Síntese
Em maio de 2013, um avião pulverizou agrotóxicos sobre a escola rural São José do Pontal, localizada em meio às vastas plantações de milho e soja em volta de Rio Verde, uma cidade no estado de Goiás, no Brasil. Cerca de 90 pessoas—a maioria delas crianças que estudam na escola—foram imediatamente hospitalizadas. O incidente chocou o país e, logo em seguida, o Brasil se preocupou com o problema das intoxicações por agrotóxicos em áreas rurais.
Embora essa atenção tenha se dissipado desde então, pouco mudou: pessoas em zonas rurais por todo o país continuam sendo intoxicadas por agrotóxicos. Pessoas comuns, em suas rotinas diárias, são expostas a tóxicas aplicações de agrotóxicos que ocorrem com frequência nas proximidades de suas casas, escolas e locais de trabalho. Elas são expostas quando os agrotóxicos pulverizados em plantações se dispersam durante a aplicação ou quando os agrotóxicos evaporam e seguem para áreas adjacentes nos dias após a pulverização.
De julho de 2017 a abril de 2018, a Human Rights Watch entrevistou 73 pessoas afetadas pela deriva de agrotóxicos em sete locais em zonas rurais no Brasil, incluindo comunidades rurais, comunidades indígenas, comunidades quilombolas e escolas rurais.[1] Esses locais estão localizados nas cinco regiões geográficas do Brasil.
Em todos os sete locais, as pessoas descreveram sintomas consistentes com a intoxicação aguda por agrotóxicos após verem pulverização de agrotóxicos nas proximidades, ou sentirem o cheiro de agrotóxicos recentemente aplicados em plantações próximas. Esses sintomas geralmente incluem sudorese, frequência cardíaca elevada e vômitos, além de náusea, dor de cabeça e tontura.
Não há dados confiáveis do governo sobre quantas pessoas no Brasil sofrem intoxicação por agrotóxicos. O Ministério da Saúde reconhece que a subnotificação de intoxicações por agrotóxicos é uma preocupação e parece claro que os dados oficiais subestimam a gravidade deste problema.
Embora este relatório documente casos de intoxicação aguda, a exposição crônica a agrotóxicos—ou seja, a exposição repetida a doses baixas por um período prolongado—também é uma séria preocupação de saúde pública. A exposição crônica a agrotóxicos é associada à infertilidade, a impactos negativos no desenvolvimento fetal, ao câncer e a outros efeitos graves à saúde—e mulheres grávidas, crianças e outras pessoas vulneráveis podem enfrentar riscos maiores.
Em muitos casos, não há legislação nacional, estadual ou municipal que proteja as pessoas da deriva de agrotóxicos. Não existe uma regulamentação nacional que estabeleça uma zona de segurança em torno de locais sensíveis onde a pulverização terrestre de agrotóxicos seja proibida; e a maioria dos estados tampouco possui uma lei desse tipo.[2] A Human Rights Watch constatou que, mesmo nos poucos estados que estipulam zonas de segurança para a pulverização terrestre, essas regras são frequentemente desrespeitadas.
Há um regulamento nacional que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos a 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de água. Porém, assim como ocorre com as zonas de segurança para pulverização terrestre em nível estadual, essa regulamentação não é observada de forma consistente.
De modo geral, a intoxicação aguda por agrotóxicos e a exposição crônica não chamam a atenção do público em geral e dos formuladores de políticas públicas do Brasil. Uma das razões mais perversas para essa invisibilidade é o medo que muitos membros de comunidades rurais sentem de represálias por parte de grandes proprietários de terra. Em 2010, um agricultor rural e ativista contra o uso de agrotóxicos foi morto a tiros após pressionar o governo local a proibir a pulverização aérea naquele ano. No decorrer da investigação para este relatório, ameaças ou medo de retaliação foram mencionados em cinco dos sete locais visitados.
O Brasil precisa urgentemente adotar medidas para limitar a exposição a agrotóxicos que são prejudiciais à saúde humana. As autoridades brasileiras devem conduzir um estudo detalhado e imediato sobre os impactos à saúde e ao meio ambiente do atual tratamento dispensado aos agrotóxicos. Até concluir esse estudo, o Brasil deve impor uma suspensão à pulverização aérea, além de impor e assegurar uma proibição imediata à pulverização terrestre próxima a locais sensíveis.
