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Excelentíssimo Sr. Presidente Lula,

Escrevemos em nome da Human Rights Watch, em atenção às eleições 2024-2026 do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas em outubro. Como candidato, é fundamental que o Brasil demonstre uma defesa dos direitos humanos incansável, consistente e baseada em princípios, tanto no plano nacional quanto internacional.

Ao estabelecer o Conselho em 2006, a Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que os membros do Conselho “devem defender os mais elevados padrões na promoção e proteção dos direitos humanos” e “cooperar plenamente com o Conselho”.[1] Os compromissos voluntários do Brasil para sua candidatura incluem “fortalecer e aprimorar o sistema internacional de direitos humanos e o CDH de forma integral e abrangente, com base em seus princípios fundadores”, dentre os quais estão os supra mencionados.

Desde que tomou posse em janeiro de 2023, o governo brasileiro assumiu uma forte postura em relação aos direitos humanos na política externa, incluindo ao denunciar a incompatibilidade entre democracia e racismo, ao defender o direito à educação primária e ao ensino médio gratuitos e ao se comprometer a promover os direitos das mulheres perante o Conselho. Enfatizou também questões como a pobreza, a fome e a proteção do meio ambiente na agenda global.

Ao mesmo tempo, esperávamos que V. Exa. tivesse aproveitado as recentes interações com autoridades chinesas e a renovada relação diplomática com a Venezuela para condenar os graves abusos de direitos humanos que ocorrem sob esses governos e também promover sua não repetição. Considerando ainda que V. Exa. demonstrou reiterado interesse em liderar diálogos de paz para pôr fim ao conflito Rússia-Ucrânia, esperávamos que pudesse ter incluído no centro dos seus apelos a necessidade de responsabilização por crimes tão graves, além da crítica à decisão do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de enviar bombas de fragmentação para a Ucrânia – uma medida que não contribui para a paz e pode colocar em risco a vida de mais civis ucranianos por muitos anos.

Gostaríamos de encorajar seu governo a garantir que o Brasil desempenhe protagonismo na promoção dos direitos humanos em todo o mundo, conforme estabelece sua própria Constituição, abordando os abusos de direitos humanos de forma principiológica e consistente, independentemente da ideologia de qualquer governo específico, não movida por interesses geopolíticos, e baseada nos princípios de universalidade e imparcialidade, os quais o Brasil destaca em seus compromissos voluntários.

Neste sentido, gostaríamos de chamar sua atenção para os Critérios Objetivos que foram desenvolvidos por um grupo inter-regional de países para “ajudar [o Conselho de Direitos Humanos] a decidir, de maneira objetiva e não seletiva, quando o Conselho deve interagir de forma útil com um Estado em questão, para prevenir, responder ou abordar violações e ajudar na contenção de uma situação preocupante.” Os Critérios Objetivos foram estabelecidos em uma declaração ao CDH em 2016, apresentada pela Irlanda e são uma ferramenta útil para avaliar quando o CDH deve agir em relação à situação de um país.

Entendemos que, se eleito, o Brasil estará em posição privilegiada para usar o seu assento no Conselho, para influenciar outros países – particularmente seus vizinhos latino-americanos e os países membros ou que buscam aderir ao BRICS – a assumirem compromissos concretos de direitos humanos. Poderia, por exemplo, defender publicamente a criação de um mecanismo independente de investigação apoiado pela ONU, dos assassinatos e abusos cometidos contra centenas de migrantes e solicitantes de refúgio etíopes na fronteira do Iémen e Arábia Saudita, por parte de guardas de fronteira sauditas. Poderia, como no passado, tornar-se uma voz relevante e guiada por princípios na pressão sobres autoridades iranianas para que mudem sua conduta na implacável repressão à dissidência pacífica. Poderia também comprometer-se a trabalhar com Estados de todos os grupos regionais para dar seguimento ao contundente relatório da ONU sobre Xinjiang (China), o qual concluiu que o governo chinês tem cometido violações de direitos humanos que poderiam constituir crimes contra a humanidade.

Em seu retorno ao cenário global dos direitos humanos, o Brasil deveria adotar medidas inequívocas para desfazer uma política externa equivocada, abandonando a prática de dois pesos e duas medidas em relação aos direitos humanos. Na região, assim como no mundo, o seu governo deveria trabalhar com a sociedade civil local e internacional para promover a segurança, a justiça e a igualdade para todos.

Nesse sentido, gostaríamos de chamar sua atenção para importantes preocupações de direitos humanos sobre as quais acreditamos que o Brasil poderia impactar positivamente. Anexamos a esta carta um documento informativo com recomendações sobre temas e situações específicas de países que instamos V.Exa. a considerar, não somente se eleito com sucesso para o Conselho, mas por meio de uma diplomacia ativa, bilateral e multilateral, e de justiça internacional.

Embora não seja exaustivo, o documento destaca o papel fundamental que o Brasil pode desempenhar no avanço da justiça internacional, no combate ao racismo sistêmico na atuação dos agentes de aplicação da lei, no fortalecimento do direito à educação e na proteção dos direitos dos migrantes. Descreve também abusos de direitos humanos na América Latina e no Caribe, incluindo a repressão a opositores políticos na Venezuela, Nicarágua e Cuba; o desmantelamento das instituições democráticas em El Salvador; a crise política e o uso excessivo da força contra manifestantes no Peru; e a crise política, humanitária e de segurança pública no Haiti.

Por fim, aborda os crimes contra a humanidade de apartheid e de perseguição contra os palestinos pelas autoridades israelenses; a invasão russa em grande escala da Ucrânia e as violações do direito humanitário internacional; a violenta repressão aos protestos no Irã; e o severo controle da China em Xinjiang e no Tibete, além da perseguição cultural e detenção arbitrária de uigures e outros muçulmanos turcomenos.

