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Bom dia, Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro Dias Tóffoli, 

Cumprimento Vossa Excelência e todos os presentes, demais autoridades, colegas na luta pelos direitos da pessoa com deficiência no Brasil, aqueles que nos assistem, e demais participantes desta importante audiência sobre a Política Nacional de Educação Especial, prevista no Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, objeto da ação direta de inconstitucionalidade 6590. 

A Human Rights Watch é uma organização internacional, independente e não governamental, dedicada a defender e proteger os direitos humanos nos mais de 100 países onde atuamos, inclusive os direitos das pessoas com deficiência. 

Na última década, realizamos investigações sobre educação inclusiva na Itália, Irã, Líbano, Rússia, África do Sul, entre outros países.  

Descobrimos que a educação inclusiva é a melhor maneira de garantir um sistema que respeita os direitos humanos de forma ampla, no qual as crianças com deficiência podem se desenvolver. Além disso, ela beneficia todas as crianças.  

Especialistas em educação inclusiva ressaltam, que crianças com Síndrome de Down, por exemplo, assim como muitas outras crianças com deficiência, se desenvolvem e se beneficiam mais quando aprendem em ambientes inclusivos, devendo ser incluídas nas escolas regulares com o nível adequado de apoio. 

O que temos visto no Brasil, entretanto, está longe de ser inclusivo, infelizmente. A Política Nacional de Educação Especial estabelecida pelo presidente Jair Bolsonaro por meio do Decreto em referência só pioraria as coisas, além de ser inconsistente com as obrigações do Brasil perante o ordenamento jurídico internacional dos direitos humanos. Hoje eu quero apresentar aos Senhores os motivos.  

São três razões principais. 

Primeiramente, o Decreto reforça estigmas e preconceitos. 

Entre 2017 e 2018 estive no Brasil para investigar sobre a situação em que viviam pessoas com deficiência em instituições de acolhimento nos estados de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e no Distrito Federal, o que resultou na publicação do relatório “Eles Ficam Até Morrer”. Descobrimos que a maioria dessas instituições não oferecia às pessoas com deficiência, especialmente a crianças com necessidade de apoio intensivo, a oportunidade de frequentar a escola no sistema regular de ensino ou, em alguns casos, em qualquer sistema educacional. 

Durante as entrevistas que fiz com funcionários dessas instituições e servidores públicos, identifiquei uma clara tendência de classificar as crianças de acordo com o que entendiam ser o seu o grau de deficiência. Vários destes funcionários nos disseram acreditar que alguns residentes não deviam receber nenhum tipo de educação porque tinham as chamadas “deficiências graves” ou eram “muito comprometidos”, se referindo aqueles com necessidade de apoio mais intensivo. 

Nesta linha, ao invés de desenvolver políticas para remover definitivamente os obstáculos existentes à educação inclusiva de qualidade para todas as pessoas com deficiência, o Decreto do Presidente Bolsonaro vem reforçar este tipo de entendimento, contendo uma série de dispositivos estigmatizantes que envolvem a identificação das crianças que "não se beneficiam" da educação inclusiva. O decreto reforça a noção de que algumas pessoas com deficiência deveriam ser excluídas do sistema geral de ensino.  

A consequência dessa mentalidade somada a outros fatores, como políticas fracassadas de inclusão, tem sido brutal para milhares de crianças e pessoas com deficiência que vivem em áreas marginalizadas ou em instituições de acolhimento, já que são deixadas pra trás com pouquíssima ou nenhuma possibilidade.  

Por exemplo, na Bahia conheci Mariana, uma jovem de 18 anos cega que não sabia ler nem escrever e não tinha aprendido braile. Ela morava em uma instituição desde os 12 anos de idade e nunca teve a oportunidade de ir à escola, embora seu sonho fosse ser professora ou fisioterapeuta.  

Conheci crianças com deficiências intelectuais e de desenvolvimento e pessoas com deficiências físicas com necessidade de suporte intensivo que também nunca tiveram acesso à educação. 