Recomendações
Ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
- Estabelecer e implementar uma regulamentação nacional sobre zonas de segurança em torno de locais sensíveis, incluindo áreas de habitação humana e escolas, para todas as formas de pulverização terrestre;
- Estabelecer uma suspensão à pulverização aérea de agrotóxicos até que o Ministério, em conjunto com os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente e como parte de uma revisão nacional das políticas atuais sobre agrotóxicos, realize um estudo sobre os impactos à saúde humana, ambientais e os custos econômicos da pulverização aérea (incluindo um estudo de viabilidade sobre formas alternativas de aplicação);
- Em conjunto com os Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, desenvolver um plano de ação nacional abrangente para reduzir o uso de agrotóxicos altamente perigosos no Brasil, que deverá conter metas vinculantes e mensuráveis de redução com prazos e incentivos para apoiar alternativas e reduções no uso de agrotóxicos altamente perigosos.
Ao Ministério da Saúde
- Como parte de uma revisão nacional das políticas atuais de agrotóxicos, conduzir um estudo sobre os principais efeitos à saúde e os custos associados à exposição aguda e crônica a agrotóxicos entre as pessoas que vivem em áreas rurais, incluindo mulheres grávidas, crianças e outras pessoas vulneráveis;
- Em conjunto com os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Meio Ambiente, desenvolver um plano de ação nacional abrangente para reduzir o uso de agrotóxicos altamente perigosos no Brasil, que deverá conter metas vinculantes e mensuráveis de redução com prazos e incentivos para apoiar alternativas e reduções no uso de agrotóxicos altamente perigosos;
- Desenvolver e implementar um protocolo para receber denúncias sobre a pulverização de agrotóxicos em torno de locais sensíveis, incluindo áreas de habitação humana e escolas, com medidas detalhadas para:
- Assegurar que as autoridades de saúde conduzam um acompanhamento de saúde e monitoramento da água para consumo humano;
- Fornecer informações sobre casos de pulverização de agrotóxicos em torno de locais sensíveis às autoridades agrícolas a fim de garantir que a pulverização de agrotóxicos seja realizada de acordo com a lei.
- Assegurar que a legislação existente sobre monitoramento de água para consumo humano seja aplicada, particularmente a exigência de que provedores de serviços de água conduzam 2 testes por ano de todos os 27 agrotóxicos listados no regulamento do Ministério da Saúde sobre a qualidade de água para consumo humano;
- Monitorar a presença de agrotóxicos na água para consumo humano em comunidades indígenas;
- Fornecer apoio técnico aos estados e municípios para realizar o monitoramento da água para consumo humano em comunidades rurais e quilombolas;
- Garantir que a rede nacional de laboratórios de vigilância sanitária que monitoram os resíduos de agrotóxicos na água e em alimentos disponha de equipamento e treinamento de pessoal adequados para realizar o teste de resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água para consumo humano;
- Ampliar, em termos de número e tipo de alimentos e agrotóxicos testados, a análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos no âmbito do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA);
- Publicar informes anuais sobre os resultados do monitoramento de agrotóxicos na água e em alimentos;
- Ampliar o treinamento de profissionais de saúde quanto a intoxicações por agrotóxicos, incluindo treinamento em diagnósticos clínicos de intoxicações agudas e de exposição crônica a agrotóxicos, e quanto às obrigações de notificação;
- Melhorar as informações disponíveis aos profissionais de saúde sobre tipos de agrotóxicos e seus impactos agudos e crônicos à saúde, inclusive por meio de um banco de dados on-line com informações toxicológicas para os agrotóxicos mais amplamente usados no Brasil e o manejo clínico de efeitos agudos e/ou crônicos à saúde;
- Aumentar o apoio técnico aos programas estaduais de vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos;
- Elaborar campanhas de conscientização sobre agrotóxicos, seus riscos relacionados à saúde, e como proceder em caso de exposição e/ou intoxicação.
Ao Ministério do Meio Ambiente
- Como parte de uma revisão nacional das políticas atuais de agrotóxicos, conduzir um estudo dos principais impactos ambientais das atuais políticas de agrotóxicos;
- Em conjunto com os Ministérios da Saúde e da Agricultura, desenvolver um plano de ação nacional abrangente para reduzir o uso de agrotóxicos altamente perigosos no Brasil, que deverá conter metas vinculantes e mensuráveis de redução com prazos e incentivos para apoiar alternativas e reduções no uso de agrotóxicos altamente perigosos.