Entre nossas recomendações, solicitamos que o Brasil:

  • Lidere uma iniciativa para estabelecer um mecanismo para monitorar os abusos de direitos humanos nas fronteiras, conforme solicitado pela sociedade civil e pelo Relator Especial para os direitos humanos de migrantes.
  • Junte-se a um Core Group inter-regional de Estados-membros para liderar e apoiar o desenvolvimento de um quarto protocolo opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança para garantir a educação infantil e o ensino médio gratuitos, de qualidade, inclusivos e públicos.
  • Apoie todas as iniciativas do Conselho de Direitos Humanos para fortalecer a capacidade do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Avançar em Direção à Justiça e à Igualdade Racial no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER, na sigla em inglês).
  • Assuma um posicionamento inequívoco contra ameaças ou ataques ao Tribunal Penal Internacional (TPI), aos seus servidores e indivíduos que com ele cooperam.
  • Condene inequivocamente a repressão contra manifestantes e críticos em Cuba, inste o governo cubano a libertar todas as pessoas detidas arbitrariamente, e pressione por uma transição do país à democracia.
  • Chame atenção, em todas as oportunidades durante as reuniões e debates do Conselho de Direitos Humanos, para as graves violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança salvadorenhas.
  • Garanta que qualquer emprego consensual de uma força multinacional no Haiti tenha mecanismos robustos de monitoramento e responsabilização por abusos, cumpra com as normas de direitos humanos, e faça parte de uma resposta multidimensional que inclua instituir um governo de transição.
  • Em cooperação com outros governos democráticos, estabeleça um “Grupo de Amigos” para coordenar uma resposta de alto nível à crise de direitos humanos na Nicarágua e impulsionar uma transição democrática.
  • Inste o governo peruano a convidar um grupo interdisciplinar de especialistas internacionais para apoiar as investigações criminais em curso sobre as mortes de manifestantes e analisar as causas da atual crise.
  • Apoie ativamente todos os esforços no Conselho de Direitos Humanos para promover a responsabilização por abusos na Venezuela, inclusive apoiando a Missão de Apuração dos Fatos das Nações Unidas.
  • Apoie os esforços do Conselho de Direitos Humanos para dar seguimento ao histórico relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) sobre Xinjiang, que conclui que as autoridades chinesas podem ter cometido crimes contra a humanidade ao perseguir uigures e outras comunidades muçulmanas, incluindo os esforços para a elaboração de mais relatórios sobre a situação.
  • Destaque as práticas dos crimes de apartheid e de perseguição pelas autoridades israelenses contra palestinos, em declarações no Conselho de Direitos Humanos, em uma submissão à Corte Internacional de Justiça (dentro do prazo de 25 de outubro), e em outros fóruns internacionais.
  • Apoie a missão de investigação da ONU sobre o Irã e manifeste de forma consistente sérias preocupações em matéria de direitos humanos em reuniões e negociações bilaterais durante o processo de adesão do Irã ao BRICS, particularmente o aprisionamento contínuo de defensores de direitos humanos, dos direitos das mulheres, de direitos trabalhistas, ambientais e jornalistas.
  • Apoie a renovação anual da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia, criada para investigar abusos e violações de direitos humanos no contexto da invasão em grande escala pela Rússia, enquanto aparentes crimes de guerra continuam a ser amplamente cometidos.

O Brasil não precisa esperar para contribuir no enfrentamento de violações de direitos humanos à medida que elas ocorrem. Atuar com imparcialidade e ser reconhecido por ações baseadas em princípios e não em interesses políticos, apenas fortalecerá a sua candidatura.

Agradecemos a sua consideração das questões listadas nesta carta e agradeceríamos sua resposta a essas recomendações.

Com os nossos mais elevados votos de estima e consideração, permanecemos à inteira disposição.

Atenciosamente,

Juanita Goebertus

Diretora para as Américas da Human Rights Watch

Maria Laura Canineu

Diretora da Human Rights Watch no Brasil

 

Recomendações da Human Rights Watch:

Candidatura do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos da ONU

1.     QUESTÕES TEMÁTICAS

2.     PAÍSES DA AMÉRICA LATINA E CARIBE

3.     OUTROS PAÍSES

 
  1. QUESTÕES TEMÁTICAS

JUSTIÇA INTERNACIONAL

O Brasil tem um papel essencial a desempenhar no apoio à justiça por graves crimes internacionais como parte de uma política externa baseada em direitos humanos.

Como membro do Tribunal Penal Internacional (TPI), o Brasil pode aumentar sua liderança em relação à justiça promovendo contínuo apoio político e prático ao tribunal. Um ponto essencial é garantir que o tribunal tenha recursos financeiros adequados para exercer o seu mandato em todas as situações, evitando abordagens excessivamente seletivas que podem reforçar uma prática de critérios desiguais no acesso das vítimas à justiça. O Brasil deveria cooperar nas investigações do tribunal e deveria usar todas as oportunidades multilaterais e bilaterais disponíveis para pedir a outros governos que cooperem com o tribunal. No que diz respeito aos países citados nesta carta, isso inclui as investigações cruciais do TPI na Palestina, Ucrânia e Venezuela.

O apoio à justiça internacional, claro, vai além do apoio ao TPI. Em termos de legislação doméstica, o Brasil deveria implementar plenamente o Estatuto de Roma e deveria tomar as medidas necessárias para investigar e processar supostos perpetradores de graves violações dos direitos humanos, inclusive por meio do princípio da jurisdição universal, conforme previsto na legislação local.

Recomendações:

  • Maximizar todas as oportunidades de defender os princípios consagrados no Estatuto de Roma e se posicionar de forma inequívoca contra ameaças ou ataques ao TPI, seus servidores e indivíduos que cooperam com o Tribunal.
  • Garantir que todos os pedidos de cooperação do TPI sejam cumpridos, bem como pedir a outros Estados que cooperem com o Tribunal.
  • Adotar uma postura ativa contra a prática de critérios desiguais e abordagens seletivas na responsabilização por graves violações dos direitos humanos, assegurando que todas as vítimas possam ter acesso aos remédios judiciais, inclusive por meio do apoio para fortalecer os recursos financeiros do TPI.
  • Aplicar suas leis domésticas sobre jurisdição universal.

 

JUSTIÇA E IGUALDADE RACIAL NA APLICAÇÃO DA LEI

Em 2021, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou uma resolução histórica  apresentada pelo Grupo de Estados Africanos para criar o Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Avançar em Direção à Justiça e à Igualdade Racial no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER, em inglês). Seus três especialistas têm a missão de investigar as causas estruturais do racismo sistêmico, em particular na aplicação da lei, bem como as respostas dos governos a protestos pacíficos contra o racismo, o policiamento discriminatório e outras violações dos direitos humanos contra pessoas africanas e afrodescendentes em todo o mundo.

As investigações do novo grupo de especialistas devem estimular a responsabilização e pressionar pela implementação de medidas de justiça racial na saúde, habitação, emprego e educação, bem como reparações específicas para as vítimas. Até agora, o Mecanismo emitiu recomendações sobre dados desagregados por raça ou origem étnica como um elemento-chave para impulsionar e avaliar respostas ao racismo sistêmico na aplicação da lei e no sistema de justiça criminal; fez importantes recomendações sobre o atual sistema legislativo e regulatório sobre  discriminação racial na Suécia; e está preparando um relatório sobre sua visita aos Estados Unidos.

