(São Paulo) – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria vetar um projeto de lei que visa enfraquecer as regulamentações sobre o registro e autorização de agrotóxicos no Brasil, disse a Human Rights Watch hoje. O Projeto de Lei 1459/2022, aprovado pelo Senado em regime de urgência em 28 de novembro de 2023, representa uma séria ameaça ao meio ambiente e ao direito à saúde.
O projeto de lei, que grupos de direitos humanos e ambientais chamam de PL do Veneno, reduz substancialmente o papel das agências de saúde e meio ambiente em determinar quais agrotóxicos podem ser usados no Brasil e concede ao Ministério da Agricultura a autoridade principal no processo de registro e autorização. Também cria novos prazos, que aceleram o registro de agrotóxicos, e permite aprovações temporárias antes que os riscos do agrotóxico sejam completamente revisados.
“A população brasileira tem direito a alimentos seguros, água limpa e ar puro”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. “Em vez de abrir as comportas para perigosos agrotóxicos, o presidente Lula deveria vetar o projeto de lei e melhorar as regulamentações para proteger a vida dos brasileiros e o meio ambiente”.
O Senado aprovou o projeto de lei após aprovação do parecer na Comissão de Meio Ambiente do Senado e de um requerimento de regime de urgência feito pela senadora Tereza Cristina, dispensando, assim, a revisão por outras comissões temáticas. Especialistas da ONU pediram repetidamente ao Senado para rejeitar o projeto de lei, alertando que sua implementação “marcaria um retrocesso monumental para os direitos humanos no país”. Embora o projeto de lei tenha sofrido modificações, muitas das sérias preocupações levantadas pelos especialistas permanecem. Outro projeto de lei, proposto por organizações da sociedade civil visando estabelecer uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, está em tramitação desde 2016.
O Brasil já importa mais agrotóxicos do que qualquer outro país. Quase metade é classificada como “altamente perigosa” pela Pesticide Action Network (Rede de Ação contra Agrotóxicos, em tradução livre), uma organização internacional. Isso significa que tais agrotóxicos “são reconhecidos por apresentar níveis particularmente altos de riscos agudos ou crônicos para a saúde ou meio ambiente” de acordo com sistemas de classificação internacionais. Os riscos à saúde de certos agrotóxicos incluem câncer, problemas hormonais, infertilidade, aborto espontâneo, impactos negativos no desenvolvimento fetal, doenças neurológicas e morte.
Apesar desses riscos, o projeto de lei proposto remove proibições existentes para o registro de agrotóxicos associados ao câncer, desregulação endócrina, mutação genética ou dano ao sistema reprodutivo, e substitui essas importantes proteções à saúde por uma proibição vaga aos agrotóxicos com “risco inaceitável”. De acordo com o projeto de lei, as agências de saúde e meio ambiente seriam responsáveis por analisar e aprovar pareceres técnicos acerca dos riscos à saúde e ao meio ambiente, fornecidos pelo requerente do registro. No entanto, de acordo com o projeto de lei, a decisão final de emitir o registo e a autorização dos agrotóxicos caberá ao Ministério da Agricultura, não ficando claro em que medida tal ministério terá de levar em conta as avaliações dos órgãos federais da saúde e do meio ambiente.
O “PL do Veneno”, surgiu em 1999 como iniciativa do então senador Blairo Borges Maggi, apelidado de “rei da soja”, proveniente do principal estado produtor de soja, o Mato Grosso. Maggi faz parte da família que possui o Grupo Ammagi, um dos maiores produtores de soja do mundo. Quase metade dos agrotóxicos importados para o Brasil é usado na produção de soja.
Aproximadamente metade das importações de soja da União Europeia (UE) veio do Brasil em 2022, totalizando mais de 150 milhões de quilogramas. Mato Grosso sozinho representa um quinto de todas as exportações de soja brasileiras para a UE.
