Excluir a possibilidade de remuneração pelos serviços prestados e ainda impedir a atuação de profissionais com profundo conhecimento sobre o tema, por serem vinculados a essas instituições, reduzirá drasticamente a disposição de pessoas técnicas e especializadas para integrar tão importante missão. 

O retrocesso não se limita a isso. O decreto original estipulava que a seleção de seus membros deveria priorizar candidaturas oriundas de todo o espectro da diversidade racial, étnica e de gênero do Brasil, como forma de estimular a sensibilidade dos peritos a grupos de alto risco de maus-tratos. O Decreto nº 9.831/19 eliminou esse requisito.

A tortura como prática estabelecida

Tais alterações são muito preocupantes para um país cuja realidade de maus-tratos integra o cotidiano em locais de privação de liberdade. A superlotação, a falta de condições higiênico-sanitárias mínimas e a insegurança em muitas prisões brasileiras contribuem para um estado permanente de tratamento cruel, desumano e degradante. Seja em celas de delegacias de polícia ou em grandes complexos prisionais, os maus-tratos continuam sendo registrados. Constitui, ainda, tratamento cruel a negligência do poder público quando não consegue controlar a ação de membros de facções criminosas que executam outros presos sob custódia do Estado. Apesar da proibição da tortura, ela continua a acontecer.

Antes da Lei nº 12.847 de 2 de agosto de 2013, que criou o Mecanismo em 2013, nenhuma autoridade brasileira tinha o mandato exclusivo de conduzir, em todo o Brasil, visitas regulares e irrestritas a prisões, centros de detenção militares ou instituições privadas como hospitais psiquiátricos e centros de reabilitação. Mesmo o Ministério Público e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, importantes atores no tema, não possuem esta prerrogativa e a missão específica de documentar casos de tortura e de impor práticas que a desencorajem. 

Desde a nomeação dos primeiros membros do Mecanismo, em março de 2015, eles passaram a conhecer a realidade e os problemas do sistema prisional brasileiro com maior profundidade do que outras autoridades públicas do país, tendo em vista, entre outros fatores, a alta concentração de esforços nesse tema. Os peritos desempenharam um papel fundamental na exposição de casos graves de tortura e maus-tratos nas prisões. Por meio de suas visitas, interações com os presos e entrevistas com as autoridades, coletaram informações detalhadas sobre as condições vigentes em milhares de centros de detenção no Brasil e o tratamento cruel em diversos deles. 

Do norte ao sul, do leste ao oeste deste vasto país, coletaram informações sobre a presença de facções criminosas – e sobre o risco de execuções – em centros de privação de liberdade de todos os tipos. Emitiram recomendações para tratar dos problemas específicos de várias localidades, tipos de instalações e de maus-tratos. Procuradores, defensores públicos, juízes e membros dos órgãos estaduais de monitoramento de prisões e órgãos anti-tortura puderam se beneficiar dos relatórios e do conhecimento acumulado pelo Mecanismo.

Na contramão da história

Além da proibição da tortura, o direito internacional veta qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante. Essas condutas são proibidas sob todas as circunstâncias, inclusive durante a guerra, independentemente da finalidade. Elas não devem ser utilizadas para extrair informações, punir suspeitos ou para qualquer outro fim. Nem mesmo uma emergência nacional extrema justifica o seu uso.

Mas o cumprimento das obrigações dos tratados internacionais não ocorre como um passo de mágica. Pouco a pouco, o Mecanismo poderia levar o Brasil para um melhor sistema prisional. A urgência da atuação do Mecanismo ficou lamentavelmente evidente diante do massacre de junho de 2019, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, no estado do Amazonas, onde a violência entre presos deixou 55 mortos. 

É incompreensível que o governo federal do Brasil queira fechar os olhos para os tipos de maus-tratos que podem culminar na execução de presos amontoados em celas dominadas por facções. Na contramão do esforço mundial de acabar com abusos, maus-tratos e torturas, o governo federal ataca os especialistas que os documentaram e denunciaram.

Durante a ditadura militar, as autoridades brasileiras usaram sistematicamente várias formas de tortura para coletar informações sobre grupos da oposição ou para intimidar e silenciar seus críticos. De lá para cá, o Brasil tem dado passos importantes na defesa dos princípios e valores humanos consagrados no direito internacional e na Constituição Federal. A criação do Mecanismo foi uma delas. O Decreto nº 9.831/19 mina o Mecanismo e, com isso, revive fantasmas de um passado sombrio.

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Maria Laura Canineu é diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch.

Beto Vasconcelos é advogado e foi Secretário Nacional de Justiça.

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