Recebemos com entusiasmo a notícia sobre o convite  do governo brasileiro ao Mecanismo para analisar a situação no país em novembro de 2023, após um apelo de mais de 120 organizações, incluindo a Human Rights Watch. A violência policial é um problema crônico que impacta desproporcionalmente a população negra no Brasil. Em 2022, a polícia matou mais de 6.400 pessoas, das quais 83% eram negras. A Human Rights Watch tem documentado graves tentativas de acobertamento por parte da polícia, bem como falhas em investigações de casos de abusos, resultando em impunidade generalizada.

Medidas efetivas para acabar com a violência policial deveriam ser de máxima prioridade para o governo brasileiro.

Recomendações:

  • Apoiar todas as iniciativas do Conselho de Direitos Humanos para fortalecer a capacidade do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Avançar em Direção à Justiça e à Igualdade Racial no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER) para desempenhar suas atividades e apoiar a renovação de seu mandato, que expira em junho de 2024.
  • Cooperar plenamente com o EMLER em sua visita ao Brasil em novembro de 2023, e continuar interagindo posteriormente, inclusive por meio da implementação de suas recomendações.

 

DIREITOS DOS MIGRANTES

Em junho de 2023, a Human Rights Watch juntou-se a mais de 200 organizações para instar o Conselho dos Direitos Humanos da ONU a estabelecer um mecanismo independente de monitoramento em regiões de fronteira. Políticas e práticas de migração têm levado a mortes, torturas e outras graves violações de direitos humanos em regiões de fronteira ao redor do mundo. O CDH deveria adotar medidas apropriadas e estabelecer um mecanismo internacional independente de monitoramento para investigar essas violações, incluindo as causas estruturais das violações na governança da migração internacional, e contribuir para a responsabilização e reparação a vítimas e suas famílias.

O Projeto Migrantes Desaparecidos registrou 55.980 mortes reportadas de pessoas em migração em todo o mundo de 2014 a maio de 2023. Este número é amplamente entendido como significativamente subestimado. Em algumas regiões, as mortes de migrantes atingiram recordes. Essas mortes muitas vezes não são efetivamente investigadas.

O Relator Especial da ONU para os direitos humanos dos migrantes expressou repetidas vezes sérias preocupações com táticas abusivas e violentas de governança de fronteiras, que incluem medidas de estado de emergência, a legitimação de práticas de rejeição e retorno por meio da introdução de legislação e ordens governamentais, operações inadequadas de busca e resgate lideradas por Estados e obstáculos impostos a operadores de busca e resgate não estatais. Segundo o ex-Relator Especial da ONU sobre racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, muitas das políticas migratórias que contribuem para mortes e outras graves violações dos direitos de refugiados e migrantes afetam desproporcionalmente indivíduos de certas nacionalidades, grupos étnicos, raciais e religiosos. Muitas vezes, essas políticas envolvem ou têm por base o racismo estrutural.

Na 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, o México apresentou uma Resolução sobre a prevenção e responsabilização por violações dos direitos humanos em trânsito, que foi adotada por consenso. O principal resultado da resolução é o painel intersecional que ocorrerá entre as sessões de março e junho do próximo ano. Infelizmente, não foi estabelecido um mecanismo internacional para monitorar abusos em regiões de fronteira, conforme solicitado pela sociedade civil e pelo Relator Especial sobre os Direitos dos Migrantes. O Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos também pediu o monitoramento das fronteiras.

Recomendações:

  • Liderar uma iniciativa para criar um mecanismo de monitoramento de abusos de direitos nas fronteiras, conforme solicitado pela sociedade civil e pelo Relator Especial sobre direitos humanos dos migrantes na 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos.
  • Criar e promover normas e padrões nacionais e internacionais para pessoas que não atendem aos requisitos da Convenção sobre Refugiados de 1951, mas que poderiam enfrentar uma grave ameaça à vida ou à integridade física se regressassem ao seu país devido a um risco real de violência ou a situações excepcionais, incluindo os efeitos das mudanças climáticas, para as quais não existe uma solução doméstica adequada.

 

DIREITO À EDUCAÇÃO

O direito à educação – tal como definido nos tratados internacionais de direitos humanos – não é mais suficiente para garantir que as crianças prosperem no mundo de hoje. A Convenção sobre os Direitos da Criança, por exemplo, garante às crianças o ensino primário gratuito e obrigatório, mas nada diz sobre a educação na primeira infância e não garante o direito imediato ao ensino médio gratuito. O Brasil está em uma posição privilegiada para promover uma nova iniciativa para criar um instrumento internacional vinculante — como um novo protocolo opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança — para fortalecer o direito à educação e reconhecer explicitamente o direito imediato de cada criança a pelo menos um ano de educação infantil e ao ensino médio gratuitos.

A Constituição Federal e a legislação nacional do Brasil já dão um excelente exemplo ao garantir a educação pública, gratuita e obrigatória para todas as crianças, incluindo dois anos de educação infantil e 12 anos de educação primária e secundária. Embora os compromissos voluntários do Brasil mencionem brevemente o direito à educação, ficamos encorajados pela declaração positiva do país na 53ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, convidando todos os Estados a considerarem o novo instrumento internacional para ampliar o direito de todas as crianças e adolescentes à educação. Esperamos que o Brasil continue a defender e apoiar esforços para fortalecer o direito internacional à educação.

Além disso, o Brasil pode manter seu papel de destaque na proteção da educação durante conflitos. Como membro não permanente do Conselho de Segurança, o Brasil tem se posicionado veementemente contra ataques e o uso militar de escolas em zonas de conflito. Notavelmente, o Brasil também demonstrou seu compromisso ao endossar a Declaração sobre Escolas Seguras em maio de 2015. Como o último relatório do Relator Especial sobre o Direito à Educação destacou os efeitos prejudiciais desses ataques ao direito à educação e à vida de estudantes, há uma necessidade urgente de continuar a reforçar a proteção de estudantes, professores e estabelecimentos de ensino durante conflitos.

Recomendações:

  • Juntar-se a um Core Group inter-regional de Estados-membros para liderar e apoiar o desenvolvimento de um quarto protocolo opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança a fim de garantir a educação infantil e o ensino médio gratuitos, de qualidade, inclusivos e públicos.
  • Defender, de forma consistente, o enfrentamento dos ataques à educação no âmbito da agenda do Conselho dos Direitos Humanos (CDH), bem como nos relatórios e monitoramento dos mecanismos específicos de países no CDH.

 

  1. PAÍSES DA AMÉRICA LATINA E CARIBE

CUBA

O governo de Cuba continua reprimindo e punindo praticamente todas as formas de dissidência e crítica pública, enquanto os cubanos enfrentam uma grave crise econômica que afeta seus direitos.

