(Washington, DC) – O Departamento de Justiça dos Estados Unidos e o FBI transformaram muçulmanos americanos em alvos das operações policiais abusivas de contraterrorismo por conta de sua identidade étnica e religiosa, afirmaram a Human Rights Watch e o Instituto de Direitos Humanos da Columbia Law School em um relatório divulgado hoje. Muitos dos mais de 500 casos envolvendo terrorismo julgados em tribunais federais dos Estados Unidos desde 11 de setembro de 2001 acabaram por isolar as próprias comunidades que podem ajudar no combate ao crime de terrorismo.
O relatório de 214 páginas, intitulado “Illusion of Justice: Human Rights Abuses in US Terrorism Prosecutions” (Ilusão de Justiça: Violações dos direitos humanos em ações penais relacionadas ao terrorismo nos Estados Unidos), examina 27 casos federais de terrorismo desde o início da investigação até a condenação, bem como as condições de confinamento após a condenação e documenta o elevado preço a ser pago por algumas práticas de contraterrorismo, como operações policiais excessivamente agressivas e condições de confinamento desnecessariamente restritivas.
“Foi dito aos cidadãos americanos que, para mantê-los em segurança, o governo está prevenindo e reprimindo o terrorismo dentro dos Estados Unidos”, afirmou Andrea Prasow, vice-diretora da Human Rights Watch em Washington e uma das autoras do relatório. “Porém, olhando mais de perto, pode-se perceber que muitas dessas pessoas nunca teriam cometido um crime se as autoridades policiais não as incentivassem, pressionassem e, às vezes, lhes pagassem para cometer atos terroristas”.
Muitas ações penais são adequadamente promovidas contra indivíduos envolvidos no planejamento ou financiamento de ataques terroristas, constatou o grupo. Muitas outras, entretanto, envolveram pessoas que não parecem ter participado do planejamento ou financiamento de atos terroristas no momento em que o governo começou a investigá-las. Além disso, em muitos dos casos ha indicios de violações do devidos processo legal e de condições abusivas que resultaram em sentencas de privação de liberdade excessivamente longas.
O relatório baseia-se em mais de 215 entrevistas com pessoas acusadas ou condenadas por crimes relacionados ao terrorismo, com membros de suas famílias e comunidades, advogados de defesa, juízes, promotores e ex-promotores públicos federais, funcionários do governo, acadêmicos e outros especialistas.
Em alguns casos, o FBI pode ter transformado indivíduos que respeitavam a lei em terroristas ao sugerir a realização de ações terroristas ou ao induzir o sujeito alvo à prática do crime. Vários estudos constataram que das condenações federais em casos de terrorismo desde 11 de setembro de 2001, quase 50% resultaram de casos baseados em informantes e quase 30% deles envolveram operações policiais na qual o informante desempenhou um papel ativo na conspiracao do ato planejado.
No caso dos “Quatro de Newburgh”, por exemplo, que foram acusados de planejar a explosão de sinagogas e um ataque a uma base militar dos Estados Unidos, um juiz chegou a dizer que o governo “inventou o crime, forneceu os meios e removeu todos os obstáculos relevantes” e, nesse processo, transformando em terrorista um homem “cujo comportamento ridículo é completamente shakespeariano”.
Muitas vezes, os alvos do FBI foram pessoas particularmente vulneráveis, incluindo indigentes e indivíduos com deficiências intelectuais e mentais. O governo,agindo com frequência por meio de informantes, desenvolvia ativamente a conspiração, persuadia e, às vezes, pressionava os alvos a participarem e fornecia os recursos para realização do atentado.
“O governo dos Estados Unidos deve parar de tratar os muçulmanos americanos como futuros terroristas”, declarou Prasow. “Na lei dos Estados Unidos, o nível de exigência para comprovar um flagrante preparado é tão alto que se torna quase impossível para um suspeito de terrorismo comprovar sua inocência. Somado a isso, agentes policiais escolhem investigar pessoas particularmente vulneráveis, como portadores de deficiências mentais ou intelectuais, e os mais pobres. Isso é uma receita para violações excessivas dos direitos humanos”.
