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Brasil: Revogue portaria que restringe o acesso ao aborto

Notificar casos de sobreviventes de estupro à polícia pode colocar sua saúde em risco

Mulheres seguram uma faixa pedindo “aborto legal, seguro e gratuito”, durante um protesto em frente ao teatro municipal do Rio de Janeiro. © 2018 Fernando Frazão/Agência Brasil

As autoridades brasileiras deveriam revogar a portaria do Ministério da Saúde que ergue novas barreiras no acesso ao aborto legal, disse hoje a Human Rights Watch.

Entre outras medidas da portaria de 27 de agosto de 2020 que podem desencorajar o acesso ao aborto legal, está a exigência de que profissionais de saúde notifiquem à polícia quando mulheres ou meninas procurem a interrupção legal de uma gravidez após estupro, sem levar em conta sua vontade. O Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos também anunciou que criará um canal exclusivo para profissionais médicos que poderiam usá-lo para denunciar mulheres e meninas que suspeitarem ter feito um aborto ilegal.

“Em vez de garantir que as sobreviventes de estupro tenham acesso ao aborto legal, o governo está adotando políticas que podem desencorajar mulheres e meninas de buscar apoio e atendimento médico após a violência sexual”, disse Tamara Taraciuk Broner, diretora adjunta interina para as Américas da Human Rights Watch. “As autoridades brasileiras deveriam revogar imediatamente essa nova portaria, que aumenta o risco de mulheres e meninas recorrerem a abortos inseguros que podem colocar em risco suas vidas e saúde.”

A imprensa noticiou que o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse em reunião fechada a senadores, em 17 de setembro, que está disposto a alterar alguns artigos da portaria. Ele deveria revogá-la integralmente, disse a Human Rights Watch.

O Supremo Tribunal Federal poderia suspender a eficácia da portaria em decisão liminar e depois declará-la inconstitucional, em resposta a duas ações que devem ser examinadas em 25 de setembro. A Defensoria Pública da União e 11 Defensorias Públicas estaduais também pediram à justiça federal em São Paulo que derrube a portaria. O Congresso Nacional poderia aprovar um dos diversos projetos de lei apresentados para sustá-la.

A nova portaria torna obrigatório aos médicos e outros profissionais de saúde que coletem evidências e notifiquem à polícia quando uma mulher busca interromper uma gravidez que é consequência de violência sexual. O regulamento mantém a exigência anterior de que profissionais de saúde questionem mulheres e meninas a fim de obter um relato circunstanciado do tipo e forma de violência que sofreram e, quando possível, para identificar testemunhas e descrever o estuprador.

A portaria diz que as informações devem ser tratadas como “confidenciais”, mas ao mesmo tempo exige que a equipe médica entregue essas informações, supostamente confidenciais, à polícia, disse a Human Rights Watch. A equipe de saúde teria que reportar todos os casos de estupro à polícia, sem o consentimento das sobreviventes.

Também exige que as equipes médicas ofereçam às sobreviventes de estupro, que buscam o aborto legal, a possibilidade de visualização do feto por meio de ultrassonografia. Considerando a angústia emocional que mesmo a oferta pode provocar nas sobreviventes de estupro, e mais ainda a visualização do feto, a exigência parece projetada para dissuadi-las de prosseguir com o aborto legal e atrasar os cuidados médicos, disse a Human Rights Watch.

A portaria mantém a exigência de que sobreviventes de estupro que buscam um aborto legal assinem um termo de responsabilidade com uma “advertência expressa” de que caso as informações prestadas “não correspondam à legítima expressão da verdade”, elas podem ser processadas por falsidade ideológica e aborto ilegal, puníveis com até cinco e três anos de reclusão, respectivamente.

O aborto é legal no Brasil em casos de estupro, quando necessário para salvar a vida de uma mulher ou quando o feto tem anencefalia – uma condição que dificulta sua sobrevivência. Para fazer um aborto legal, uma mulher ou menina precisa de aprovação médica e pelo menos três membros de uma equipe multiprofissional – composta por obstetra, anestesista, enfermeira, assistente social e/ou psicólogo.

A Human Rights Watch já pediu, diversas vezes, para as autoridades expandirem o acesso ao aborto seguro e legal no Brasil, pois as duras restrições ao aborto no país são incompatíveis com suas obrigações sob o direito internacional dos direitos humanos. Dificultando ainda mais o acesso ao aborto legal, a nova portaria potencializa as ameaças aos direitos à vida, saúde, privacidade e sigilo médico, não discriminação, e de estar livre de tratamento cruel, desumano ou degradante.

Em um país de 210 milhões de pessoas, apenas 42 hospitais estão realizando abortos legais durante a pandemia de Covid-19, segundo um levantamento da organização não governamental Artigo 19 e as plataformas de jornalismo AzMina e Gênero e Número. Em 2019, eram 76 hospitais.

A escassez de hospitais que realizem abortos legais, a negativa de acesso ao aborto legal nos hospitais, o estigma e o medo de processo criminal podem levar mulheres e meninas que teriam o direito ao aborto legal – e aquelas cujas gestações não estão previstas nas restritivas normas brasileiras – a recorrerem a procedimentos com risco de vida. Esses fatores também podem impedi-las de procurar atendimento pós-aborto quando sofrerem complicações resultantes de procedimentos inseguros ou abortos espontâneos.

Estima-se que uma em cada cinco mulheres no Brasil tenha feito um aborto até os 40 anos, a grande maioria fora do sistema de saúde. Anualmente, cerca de 200 mulheres morrem de complicações decorrentes de abortos inseguros, segundo estimativa do Ministério da Saúde.

A Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, anunciou um canal exclusivo para profissionais médicos denunciarem “violações de direitos humanos” no dia 13 de julho. Uma diretora do ministério disse à Human Rights Watch que, embora o canal, que ainda não está operacional, tenha como finalidade denúncias de casos de violência contra crianças e adolescentes, profissionais de saúde também poderiam relatar suspeitas de abortos ilegais.

O ministério deve garantir que este canal não se torne um meio para profissionais da saúde denunciarem as mulheres que suspeitam ter feito um aborto ilegal, disse a Human Rights Watch.

No Rio de Janeiro, denúncias por profissionais da saúde à polícia levaram a quase um terço dos processos criminais por aborto ilegal contra mulheres entre 2005 e 2017, de acordo com a Defensoria Pública do Rio.

O presidente Jair Bolsonaro e a ministra Damares Alves frequentemente posicionam-se contra direitos sexuais e reprodutivos. Em junho, o ministro Pazuello exonerou dois servidores públicos depois que o presidente Bolsonaro distorceu uma nota técnica que eles haviam assinado como uma proposta de “legalização do aborto”. A nota não defendia a mudança das leis sobre aborto no Brasil, mas recomendava a manutenção de serviços de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia de Covid-19, como serviços para vítimas de violência sexual, acesso à contracepção e ao “abortamento seguro para os casos previstos em lei”.

A nova portaria também traz mais uma dimensão ao problema da violência de gênero ao intimidar sobreviventes de estupro e limitar seu acesso aos serviços de saúde, disse a Human Rights Watch.

“Forçar profissionais de saúde a atuarem como investigadores policiais não resolve o fracasso do Brasil em fazer cumprir suas leis de forma adequada para prevenir, processar e responsabilizar a violência de gênero”, disse Tamara. “Em vez disso, cria um risco adicional de trauma às sobreviventes de estupro, compromete o sigilo médico e é mais uma barreira para o acesso a serviços de aborto legal.”

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