As autoridades responderam com censura e repressão brutais e sistemáticas quando milhares de cubanos saíram às ruas em julho de 2021 para protestar contra a resposta governamental à Covid-19, a escassez de alimentos e medicamentos e as restrições de direitos humanos de longa data. Os julgamentos de centenas desses manifestantes em 2022 frequentemente violaram as garantias básicas do devido processo legal e resultaram em penas de prisão desproporcionais.

Manifestações em todo o país continuaram, motivadas por apagões, escassez e deterioração das condições de vida.

Em agosto de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos constatou que os cubanos estavam sofrendo um “colapso do sistema de saúde pública” e um “aumento generalizado da pobreza e da desigualdade”.

A repressão do governo e a aparente relutância em endereçar as causas subjacentes que levaram as pessoas às ruas forçaram os cubanos a deixarem o país em números sem precedentes. Entre janeiro de 2020 e abril de 2023, a Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos deteve mais de 380.000 cubanos — um número que representa quase 3,5% da população cubana. A Guarda Costeira dos EUA interceptou mais de 6.500 cubanos no mar desde outubro de 2022 — um aumento drástico em comparação às 800 pessoas interceptadas entre outubro de 2021 e outubro de 2022.

Os esforços do governo dos EUA para pressionar por mudanças, impondo um amplo embargo econômico, provaram serem um caro e equivocado fracasso. O embargo impõe dificuldades indiscriminadas à população cubana como um todo e não tem ajudado em nada a situação dos direitos humanos em Cuba. Em vez de isolar Cuba, a política isolou os Estados Unidos, permitindo que o governo Castro conquistasse empatia internacional.

Recomendações:

  • Chamar atenção para a situação dos direitos humanos em Cuba durante as reuniões e debates do Conselho de Direitos Humanos, incluindo durante Diálogos Interativos com relatores especiais e outros titulares de mandato de procedimentos especiais ou em suas declarações sob o item 4.
  • Garantir uma abordagem multilateral e coordenada em relação à Cuba que priorize os direitos humanos e incentive uma transição democrática no país.
  • Condenar de forma inequívoca a repressão contra manifestantes e críticos em Cuba e solicitar ao governo cubano que liberte todas as pessoas arbitrariamente detidas.
  • Expressar publicamente apoio aos direitos de manifestantes, jornalistas e ativistas cubanos.
  • Continuar a criticar o embargo dos EUA à Cuba e instar o governo de Biden a desmontar progressivamente a política de isolamento em relação à Cuba, inclusive substituindo o embargo e as proibições de viagens e comércio com Cuba por formas mais eficazes de pressão.

 

EL SALVADOR

Desde que assumiu o cargo em 2019, o presidente Nayib Bukele tem enfraquecido as instituições democráticas em um ritmo alarmante e criado um ambiente hostil para a imprensa independente e grupos da sociedade civil. Legisladores pró-governo, que obtiveram dois terços da maioria no Congresso nas eleições de 2021, têm desde então promovido a erosão da independência do judiciário, restringido a transparência e o controle social, e suspendido as garantias do devido processo estabelecidos na constituição como parte de uma “guerra contra as gangues”.

Os aliados do presidente Bukele na Assembleia Legislativa removeram e substituíram sumariamente todos os cinco juízes da Câmara Constitucional da Corte Suprema de Justiça, bem como o Procurador-Geral, e aprovaram leis que permitem que o Supremo Tribunal de Justiça e o Procurador-Geral arbitrariamente transfiram ou exonerem juízes e promotores de instâncias inferiores. Hoje praticamente não há quaisquer órgãos governamentais independentes que possam servir como contrapeso ao poder executivo ou garantir reparação às vítimas de abuso.

Em março de 2022, a Assembleia Legislativa adotou um estado de emergência em resposta ao aumento da violência de gangues. A lei suspendeu direitos constitucionais, incluindo algumas proteções básicas de devido processo legal. A Assembleia Legislativa também aprovou uma série de medidas propostas pelo presidente Bukele para enfrentar a violência das gangues, permitindo que juízes prendam crianças a partir dos 12 anos, restrinjam a liberdade de expressão, permitam julgamentos coletivos e ampliem perigosamente o uso de prisão preventiva e da legislação antiterrorismo.

Ao longo do último ano e meio, agentes da polícia e militares realizaram centenas de incursões indiscriminadas, particularmente em bairros pobres, prendendo mais de 72 mil pessoas, incluindo centenas de crianças. O estado de emergência foi prorrogado 17 vezes e continua em vigor.

Em dezembro de 2022, a Human Rights Watch e Cristosal, uma organização de direitos humanos da América Central, publicaram um relatório baseado em mais de 1.100 entrevistas com pessoas de todos os 14 estados de El Salvador. O relatório documentou violações generalizadas dos direitos humanos durante o estado de emergência, incluindo prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados, tortura e outros maus-tratos a pessoas detidas, e violações massivas do devido processo legal. Centenas de pessoas detidas não tinham conexões aparentes com as gangues. A Cristosal também documentou que 174 pessoas morreram sob custódia, em circunstâncias que, em muitos casos, sugerem responsabilidade do Estado. Concluímos que as violações de direitos humanos não são incidentes isolados de responsabilidade de alguns agentes criminosos, mas sim violações similares cometidas repetidamente e em todo o país, durante um período de vários meses, tanto pelo exército quanto pela polícia.

Até o momento, as autoridades salvadorenhas não relataram qualquer progresso significativo nas investigações sobre violações de direitos humanos cometidas durante o estado de emergência. O presidente Bukele tem apoiado publicamente as forças de segurança e tentou intimidar os poucos juízes e promotores independentes que restam e poderiam investigar as violações. Ele também tem usado uma retórica hostil contra a imprensa independente e a sociedade civil, rotulando-as de “defensores das gangues”.

Recomendações:

  • Chamar a atenção para a situação de direitos humanos em El Salvador durante reuniões e debates do Conselho de Direitos Humanos, inclusive durante Diálogos Interativos com relatores especiais e outros titulares de mandatos de procedimentos especiais relevantes.
  • Manifestar, pública e privadamente, oposição às violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança salvadorenha.
  • Pressionar as autoridades salvadorenhas, de forma multilateral e idealmente em coordenação com outros países latino-americanos e europeus, a garantirem o respeito aos direitos humanos e ao Estado de direito.
  • Instar o governo salvadorenho a adotar uma política de segurança eficaz, que respeite os direitos humanos, para desmantelar gangues e proteger a população de seus abusos.
  • Pressionar as autoridades salvadorenhas a restaurarem a independência do judiciário, inclusive para que conduzam processos independentes, justos e transparentes para a seleção de juízes do Supremo Tribunal e do procurador-geral, e a revogarem leis que comprometem a independência judicial.