Rezwan Ferdaus, por exemplo, confessou ter tentado explodir um prédio federal e foi condenado a 17 anos de prisão. Apesar de um agente do FBI ter dito ao pai de Ferdaus que seu filho “obviamente” tinha problemas de saúde mental, ele se tornou alvo de um flagrante preparado pela polícia, e um informante foi enviado à mesquita da família. Juntos, o informante do FBI e Ferdaus elaboraram um plano para atacar o Pentágono e o Congresso dos Estados Unidos; o FBI forneceu armas falsas e financiou a viagem de Ferdaus. Contudo, suas condições mentais e físicas se agravaram à medida que a sua pseudo-conspiração avançava. Ferdaus sofreu depressão e convulsões tão fortes que seu pai abandonou o emprego para cuidar dele.
Os Estados Unidos também fizeram uso excessivamente amplo de acusações de apoio material, punindo comportamentos que não demonstravam a intenção de apoiar o terrorismo. Os tribunais aceitaram táticas de acusação que podem violar os direitos a um julgamento justo, como a apresentação de provas obtidas por coerção, provas confidenciais que não podem ser contestadas de forma razoável e provas contundentes de casos de terrorismo nos quais os réus não tiveram participação alguma – e deferindo pedidos de tramitação de processos sob segredo de justiça para dificultar as contestações a mandados judiciais.
Ahmed Omar Abu Ali é um cidadão americano que afirma ter sido chicoteado e ameaçado de amputação enquanto ficou detido sem ter sido informado do teor das acusações na Arábia Saudita – tendo sido capturado após os bombardeios de instalações ocidentais na capital Riade em 2003 – até fornecer uma confissão aos interrogadores sauditas que, segundo ele, era falsa. Mais tarde, quando Ali foi levado a julgamento no Estado da Virgínia, o juiz rejeitou suas alegações de tortura e aceitou sua confissão como prova. Ele foi condenado por conspiração, fornecimento de apoio material para terroristas e conspiração para assassinar o presidente e recebeu pena de prisão perpétua, a qual está sendo cumprida em confinamento solitário na prisão federal de segurança máxima de Florence, Colorado.
Os Estados Unidos têm recorrido a condições de confinamento rigorosas e, às vezes, até mesmo abusivas, em casos de terrorismo. Frequentemente, essas práticas parecem ser excessivas em relação ao risco apresentado à segurança. Isso inclui confinamento prolongado em cela solitária e restrições severas à comunicação durante a prisão preventiva, o que possivelmente impede os réus de ajudarem em sua própria defesa e contribui para que confessem o crime, mesmo não sendo culpados. Os juízes impuseram penas excessivamente longas e alguns presos sofrem com condições severas após a condenação, incluindo confinamento solitário prolongado e restrições rigorosas ao contato com familiares ou outras pessoas – às vezes, sem explicação ou possibilidade de recurso.
Nove meses depois de ser preso sob a acusação de apoio material ao terrorismo e enquanto se recusava a fazer um acordo, Uzair Paracha foi transferido para um rigoroso regime de confinamento solitário. Medidas Administrativas Especiais (Special Administrative Measures ou SAMs) – restrições ao seu contato com outras pessoas como medida de segurança nacional – permitiam que Paracha falasse apenas com os agentes penitenciários.
“Era possível passar dias sem proferir algo significativo, além de ‘Por favor, apague a luz’, ‘Posso telefonar para meu advogado’, ‘Preciso de papel higiênico/uma gilete’, etc. ou apenas agradecer-lhes por apagar a luz”, escreveu Uzair aos pesquisadores do relatório. Após a condenação, as SAMs foram modificadas para permitir que ele se comunicasse com outros presos. “Enfrentei a pior parte das SAMs enquanto era inocente aos olhos da lei americana”, escreveu.
Essas violações tiveram um impacto negativo nas comunidades muçulmanas americanas. As táticas do governo de procurar suspeitos de terrorismo – às vezes, antes mesmo que o alvo demonstrasse qualquer intenção de cometer um ato de violência – afetaram esforços paralelos para construir relacionamentos com líderes comunitários e grupos muçulmanos americanos que poderiam ser importantes fontes de informação para evitar ataques terroristas.
Em algumas comunidades, essas práticas têm impedido a interação com as autoridades policiais. Membros de algumas comunidades muçulmanas disseram que o medo da vigilância do governo e da infiltração de informantes significa que precisam ter cuidado com o que dizem e para quem, bem como quantas vezes participam dos seus encontros religiosos.
“Ao invés de proteger os americanos, incluindo os americanos muçulmanos, da ameaça do terrorismo, as políticas documentadas neste relatório têm desviado as autoridades policiais de sua missão de investigar ameaças reais”, comentou Prasow. “É possível proteger os direitos das pessoas e também julgar terroristas, o que aumenta as chances de prender criminosos de verdade”.