Um SEGUNDO MOTIVO para extirpar o Decreto do Presidente Bolsonaro  do ordenamento jurídico brasileiro é que ele é inconsistente com os compromissos e obrigações internacionais do estado brasileiro. Em 2009, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Todos os direitos estabelecidos pela Convenção foram incorporados ao seu ordenamento jurídico como direitos constitucionais. 

Isso inclui não apenas o direito a uma educação inclusiva e de qualidade, livre de discriminação e com adequações razoáveis em todos os níveis de educação, mas também o direito fundamental das pessoas com deficiência de participarem do debate público por meio de suas organizações representativas. Incluindo consultando-as no desenvolvimento de toda política que lhes digam respeito. 

Por meio da lei de acesso à informação, a Human Rights Watch obteve junto à Secretaria-Geral da Presidência, o Ministério da Educação e o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, proponentes do Decreto, a sua “exposição de motivos”, documento obrigatório na elaboração de políticas públicas. A exposição de motivos deixa claro que o governo não cumpriu sua obrigação internacional de consultar pessoas com deficiência, incluindo crianças, na elaboração do decreto. 

A única “consulta” pública que o governo afirma ter feito foi em 2018, por meio de uma enquete online a qual questionava os cidadãos sobre a necessidade de reformar a Lei Brasileira de Inclusão. E mesmo essa pesquisa não buscou significativamente as opiniões das pessoas com deficiência.  

Dos mais de 8 mil participantes, apenas 47, ou seja 0,6 por cento, eram alunos com deficiência beneficiados pela educação inclusiva. As respostas de 47 pessoas não podem ser, de forma alguma, entendidas como representativas dos mais de 1 milhão de alunos da educação inclusiva do país. De qualquer forma, inclusive a maioria dessas 47 pessoas era favorável a educação inclusiva. 

Em terceiro lugar, o Decreto também é inconsistente com as obrigações do Brasil de garantir igualdade e não discriminação na educação para pessoas com deficiência. A Convenção exige que os governos assegurem o acesso à educação das crianças com deficiência no sistema educacional regular em condições de igualdade com os demais, ou seja, sem discriminação.  

O Decreto contém uma série de dispositivos que parecem destinados a discriminar as crianças com deficiência e excluí-las do sistema geral de educação. Os artigos 2º e 9ºparecem encorajar as autoridades a estabelecerem escolas segregadas para estudantes com deficiência que “não se beneficiam” da educação inclusiva ou criarem turmas separadas nas escolas regulares para pessoas com deficiência. A simples ideia de que algumas crianças se beneficiam da educação inclusiva e outras não, é discriminatória. 

O Decreto cria uma brecha ao permitir que crianças sejam qualificadas como "não educáveis" partindo de classificações muitas vezes arbitrárias. 

O direito a não discriminação inclui o direito de não ser segregado. O Comitê da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência declarou que a obrigação dos Estados de garantir o direito à educação para essas pessoas “não é compatível com a manutenção de dois sistemas de educação: um sistema de ensino regular e um sistema de educação especial/segregado”. O Comitê também observa que “todos os ambientes dos estudantes com deficiência devem ser projetados de forma a promover a inclusão e garantir sua igualdade”. 

Com base no exposto, a Human Rights Watch considera o Decreto nº 10.502 inconsistente com as obrigações internacionais de direitos humanos do país, e incapaz de garantir o direito das pessoas com deficiência a uma educação de qualidade e inclusiva no sistema regular de ensino sem qualquer discriminação. Portanto, ele deve ser julgado inconstitucional por esta Respeitosa Corte. O Brasil deve isso a todas as crianças, estejam elas em instituições ou não. 

Senhores Ministros, peço que, em nome de Leonardo, Mariana, Milton, Silvana, Sofia e outras 85 crianças que conheci em instituições e que não receberam uma educação inclusiva e de qualidade, deixem muito claro às autoridades e à sociedade em geral que o Brasil honrará com suas obrigações e não deixará  ninguém para trás. 

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