 

HAITI

O Haiti enfrenta uma profunda crise política, humanitária e de segurança. O assassinato do Presidente Jovenel Moïse em 2021 agravou a crise constitucional no país. O Parlamento parou de funcionar, e o sistema judiciário enfrenta enormes dificuldades para operar. Um aumento da violência por grupos criminosos com supostos laços com a polícia e políticos, além de prisões superlotadas e a impunidade generalizada, permanecem grandes preocupações. Um surto de cólera causou dezenas de milhares de suspeitas de casos e centenas de mortes desde outubro de 2022. Desde janeiro de 2021, a República Dominicana, os Estados Unidos e outros países forçaram a volta de dezenas de milhares de pessoas ao Haiti, onde correm risco de sofrer violência.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos publicou dois relatórios importantes sobre o Haiti no ano passado, ambos com uma série de recomendações às autoridades haitianas e outros atores.[1] O Conselho dos Direitos Humanos adotou uma resolução em 4 de abril de 2023, apresentada pela delegação do Haiti, solicitando ao Alto Comissário que nomeasse um perito independente em direitos humanos e solicitou que o seu Escritório produzisse mais relatórios sobre a situação dos direitos humanos no Haiti nas 54ª e 55ª sessões do Conselho.

O Conselho de Segurança da ONU está considerando opções para o envio de uma força multinacional consensual para ajudar a polícia haitiana a restaurar a segurança. Isso pode muito bem ser uma parte importante da solução, mas muito provavelmente só será eficaz com um novo governo de transição e como parte de uma resposta multidimensional com fortes salvaguardas de direitos humanos.

Recomendações:

  • Apoiar, inclusive por meio de recursos técnicos e financeiros, as negociações para um governo de transição para restaurar a segurança básica e garantir o cumprimento dos direitos humanos fundamentais, restabelecer o Estado de direito; e atender as necessidades básicas para todos os haitianos, até a formação de um governo regular com base em eleições democráticas.
  • Solicitar que qualquer emprego consensual de uma força internacional seja baseada em protocolos claros de direitos humanos e que tenha financiamento adequado e mecanismos robustos de monitoramento, e que seja complementada por medidas rígidas para garantir a responsabilização de violadores de direitos humanos, conter o fluxo de armas e munições para grupos criminosos e fornecer ajuda humanitária e outros serviços básicos, como educação e empregos nas áreas mais afetadas por violentos grupos criminosos.
  • Apoiar o fornecimento contínuo de capacitação e assistência técnica ao Haiti por parte do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), bem como acompanhar suas recomendações e de outros especialistas independentes em direitos humanos, inclusive no Conselho de Direitos Humanos.

 

NICARÁGUA

A crise de direitos humanos na Nicarágua, que começou com a repressão aos protestos em abril de 2018, está se deteriorando ainda mais.

O governo de Daniel Ortega tem perseguido todos os segmentos da sociedade em uma tentativa de se perpetuar no poder indefinidamente. Em julho de 2023, 68 pessoas consideradas como críticas ao governo permaneciam detidas, segundo grupos locais de direitos humanos. Entre elas está o Bispo Rolando Alvarez, líder religioso conhecido pela defesa de vítimas. O tratamento dado ao Bispo Álvarez, que foi condenado a mais de 20 anos de prisão por acusações espúrias, exemplifica os muitos casos de perseguição à Igreja Católica no país.

Em 9 de fevereiro de 2023, o governo libertou 222 presos políticos e os expulsou para os Estados Unidos, rotulando-os como “traidores”, tirando sua nacionalidade e confiscando seus bens. Muitos foram detidos no contexto das eleições presidenciais de 2021, nas quais Ortega foi reeleito para um quarto mandato consecutivo em meio a uma onda de repressão a opositores, incluindo jornalistas, defensores de direitos humanos, empresários, lideranças rurais e candidatos presidenciais. O governo retirou a nacionalidade de outros 95 críticos do governo, após sua libertação.

Um relatório sobre a Nicarágua, divulgado em março pelo grupo de especialistas em direitos humanos das Nações Unidas, encontrou motivos razoáveis para concluir que as autoridades cometeram crimes contra a humanidade, incluindo assassinato, prisão, tortura, violência sexual, deportação forçada e perseguição por razões políticas.

O governo também restringiu drasticamente o espaço cívico, inclusive ao aplicar uma legislação repressiva para cancelar o status legal de mais de 3.500 organizações não governamentais, incluindo organizações humanitárias como a Cruz Vermelha Nicaraguense. Nenhum monitor internacional foi autorizado a entrar no país desde que o governo expulsou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos em 2018.

Os abusos cometidos pela Polícia Nacional e grupos armados pró-governo durante uma violenta repressão em 2018, que deixou mais de 300 manifestantes e transeuntes mortos, permanecem impunes.

Recomendações:

  • Apelar ao governo da Nicarágua que cumpra a Resolução do Conselho de Direitos Humanos A/HRC/52/2 de 27 de março de 2023, e que monitore o seu cumprimento. Esta resolução insta o governo a “cessar imediatamente o uso de prisões e detenções arbitrárias, bem como de ameaças e outras formas de intimidação ou medidas alternativas de detenção, como meio de reprimir críticos; a libertar imediatamente e incondicionalmente todos os presos políticos”, e a “adotar medidas eficazes para garantir a independência, transparência e imparcialidade do sistema de justiça”.
  • Em cooperação com outros governos democráticos na América Latina e na União Europeia, estabelecer um “Grupo de Amigos” para coordenar uma resposta de alto nível à crise dos direitos humanos na Nicarágua e pressionar por uma transição democrática, conforme solicitado por 180 vítimas nicaraguenses e 29 organizações nacionais e internacionais de direitos humanos.
  • Pressionar o governo Ortega a autorizar a entrada de organismos internacionais de direitos humanos que foram expulsos em 2018 – a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) – para monitorar as condições de direitos humanos no país e cooperar plenamente com o grupo de especialistas em direitos humanos da ONU na Nicarágua, incluindo permitindo visitas ao país.
  • Como Estado-membro da Convenção de 1984 contra a Tortura e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, exercer jurisdição criminal, na medida permitida pela legislação nacional, sobre qualquer oficial nicaraguense responsável por tortura, de acordo com o artigo 5 da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura.

 

PERÚ

Em dezembro de 2022, o então presidente Pedro Castillo tentou dissolver o Congresso e controlar o poder judiciário, em meio a graves alegações de corrupção contra ele. O Congresso o removeu do cargo e a vice-presidente Dina Boluarte assumiu a presidência do país.