Ao Ministério da Educação
- Em conjunto com o Ministério da Saúde, realizar uma avaliação nacional das escolas particularmente sob risco de exposição à pulverização de agrotóxicos;
- Em conjunto com secretarias estaduais e municipais de educação, orientar e garantir que diretores e diretoras de escolas notifiquem os casos de intoxicação de estudantes por agrotóxicos, incluindo casos suspeitos, às autoridades de saúde, conforme prescrito na lista do Ministério da Saúde sobre doenças e agravos que requerem notificação compulsória;
- Trabalhar em colaboração com autoridades de saúde nos níveis federal, estadual e municipal para monitorar a exposição e os impactos à saúde das populações escolares expostas à pulverização de agrotóxicos;
- Trabalhar em colaboração com autoridades com competência sobre agricultura nos níveis federal, estadual e municipal para reduzir a exposição a agrotóxicos, incluindo a implementação de zonas de segurança para pulverização terrestre e aérea nas proximidades de escolas;
- Incluir o ensino sobre danos causados por agrotóxicos e estratégias de proteção no currículo escolar, como parte da educação ambiental.
Ao Congresso Nacional
- Rejeitar projetos de lei que venham a enfraquecer a estrutura regulatória do Brasil sobre agrotóxicos, incluindo o projeto de lei 6.299/2002.
- Designar apoio financeiro adequado ao Ministério Público Federal, ao Ministério da Saúde, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ao Ministério do Meio Ambiente, ao Ministério da Educação e ao Ministério dos Direitos Humanos para implementarem as respectivas recomendações deste relatório.
Aos Ministérios Públicos Federal e Estadual
- Investigar e processar, sem demoras, os casos suspeitos de pulverização dentro de zonas de segurança ou de danos à saúde ou ambientais resultantes da pulverização de agrotóxicos;
- Investigar e processar, sem demoras, os casos suspeitos de ameaças contra moradores ou lideranças comunitárias por denunciarem os efeitos dos agrotóxicos à saúde ou por pressionarem por melhor proteção contra a exposição a agrotóxicos;
- Desenvolver diretrizes sobre como investigar e processar casos de intoxicações agudas ou crônicas por agrotóxicos, incluindo medidas detalhadas relativas:
- A um canal de comunicação para que autoridades de saúde e ambientais encaminhem casos suspeitos de uso ilegal de agrotóxicos danosos à saúde pública ou ao meio ambiente;
- À coordenação com serviços de saúde especializados para pessoas expostas aos riscos;
- À proteção de quem denuncia e de quem testemunha ameaças e atos de retaliação;
- À coleta de evidências de violação de normas e regulamentos relacionados a agrotóxicos.
- Treinar procuradores federais e promotores de justiça para investigarem e processarem casos relacionados à pulverização ilegal de agrotóxicos.
Ao Ministério de Direitos Humanos
- Proteger as pessoas em risco por denunciarem questões relacionadas a agrotóxicos no âmbito do atual programa de defensores de direitos humanos e outros programas;
- Designar e treinar especialistas para se especializarem em casos relacionados a agrotóxicos.
Às Secretarias de Estado da Agricultura
- Quando estabelecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, implementar rigorosamente as zonas de segurança para pulverização terrestre;
- Na ausência de ação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estabelecer e implementar rigorosamente as zonas de segurança para pulverização terrestre;
- Fornecer apoio aos municípios na regulamentação de agrotóxicos, incluindo a implementação e monitoramento de zonas de segurança.
Às Secretarias de Estado da Saúde
- Assegurar que a legislação existente sobre testes de água para consumo humano seja aplicada, particularmente a exigência de que provedores de serviços de água conduzam 2 testes por ano de todos os 27 agrotóxicos listados no regulamento do Ministério da Saúde sobre a qualidade da água para consumo humano;
- Desenvolver e implementar o programa estadual de vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos, incluindo medidas detalhadas relativas:
- À vigilância da água para consumo humano, incluindo quanto a todos os 27 agrotóxicos listados no regulamento do Ministério da Saúde sobre a qualidade da água para consumo humano, bem como outros agrotóxicos utilizados intensivamente no estado;
- Ao monitoramento de resíduos de agrotóxicos em alimentos;
- À identificação e ao monitoramento de comunidades rurais e quilombolas, escolas e outros locais sensíveis expostos à pulverização de agrotóxicos;
- Monitorar e informar publicamente os incidentes de exposição e quaisquer impactos adversos à saúde causados pela pulverização de agrotóxicos em comunidades rurais, escolas e outros locais sensíveis, bem como quaisquer medidas adotadas ou não pelas autoridades locais para reduzir a exposição à pulverização de agrotóxicos.
