(Joanesburgo) – As forças de segurança de Moçambique foram implicadas em abusos graves cometidos no combate de um grupo islâmico armado na província de Cabo Delgado, no norte do país.
Desde Agosto de 2018, as forças de segurança alegadamente detiveram de forma arbitrária, maltrataram e executaram sumariamente, dezenas de indivíduos suspeitos de pertencerem a um grupo islâmico armado.
“É fundamental que as autoridades moçambicanas tomem imediatamente medidas para pôr termo aos abusos cometidos pelas suas forças de segurança e para punir os responsáveis”, disse Dewa Mavhinga, diretor da Human Rights Watch na África Austral. “A existência de abusos cometidos por insurgentes nunca justifica a violação dos direitos dos indivíduos; as forças de segurança devem proteger a população em Cabo Delgado, não abusar dos indivíduos”.
A Human Rights Watch entrevistou 12 vítimas e testemunhas de abusos, tanto em pessoa como por telefone, bem como oficiais das forças de segurança e jornalistas, entre 10 e 27 de Novembro.
Muitos dos abusos relatados ocorreram no seguimento de ataques a aldeias levados a cabo por um grupo islâmico armado conhecido localmente como Al-Sunna wa Jama'a e Al-Shabab, embora não tenha qualquer ligação publicamente conhecida ao grupo somali armado com o mesmo nome. Os ataques insurgentes na província de Cabo Delgado, que começaram em Outubro de 2017, levaram a que o acesso à área ficasse restrito durante dois dias, bem como a uma resposta militar em larga escala. Desde então, os insurgentes levaram a cabo mais de 60 ataques em cinco distritos, forçando milhares de pessoas a fugir e a deixar as suas casas para trás. O grupo tem sido responsável por assassinatos, pilhagens e fogo posto.
As forças de segurança que chegam às aldeias horas depois de os ataques terem ocorrido têm detido jovens do sexo masculino e outros indivíduos que se recusam a cooperar. No incidente mais recente relatado, em 23 de Novembro, a polícia estacionada na vila de Chicuaia Velha, distrito de Nangane, deteve vários residentes da aldeia, a maioria dos quais eram homens que tinham optado por não fugir após o ataque. Na noite anterior, insurgentes armados com catanas e facas invadiram a vila, incendiaram casas e mataram pelo menos 12 pessoas, incluindo mulheres e crianças.
Um alto funcionário do exército, que pediu para não ser identificado, disse que os suspeitos foram levados para uma "area de investigação temporária" em quartéis improvisados no distrito de Mocimboa da Praia. "Quem não fugiu da aldeia tem de explicar o que viu, por que é que não fugiram e se reconheceram algum dos agressores", explicou. “É um procedimento normal. Se a pessoa for inocente, deixamo-la ir." Uma semana depois, estes homens ainda não foram acusados, nem apresentados a um juiz, nem sequer autorizados a entrar em contacto com os seus advogados ou familiares, o que viola a legislação moçambicana e o direito internacional.
Quatro homens descreveram como foram detidos em Agosto depois de as forças do governo terem invadido alegados campos de treino de insurgentes no distrito de Palma. Dois homens, com 26 e 32 anos, explicaram que foram detidos pelos soldados quando estavam a cortar lenha na floresta em 11 de Agosto e que foram obrigados a entrar num veiculo militar. Um dos homens exigiu saber onde estavam a ser levados. Um dos soldados, que os acusou de pertencerem a um grupo armado, agrediu-o gravemente na cabeça e no estômago com uma espingarda de assalto AK47.
Os homens passaram a noite em quartéis militares na floresta com cerca de mais uma dezena de outros detidos. Na manhã seguinte, os soldados levaram-nos para a prisão de Mieze, a cerca de 20 quilómetros da capital da província, Pemba. Os dois detidos foram libertados em 16 de Agosto sem qualquer acusação formal.
Dois outros homens disseram que foram detidos, juntamente com um alegado líder religioso islâmico em Palma e mais oito homens em 18 de Agosto, dois dias após as forças de segurança terem atacado uma alegada base insurgente no distrito de Palma. Os detidos foram levados para quartéis militares no distrito de Mocimboa da Praia e interrogados durante toda a noite.