Milhares de manifestantes—na maioria trabalhadores rurais e indígenas que enfrentam marginalização e acesso desigual aos serviços governamentais—foram às ruas cobrando eleições antecipadas e outras demandas. Alguns manifestantes cometeram graves atos de violência. O Exército e a polícia responderam aos protestos de maneira indiscriminada, desproporcional e brutal.

Um relatório da Human Rights Watch de abril de 2023 documentou o uso excessivo de força pelas forças de segurança, violações do devido processo legal e abusos contra detidos, bem como a crise política e social arraigada que está corroendo o Estado de direito e os direitos humanos no Peru. Quarenta e nove pessoas, incluindo 8 crianças, foram mortas, a grande maioria por ferimentos a bala. Mais de 1.300 pessoas ficaram feridas durante os protestos, incluindo policiais.

Recomendações:

  • Chamar a atenção para as mortes de manifestantes no Peru e manifestar preocupação com a situação dos direitos humanos durante reuniões e debates no Conselho de Direitos Humanos, inclusive durante Diálogos Interativos com relatores especiais e titulares de outros mandatos de Procedimentos Especiais relevantes.
  • Instar o governo peruano a convidar um grupo interdisciplinar de especialistas internacionais para apoiar as investigações criminais em andamento sobre as mortes de manifestantes e analisar as causas da crise e as subsequentes violações de direitos humanos.
  • Expressar pública e privadamente preocupação sobre os esforços do Congresso para minar e cooptar instituições democráticas, sobre os ataques a autoridades eleitorais e a corrupção generalizada.
  • Instar o governo e o Congresso peruanos a tomar medidas concretas para garantir que as forças de segurança cumpram a lei e recuperar a confiança do público, inclusive enfrentando a corrupção e a profundas desigualdades na realização dos direitos econômicos, sociais e culturais; e proteger a independência de instituições democráticas.

 

VENEZUELA

À medida que o Brasil restabelece os laços diplomáticos com o governo Maduro, deveria adotar medidas para garantir que esse reconhecimento ajude a promover avanços nos direitos humanos, incluindo eleições livres e justas, responsabilização por graves violações dos direitos humanos e melhor assistência humanitária.

A Venezuela enfrenta uma grave emergência humanitária, com 19 milhões de pessoas necessitando assistência, segundo a HumVenezuela, uma plataforma independente de organizações da sociedade civil que monitora a crise. Muitos não conseguem acessar cuidados de saúde básicos e níveis mínimos de alimentação adequada. Mais de 7,3 milhões de venezuelanos fugiram do país desde 2014 – cerca de 80 por cento deles para outros países latino-americanos –, gerando uma das maiores crises migratórias do mundo. De acordo com os dados mais recentes disponíveis, cerca de 487.700 venezuelanos, incluindo 53.300 refugiados, vivem no Brasil.

Ficamos decepcionados que, após o encontro com o Presidente Nicolás Maduro, em maio, o Presidente Lula sugeriu que a democracia estaria funcionando plenamente no país e descreveu o enfraquecimento das instituições democráticas na Venezuela como uma “narrativa” construída. Durante quase duas décadas, a Human Rights Watch documentou como as autoridades venezuelanas destruíram progressivamente a independência do judiciário e a integridade eleitoral no país, e mais tarde usaram o seu poder irrestrito para levar a cabo violações sistemáticas dos direitos humanos, incluindo tortura, assassinatos e a persecução arbitrária de opositores políticos, jornalistas, defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil. Atualmente, mais de 280 presos políticos estão atrás das grades, de acordo com a ONG venezuelana Foro Penal.

A Missão Internacional das Nações Unidas de Apuração de Fatos (FFM, em inglês) sobre a Venezuela concluiu que existem “motivos razoáveis para acreditar que crimes contra a humanidade foram cometidos” pelas autoridades venezuelanas, incluindo assassinato, detenção arbitrária e tortura. O Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional está atualmente conduzindo uma investigação sobre supostos crimes contra a humanidade no país.

Estamos profundamente preocupados com os recentes esforços da Assembleia Nacional venezuelana de realizar um processo para nomear novos membros para o Conselho Nacional Eleitoral controlado pelo executivo, o que poderia minar ainda mais a perspectiva de eleições livres e justas, tanto nas eleições presidenciais em 2024, quanto nas eleições legislativas e regionais em 2025.

Recomendações:

  • Apoiar ativamente todos os esforços de responsabilização da Venezuela no Conselho de Direitos Humanos, inclusive apoiando a FFM e, se apropriado, apoiar os esforços para estender seu mandato quando chegar o momento de renovação em setembro de 2024.
  • Instar o governo venezuelano a permitir a visita da FFM ao país para realizar suas investigações de acordo com seu mandato, incluindo sobre execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e tortura.
  • Apoiar esforços para estabelecer um fundo humanitário administrado pela ONU, acordado em novembro de 2022, durante negociações entre o governo de Maduro e a oposição.
  • Instar pública e privadamente o governo venezuelano a cumprir as recomendações da missão de observação eleitoral da União Europeia de 2021, permitir nova observação eleitoral nas eleições de 2024 e 2025, garantir uma composição equilibrada do Conselho Nacional Eleitoral e assegurar que líderes da oposição não sejam arbitrariamente impedidos de se candidatar.

 

  1. OUTROS PAÍSES

CHINA

O autoritário governo da China sob o presidente Xi Jinping, que iniciou um terceiro mandato sem precedentes em 2022, e o Partido Comunista Chinês reprimem sistematicamente os direitos fundamentais. As autoridades detiveram arbitrariamente defensores de direitos humanos, aumentaram o controle sobre a sociedade civil, a imprensa e a internet e têm usado tecnologia invasiva de vigilância em massa. O governo impõe um controle particularmente rigoroso em Xinjiang e no Tibete. A perseguição cultural e a detenção arbitrária de um milhão de uigures e outros muçulmanos turcomenos por parte das autoridades desde 2017 configuram crimes contra a humanidade.

Em Hong Kong, o governo impôs uma legislação draconiana de segurança nacional em 2020 e desmantelou sistematicamente as liberdades na cidade. O governo dificultou os esforços internacionais para investigar as origens da Covid-19, silenciou críticos no exterior e enfraqueceu as instituições globais de direitos humanos. Pessoas em todo o país e na diáspora saíram às ruas no final de 2022 para exigir direitos humanos e democracia na China.