Às Secretarias Municipais de Agricultura
- Quando estabelecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ou pela Secretaria Estadual de Agricultura, implementar rigorosamente as zonas de segurança para pulverização terrestre;
- Na ausência de ação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ou da Secretaria Estadual de Agricultura, estabelecer e aplicar rigorosamente as zonas de segurança para pulverização terrestre.
Às Secretarias Municipais de Saúde
- Assegurar que a legislação existente sobre testes de água para consumo humano seja aplicada, particularmente quanto a exigência de que provedores de serviços de água conduzam 2 testes por ano de todos os 27 agrotóxicos listados no regulamento do Ministério da Saúde sobre a qualidade da água para consumo humano;
- Desenvolver e implementar o programa municipal de vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos, incluindo medidas detalhadas relativas:
- Ao monitoramento da água para consumo humano, incluindo quanto a todos os 27 agrotóxicos listados no regulamento do Ministério da Saúde sobre a qualidade da água para consumo humano, bem como outros agrotóxicos utilizados intensivamente no estado;
- À identificação e ao monitoramento de comunidades rurais e quilombolas, escolas e outros locais sensíveis expostos à pulverização de agrotóxicos.
- Monitorar e informar publicamente os incidentes de exposição e quaisquer impactos adversos à saúde causados pela pulverização de agrotóxicos em comunidades rurais, escolas e outros locais sensíveis, bem como quaisquer medidas adotadas ou não pelas autoridades locais para reduzir a exposição à pulverização de agrotóxicos.
Metodologia
Embora a deriva de agrotóxicos seja uma questão de grande preocupação em muitas partes do mundo, a Human Rights Watch conduziu uma pesquisa no Brasil por diversos motivos, incluindo a quantidade significativa de agrotóxicos usados no país em relação ao consumo mundial; que muitos dos agrotóxicos usados no Brasil são altamente perigosos; e que há uma pressão política intensa para enfraquecer ainda mais o sistema regulatório do Brasil para agrotóxicos.
De julho de 2017 a abril de 2018, a Human Rights Watch passou um total de sete semanas viajando em áreas rurais do Brasil, entrevistando pessoas sobre os efeitos de agrotóxicos aplicados em fazendas próximas às áreas em que vivem, estudam e trabalham. Algumas pessoas que contatamos preferiram não falar, sem nos darem uma razão particular ou, em outras ocasiões, expressaram medo de retaliação caso falassem.
Dentre as pessoas que concordaram em compartilhar suas experiências, a Human Rights Watch entrevistou 73 pessoas afetadas, em sete locais, incluindo comunidades rurais, comunidades indígenas, comunidades quilombolas e escolas rurais.
Esses lugares estão localizados em todas as cinco principais regiões geográficas do país. As comunidades estão todas localizadas em zonas rurais, uma vez que a exposição a agrotóxicos agrícolas é um fenômeno predominantemente rural. As comunidades foram identificadas após consultas a pessoas com conhecimento sobre questões de agrotóxicos no Brasil e representam uma variedade de diferentes perfis de pessoas expostas a agrotóxicos. As escolas rurais foram incluídas como locais de pesquisa porque as crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos adversos de exposições tóxicas, pois seus cérebros e corpos ainda estão em desenvolvimento.[3]
A Human Rights Watch também entrevistou 42 pessoas com conhecimento sobre questões de agrotóxicos no Brasil, incluindo funcionários de secretarias estaduais e municipais de saúde e meio ambiente, promotores de justiça, procuradores federais, advogados, pesquisadores acadêmicos, ativistas e representantes de organizações não-governamentais (ONGs). No total, a Human Rights Watch entrevistou 115 pessoas para a elaboração deste relatório.
Também obtivemos vídeos ou fotografias de pulverização de agrotóxicos em quatro dos sete locais.
As entrevistas foram realizadas em português, às vezes por meio de um intérprete. A Human Rights Watch informou a todos os entrevistados sobre o objetivo da entrevista, sua natureza voluntária e as maneiras pelas quais as informações seriam coletadas e utilizadas. Os entrevistadores asseguraram aos participantes que poderiam encerrar a entrevista a qualquer momento ou recusar-se a responder a quaisquer perguntas, sem quaisquer consequências negativas. Todos os entrevistados forneceram consentimento informado verbal para participar. A Human Rights Watch não forneceu a ninguém compensação ou outros incentivos para participar da pesquisa.