Especialistas alertaram que o novo projeto de lei dará às corporações mais poder para ditar o uso de agrotóxicos no Brasil. Especialistas da ONU expressaram preocupações de que a “capacidade financeira esmagadora do lobby da agricultura no Brasil controlaria facilmente as decisões adotadas com este novo arranjo institucional”. A redução da supervisão sobre o uso de agrotóxicos também cria um potencial risco de redução do direito ao acesso à informação sobre saúde.
O projeto de lei reduz os prazos para o registro de agrotóxicos no Brasil para um máximo de dois anos e dá ao Ministério da Agricultura a autoridade para aprovar temporariamente o uso de alguns agrotóxicos antes que outras agências reguladoras tenham tido a chance de concluir suas análises dos riscos do produto importado. De acordo com especialistas da ONU, esses novos prazos “claramente privilegiam os interesses comerciais da indústria em detrimento da proteção dos direitos das pessoas à saúde e à vida”.
O “PL do Veneno” enfraquece ainda mais as já inadequadas regulamentações para proibir ou limitar o uso de agrotóxicos altamente perigosos e proteger contra exposições nocivas. Em 2018, a Human Rights Watch constatou que muitas pessoas que vivem em áreas rurais do Brasil foram envenenadas por agrotóxicos pulverizados perto de suas casas, escolas e locais de trabalho. Segundo dados do sistema de notificação do Ministério da Saúde, em média, uma pessoa morre por envenenamento por agrotóxicos no Brasil a cada três dias. Estes números são provavelmente subestimados, devido as barreiras no acesso a serviços de saúde em áreas rurais, além da falta de treinamento e da limitada cobertura laboratorial para confirmar os casos.
Regulamentações sobre zonas de segurança para a pulverização de agrotóxicos são inadequadas e raramente aplicadas. Em vez disso, a Human Rights Watch constatou que pessoas em muitas comunidades expostas temem represálias de grandes proprietários de terras. Algumas pessoas disseram à Human Rights Watch que receberam ameaças ou que temiam sofrer retaliação se denunciassem a pulverização de agrotóxicos que acreditavam as ter envenenado.
Regulamentações fracas afetam toda a população brasileira quando agrotóxicos perigosos aparecem em frutas, legumes e na água potável. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) testou mais de 4.600 amostras de produtos comuns de supermercados em quase todos os estados brasileiros entre agosto de 2017 e junho de 2018 e descobriu que quase um quarto das amostras tinha traços perigosos de agrotóxicos, incluindo aqueles considerados altamente perigosos.
Por exemplo, pesquisadores encontraram traços de atrazina em alfaces, substância proibida na UE desde 2003 porque interfere na reprodução e desenvolvimento humano e pode causar câncer. A atrazina permanece um dos principais agrotóxicos do Brasil e é usada em 5% dos produtos de controle de pragas do país.
Traços de agrotóxicos perigosos também aparecem nas exportações do Brasil. Um estudo de 2023 do Greenpeace Alemanha encontrou resíduos de perigosos agrotóxicos em limões exportados pelo Brasil para a UE, incluindo alguns agrotóxicos proibidos para uso na UE.
Os países da UE deveriam manifestar ao Presidente Lula a sua preocupação com o facto de o "PL do Veneno" pode aumentar o risco de agrotóxicos perigosos aparecerem nos produtos exportados do Brasil. A Comissão Europeia também deve cumprir seu compromisso de 2020 de adotar novas medidas para garantir que produtos químicos perigosos proibidos de serem usados na UE não sejam produzidos para exportação, inclusive para o Brasil, disse a Human Rights Watch.
O “PL do Veneno” ameaça os direitos humanos à vida, à saúde e a um ambiente saudável, disse a Human Rights Watch.
“O Brasil é um dos principais produtores de alimentos do mundo, e suas regulamentações fracas sobre agrotóxicos perigosos são uma preocupação global”, disse Canineu. “Os principais importadores de produtos brasileiros na União Europeia deveriam pressionar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar o ‘PL do Veneno’ e traçar um caminho em direção a um sistema regulatório centrado na saúde e na sustentabilidade ambiental.”