Em outubro de 2022, com uma votação acirrada de 19 a 17, o Conselho de Direitos Humanos esteve perto de garantir uma discussão sobre o relatório contundente do ACNUDH, que concluiu que os abusos de direitos humanos por Pequim podem configurar crimes contra a humanidade em Xinjiang. Ficamos desapontados com a abstenção do Brasil nessa decisão preliminar, que foi apoiada por outros países da região. Esta iniciativa simplesmente falava do relatório e convocava uma discussão sobre a situação. Se uma nova iniciativa for apresentada, esperamos que o Brasil esteja em posição de apoiá-la, enviando uma mensagem clara ao governo chinês de que não tolera esses graves abusos e uma mensagem de solidariedade às vítimas, sobreviventes e entes queridos das centenas de milhares que estão arbitrariamente detidos ou desaparecidos. É importante também deixar claro que nenhum Estado, não importa quão poderoso, está acima do direito internacional.

Recomendações

  • Apoiar os esforços do Conselho de Direitos Humanos para dar seguimento ao histórico relatório do ACNUDH sobre Xinjiang, que conclui que as autoridades chinesas podem ter cometido crimes contra a humanidade contra os uigures e outras comunidades muçulmanas, incluindo esforços para garantir mais relatórios sobre a situação.
  • Manifestar preocupação sobre os abusos dos direitos humanos na China em declarações no Conselho de Direitos Humanos, inclusive com referência às conclusões e recomendações do relatório do ACNUDH sobre Xinjiang.
  • Comprometer-se a trabalhar para estabelecer monitoramento independente, notificação e prosseguimento às conclusões e recomendações do relatório do ACNUDH e outros abusos na China, conforme solicitado por centenas de organizações da sociedade civil em todo o mundo.

 

IRÃ

Em 2022, após a morte de uma jovem curda iraniana de 22 anos na prisão, detida pela polícia moral do Irã por uso “impróprio do hijab”, uma onda de protestos se espalhou pelo país, com o principal slogan: “mulher, vida, liberdade”. Os protestos começaram com pedidos de responsabilização e contra os abusos sistemáticos da polícia moral do Irã e das leis de uso compulsório do hijab, mas rapidamente evoluíram para exigir mudanças fundamentais nos sistemáticos abusos de direitos e na impunidade.

As autoridades iranianas reprimiram violentamente os protestos, matando centenas e prendendo dezenas de milhares de manifestantes, incluindo vários defensores de direitos humanos, ativistas, jornalistas e celebridades.

As demandas dos manifestantes foram apoiadas por um grande número de iranianos e pela sociedade civil que têm há muito tempo enfrentado perseguição, pressão e prisão por defenderem mais liberdades e justiça. Mulheres, especialmente nas grandes cidades, desde pessoas comuns até atletas e atrizes, também começaram a retirar publicamente seus véus e/ou aparecer em público sem hijab como um ato de resistência. Em resposta, as autoridades têm endurecido as regulamentações, utilizando uma combinação de punições mais severas, particularmente por não usarem o hijab como forma de ativismo, severa coerção econômica e pressão sobre o setor privado para agir como fiscal da lei.

Isso tem impactado desproporcionalmente as comunidades marginalizadas, em particular as mulheres. O governo ainda não conduziu nenhuma investigação transparente sobre os graves abusos cometidos pelas forças de segurança e inteligência. Em vez disso, tem aumentado a pressão sobre os atores da sociedade civil local, acusando-os de maneira infundada de contato com Estados e meios de comunicação estrangeiros, e tem impedido que familiares de pessoas mortas realizem memoriais.

O movimento de protesto atraiu solidariedade e apoio global, especialmente de governos do norte global. No entanto, as tensões geopolíticas e a aparente seletividade dos Estados ocidentais na responsabilização de violadores de direitos humanos nas mesmas medidas diminuíram o impacto sobre a postura do Irã e deram às autoridades iranianas a oportunidade de descartar críticas internacionais como uma manobra política. Convencer as autoridades iranianas a mudarem o curso em relação às violações sistemáticas dos direitos requer uma abordagem baseada em princípios, que use o poder do multilateralismo e, ao mesmo tempo, insista na proteção dos direitos civis, políticos e econômicos dos iranianos que foram impactados por décadas de amplas sanções econômicas.

A forte tradição do presidente Lula de apoiar os direitos trabalhistas pode desempenhar um papel crucial na liderança de uma política centrada nos direitos humanos em relação ao Irã.

Recomendações:

  • Apoiar a Missão de Investigação sobre o Irã criada no âmbito do Conselho de Direitos Humanos, encorajar as autoridades iranianas a interagirem de forma significativa com seu mandato, e apoiar sua renovação para garantir que tenha tempo e recursos para completar uma investigação abrangente sobre os abusos cometidos após os protestos de 2022.
  • Manifestar de forma consistente as sérias preocupações sobre direitos humanos durante interações bilaterais e no processo de entrada do Irã no BRICS, particularmente sobre o contínuo aprisionamento de defensores de direitos humanos, dos direitos das mulheres, dos direitos trabalhistas, ambientais e jornalistas, bem como sobre as restrições ao acesso a advogado em casos de segurança nacional e o aumento da coerção econômica sobre as mulheres.
  • Considerar a criação de iniciativas que permitam o engajamento da sociedade civil e acadêmicos iranianos com seus pares brasileiros.

 

ISRAEL/PALESTINA

As autoridades israelenses estão cometendo os crimes contra a humanidade de apartheid e de perseguição contra os palestinos, conforme documentado por grupos de direitos humanos palestinos, israelenses e internacionais, incluindo a Human Rights Watch. Isso tem sido feito por meio da adoção de uma política governamental ampla para manter a dominação de israelenses judeus sobre os palestinos, juntamente com graves abusos contra os palestinos, em particular aqueles que vivem nos territórios ocupados, incluindo Jerusalém Oriental.

Esses abusos incluem excessivas restrições à circulação de palestinos; confisco generalizado de terras; a imposição de condições rígidas que levaram milhares de palestinos a abandonarem suas casas em condições que equivalem a transferências forçadas; a negação dos direitos de residência a centenas de milhares de palestinos e seus familiares; e a suspensão dos direitos civis básicos de milhões de palestinos.

Nos últimos meses, a discriminação e a repressão em Israel se intensificaram. As forças israelenses já mataram mais palestinos na Cisjordânia em 2023 do que em qualquer outro ano, desde que a ONU começou a registrar sistematicamente as fatalidades em 2005. Em agosto, o número de palestinos detidos em detenção administrativa sem julgamento ou sob acusações baseadas em provas mantidas sob sigilo atingiu o maior nível em 30 anos. O atual governo de Israel claramente identificou como princípio orientador que todo o território entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo pertence “exclusivamente” ao povo judeu.