Para proteger a confidencialidade e segurança dos entrevistados, seus nomes, os nomes das comunidades apresentadas neste relatório e outras informações identificáveis foram omitidos. Em alguns casos, os entrevistados solicitaram que, apesar de atribuir pseudônimos a cada indivíduo, não mencionássemos as ameaças que receberam.
Contexto
Um aumento no uso de agrotóxicos
O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo: as vendas anuais no país giram em torno de US$ 10 bilhões.[4] Em 2014, cerca de 1.550 mil toneladas foram vendidas para compradores brasileiros.[5] Isso corresponde a cerca de 7,5 quilos de agrotóxicos usados por pessoa no Brasil a cada ano.[6]
A agroindústria no Brasil—que inclui agricultura e pecuária—é um dos motores da economia nacional. Nas últimas quatro décadas, as terras usadas para o cultivo de grãos aumentaram em mais de 60 por cento e a produtividade triplicou. Como resultado, o Brasil produziu 238 milhões de toneladas de grãos na safra 2016-2017.[7] As principais culturas—soja, milho e cana-de-açúcar—corresponderam a 61,2 por cento do valor da produção agrícola.[8] Uma das características da indústria é o cultivo em grandes plantações: fazendas com mais de 1.000 hectares representam menos de 1 por cento das fazendas do país, mas cobrem 45 por cento de todas as terras agrícolas.[9]
A introdução de técnicas agrícolas mecanizadas e novas tecnologias, tais como organismos geneticamente modificados—que incluem a soja, o milho e o algodão resistentes ao glifosato—juntamente com o uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos, levaram a ganhos de produtividade.[10] No entanto, a expansão agrícola também levou ao desmatamento, especialmente nas regiões amazônica e do cerrado do Brasil.[11]
A enorme quantidade de agrotóxicos usados no Brasil é impulsionada pela expansão da agricultura monocultora em grande escala. De todos os agrotóxicos vendidos no Brasil, cerca de 80 por cento são usados em plantações de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar.[12]
Muitos dos agrotóxicos usados no Brasil são altamente perigosos.[13] Dos 10 agrotóxicos mais utilizados no Brasil em 2016, 9 são considerados agrotóxicos altamente perigosos pela ONG Pesticide Action Network International.[14] Destes 10 agrotóxicos, 4 não estão autorizados para uso na Europa—o que indica quão perigosos muitos deles são segundo alguns padrões.[15]
A maioria dos agrotóxicos é aplicada no solo, geralmente pulverizados por trator. Uma quantidade menor, mas significativa, é pulverizada por avião. Em 2012, cerca de 70 milhões de hectares de terra foram pulverizados por aviões no Brasil, representando cerca de um quarto de todas as terras pulverizadas com agrotóxicos naquele ano.[16] Embora a deriva de agrotóxicos dependa de fatores como a velocidade do vento, as formulações químicas de agrotóxicos e os parâmetros do pulverizador (como tipo de bico, orientação e pressão hidráulica), a pulverização aérea geralmente resulta em taxas mais altas de deriva de agrotóxicos do que na pulverização terrestre.[17]
Cerca de metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil são fornecidos por empresas estrangeiras. Em 2012, o Brasil importou US$ 5,4 bilhões em agrotóxicos—representando 55,6 por cento do mercado naquele ano. Empresas com sede nos EUA e na China foram as maiores fornecedoras, cada uma respondendo por aproximadamente 22 por cento do volume total importado pelo Brasil, enquanto outras principais fornecedoras estavam na Inglaterra, na Suíça e na Índia.[18]
Zonas de segurança e as competências das autoridades No Brasil, a competência sobre questões relativas a agrotóxicos é compartilhada entre autoridades nacionais, estaduais e municipais. Uma regulamentação editada pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) proíbe a pulverização aérea a menos de 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de água.[19] A proibição da pulverização aérea dentro desta área destina-se a criar uma zona de segurança entre a área de aplicação e estes locais sensíveis, supostamente impedindo que a deriva de agrotóxicos os atinja.