"Estavam lá muitos outros", disse um dos detidos, agricultor, 23 anos. "Mandaram-nos tirar as camisas e sentar no chão. Os soldados vinham e levavam-nos um a um para a floresta; depois ouvíamos tiros seguidos de gritos. Alguns deles não voltaram." Um agricultor de 25 anos também disse que vários dos detidos foram levados para o exterior. Seguiram-se tiros e gritos e os homens nunca regressaram. Os dois homens disseram ter sido libertados na manhã seguinte. Dois outros detidos deste grupo foram posteriormente transferidos para Pemba e estão a ser julgados por crimes contra a segurança do Estado.
Dois soldados no distrito de Macomia confirmaram a morte de suspeitos, mas não forneceram mais detalhes, por receio de virem a ser identificados. Um dos soldados disse que tinham recebido “ordens dos seus superiores” para eliminar os “bandidos”. Explicou que, segundo o seu entendimento, estas palavras significavam que deveriam "matá-los sempre que possível". Um terceiro soldado partilhou fotos de cadáveres de alegados insurgentes que foram executados extrajudicialmente durante uma operação no distrito de Nangade, em 13 de Novembro.
De acordo com a legislação moçambicana, os militares estão proibidos de manter indivíduos detidos em quartéis militares. Os suspeitos detidos durante operações militares devem ser entregues à polícia, que procederá à sua detenção e decidirá se irá libertar os suspeitos ou acusá-los, dentro de 48 horas. A Constituição de Moçambique diz que os detidos devem ser informados das acusações que lhes são imputadas e das razões da sua detenção no momento da mesma.
Inácio Dina, porta-voz da polícia responsável pelas comunicações sobre as operações militares em Cabo Delgado, negou que haja suspeitos a serem interrogados em quartéis militares. Disse à Human Rights Watch em 27 de Novembro que "qualquer pessoa que esteja envolvida em atividades suspeitas nas regiões atacadas por grupos armados é entregue à polícia". Também disse que as forças de segurança no terreno incluem vários ramos da polícia, serviços secretos e exército, “cada um dos quais cumprindo o seu mandato de acordo com a lei”.
Em 30 de Setembro, um tribunal em Pemba deu início ao julgamento de 189 pessoas, incluindo moçambicanos, tanzanianos, congoleses, somalis e burundianos, suspeitos de pertencerem ao grupo islâmico armado. Quarenta e dois dos réus são mulheres. Estes indivíduos são acusados de homicídio, uso de armas proibidas, crimes contra a segurança do Estado e perturbação da ordem pública. Um procurador do Ministério Público da província de Cabo Delgado, que pediu para não ser identificado, disse que muitos dos réus acusaram os soldados de manterem-nos detidos durante várias semanas antes de entrega-los à polícia, fazendo uso de tortura para forçá-los a confessar e, em alguns casos, matando suspeitos de insurgência desarmados no mato.
Em Novembro, uma equipa da Comissão Nacional de Direitos Humanos de Moçambique visitou as prisões onde os réus estão detidos. Esta equipa documentou sérios abusos dos direitos humanos, incluindo uma sobrelotação tão grave que obrigava os prisioneiros a dormir em pé. O presidente da comissão, Luis Bitone, disse à imprensa que habitantes das aldeias visadas pelo grupo armado encontraram cadáveres espalhados pela floresta e que têm medo de dormir nas próprias casas devido aos ataques.
Alegações feitas no passado de abusos cometidos pelas forças de segurança contra alegados insurgentes islâmicos levaram o Presidente Filipe Nyusi a condenar publicamente estes atos. Em Outubro, a agência noticiosa estatal AIM citou o presidente dizendo que havia instruído as forças de segurança em Cabo Delgado a não matar suspeitos de pertencerem ao grupo armado.
"O facto de o presidente Nyusi ter condenado publicamente os abusos foi um passo importante", disse Mavhinga. "No entanto, para pôr verdadeiramente termo aos abusos, aqueles que cometeram abusos no passado têm de ser responsabilizados."