Recomendações:

  • Ressaltar os crimes de apartheid e perseguição cometidos pelas autoridades israelenses em declarações no Conselho de Direitos Humanos, em sua submissão à Corte Internacional de Justiça (dentro do prazo de 25 de outubro), e em outros fóruns internacionais.
  • Instar as autoridades israelenses a reverterem a decisão que proibiu seis proeminentes organizações da sociedade civil palestina de atuarem, e permitir que continuem seu trabalho vital, incluindo seu trabalho essencial para apoiar a implementação do mandato do TPI.
  • Instar as autoridades israelenses, tanto publicamente quanto de forma privada, a encerrar a proibição generalizada de viagens de e para Gaza e permitir a livre circulação de pessoas e mercadorias para dentro e fora de Gaza, sujeitas, no máximo, a verificações de segurança individuais.
  • Instar a Autoridade Palestina a encerrar sua prática sistemática de prender e torturar arbitrariamente críticos e opositores.
  • Apoiar publicamente os esforços para reconhecer, acabar com a cumplicidade e garantir a responsabilização pelo apartheid, perseguição e graves violações dos direitos humanos em Israel e na Palestina, incluindo a Comissão de Inquérito da ONU sobre os Territórios Palestinos Ocupados e Israel e outras iniciativas da ONU.

UCRÂNIA/RÚSSIA

Em 2022, a Rússia promoveu uma invasão em grande escala na Ucrânia, oito anos após sua invasão inicial em 2014. A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem tido um impacto desastroso na vida civil, matando milhares, ferindo muitos milhares mais de civis e destruindo propriedades e infraestrutura civis.

As forças russas cometeram uma série de violações do direito humanitário internacional, incluindo bombardeios e ataques indiscriminados e desproporcionais em áreas civis que atingiram casas e instalações de saúde e educação. Alguns destes ataques deveriam ser investigados como crimes de guerra. A repetida utilização pela Rússia de munições de fragmentação desde fevereiro de 2022 matou e feriu civis, danificou bens civis e contaminou terras agrícolas. As forças ucranianas também têm usado munições de fragmentação, causando vítimas civis.

Nas áreas que ocuparam, forças russas ou afiliadas cometeram aparentes crimes de guerra, incluindo tortura, execuções sumárias, violência sexual, desaparecimentos forçados e saque de propriedades culturais. Aqueles que tentaram fugir das áreas de combate enfrentaram terríveis provações e inúmeros obstáculos. Em alguns casos, forças russas transferiram à força números significativos de ucranianos para a Rússia ou áreas ocupadas da Ucrânia e submeteram muitos a verificações de segurança abusivas. Os ataques repetidos das forças russas ao sistema de energia e outras infraestruturas críticas da Ucrânia aparentaram objetivar aterrorizar civis e tornar sua vida insustentável, o que é um crime de guerra.

A Rússia suspendeu sua participação na iniciativa ‘Black Sea Grain’ (acordo de Grãos do Mar Negro), bloqueando a exportação de grãos ucranianos, elevando os preços globais dos grãos.

Durante a invasão em larga escala da Ucrânia, as autoridades russas têm promovido uma campanha sistemática de repressão dos direitos humanos e fechamento do espaço cívico na Rússia. Elas têm adotado legislações nocivas visando destruir a sociedade civil, buscado isolar a Rússia de informações “hostis” e prendido em massa ou perseguido críticos pacíficos por meio de processos administrativos e criminais falsos. Esta campanha crescente de repressão levou o Conselho de Direitos Humanos, em outubro de 2022, a adotar uma resolução criando uma Relatoria Especial sobre a Rússia. A resolução citou grave preocupação com “repressões sistemáticas às organizações da sociedade civil”, “relatos de prisões arbitrárias em massa (...), a deterioração do estado de Direito” e “o fechamento forçado e generalizado de organizações da sociedade civil e meios de comunicação independentes”.

Recomendações:

  • Apelar ao governo da Rússia que cumpra a Resolução do Conselho A/HRC/52/32 de 4 de abril de 2023, e que monitore o seu cumprimento. Esta resolução insta o governo a “encerrar imediatamente suas violações de direitos humanos e abusos e violações do direito humanitário internacional na Ucrânia” e a “cessar a transferência e deportação ilegais de civis e outras pessoas protegidas na Ucrânia ou para a Federação Russa, (...) especialmente crianças”.
  • Cumprir com a Resolução do Conselho A/HRC/52/32, que insta os Estados a “cooperarem plenamente com” a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia, que teve seu mandato renovado por mais um ano, “para permitir que cumpra efetivamente seu mandato, e fornecerem as informações ou documentações relevantes que possam possuir ou vir a possuir, conforme apropriado”.
  • Apoiar a renovação anual do mandato da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia, enquanto aparentes crimes de guerra continuam a ser cometidos amplamente na Ucrânia.
  • Instar a Rússia a respeitar a proibição de transferências forçadas, incluindo a coerção de civis a evacuarem para destinos indesejados, e instar todas as partes no conflito a facilitarem a passagem segura dos civis para um destino da sua escolha.
  • Indagar as autoridades russas sobre o número de crianças transferidas da Ucrânia para a Rússia e o número, localização e taxa de ocupação dos centros de acolhimento temporário em toda a Rússia, e sobre o número e paradeiro dos civis ucranianos detidos nas áreas ocupadas após as “medidas de filtragem” ou detenção.
  • Apoiar, por meio da Embaixada do Brasil na Rússia, a emissão de documentos de viagem temporários, permitindo que cidadãos ucranianos que estejam na Rússia sem identidade ou documentos de viagem possam deixar o país, se desejarem.
  • Instar a ONU a estabelecer um grupo de trabalho interagências, dedicado a identificar o paradeiro e garantir o bem-estar e o regresso de crianças não acompanhadas e separadas que foram deslocadas à força dentro da Ucrânia ou transferidas à Rússia, incluindo as crianças que foram adotadas e naturalizadas ilegalmente, e oferecer apoio a este esforço.
  • Aderir sem demora à Convenção sobre Munições Cluster (bombas de fragmentação), parar de produzi-las e transferi-las e, subsequentemente,
    • Instar a Rússia e a Ucrânia a deixarem de usar esse tipo de munição e incentivar seus governos a aderirem à convenção.
    • Aproveitar todas as oportunidades para condenar o uso de bombas de fragmentação na Ucrânia, inclusive por meio de declarações e resoluções conjuntas.
    • Comprometer-se a não ajudar a Rússia ou a Ucrânia em quaisquer atividades proibidas pela convenção, como o seu uso e transferência; e
    • Instar todos os Estados a aderirem à Convenção sobre Munições Cluster, sem demora.
  • Apoiar a renovação do mandato do Relator Especial para a Rússia.
  • Instar a Rússia a cumprir as recomendações da Resolução A/HRC/52/32, do Conselho de Direitos Humanos, para defender as liberdades fundamentais dentro do país e para cumprir as próximas recomendações do Relator Especial.

 

 

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