[20] Não existe uma regulamentação nacional que estabeleça uma zona de segurança em torno de locais sensíveis para a pulverização terrestre—embora ela seja o método mais comum de aplicação de agrotóxicos e produza uma considerável deriva de agrotóxicos. Os estados também têm competência sobre agrotóxicos e alguns deles estabelecem zonas de segurança para a pulverização terrestre mecanizada (variando de 50 a 600 metros).[21] Os estados, geralmente por meio de secretarias estaduais de agricultura, têm responsabilidade legal sobre a fiscalização do uso de agrotóxicos, incluindo pelo cumprimento das zonas de segurança onde elas existem.[22] Em alguns casos, autoridades municipais de meio ambiente e agricultura também realizam inspeções. Os Ministérios Públicos Federal e Estadual muitas vezes desempenham um papel ativo na investigação e aplicação das leis e regulamentos de agrotóxicos.[23] O uso de agrotóxicos em violação das leis e regulamentos federais, estaduais e municipais constitui crime, punível com prisão de 2 a 4 anos e multa. Qualquer empregador ou prestador de serviços que não tome as medidas necessárias para proteger a saúde e o meio ambiente está sujeito à mesma penalidade.[24] Além da responsabilização criminal, o Ministério Público pode exigir reparação e indenização por danos ao meio ambiente e a interesses difusos e coletivos.[25] |
Na prática, há vários problemas com as zonas de segurança em torno de locais sensíveis no Brasil. Em relação à pulverização terrestre, a ausência de uma regulamentação nacional que estabeleça uma zona de segurança em torno de locais sensíveis levou a abordagens inconsistentes por parte dos estados e à falta de regulamentação na maior parte do país. Dos 27 estados brasileiros, 19 não estabelecem zonas de segurança para pulverização terrestre.[26]
A exposição a agrotóxicos pode ter impactos severos aos direitos humanos, incluindo os direitos à saúde, à alimentação adequada, à água potável e o direito a um meio ambiente saudável.[27] O Brasil tem a obrigação de proteger seus cidadãos contra violações de direitos humanos, incluindo aquelas ligadas à atividade empresarial. Em termos práticos, a obrigação de proteger os direitos humanos no contexto de atividades empresariais requer a adoção de “medidas apropriadas para prevenir, investigar e corrigir tais abusos por meio de políticas públicas, legislação, regulamentação e responsabilização efetivas”.[28]
O Brasil precisa urgentemente adotar medidas para limitar a exposição a agrotóxicos prejudiciais à saúde humana. As autoridades brasileiras devem conduzir um estudo completo e imediato dos impactos à saúde e ao meio ambiente do atual tratamento dispensado a agrotóxicos.[29] Até que se conclua este estudo, o Brasil deve impor uma suspensão à pulverização aérea, além de impor e assegurar uma proibição imediata de pulverização terrestre próxima a locais sensíveis.
Um sistema de monitoramento insuficiente
Devido à grande variedade de agrotóxicos e suas toxicidades, os efeitos na saúde de intoxicação aguda por agrotóxicos variam significativamente.[30] As pessoas geralmente apresentam sudorese, frequência cardíaca elevada e vômitos, além de náusea, dor de cabeça e tontura. Ao mesmo tempo, a exposição crônica—isto é, a exposição repetida a doses baixas durante um período prolongado—é associada à infertilidade, impactos negativos no desenvolvimento fetal, câncer e outros efeitos graves à saúde.[31] Mulheres grávidas, crianças e outras pessoas vulneráveis aos agrotóxicos podem enfrentar riscos elevados.[32]
Ninguém sabe qual é a extensão do problema de intoxicação por agrotóxicos no Brasil.
Profissionais de saúde são obrigados a registrar quaisquer incidentes—inclusive casos suspeitos—em um sistema de notificação compulsória de doenças do Ministério da Saúde.[33] Diretores e diretoras de escolas também devem notificar os casos de intoxicação de estudantes por agrotóxicos, incluindo suspeitos, às autoridades de saúde.[34] Segundo o Ministério da Saúde, houve 4.003 casos de intoxicações por agrotóxicos agrícolas no Brasil, ou quase 11 por dia, em 2017. No mesmo ano, 148 pessoas morreram de intoxicação por agrotóxicos.[35]
No entanto, parece claro que os dados oficiais subestimam a gravidade deste problema.[36] Indivíduos podem não procurar serviços de saúde ou, se o fizerem, podem não ser diagnosticados como casos de intoxicação. O Ministério da Saúde reconhece que a subnotificação é uma preocupação que “resulta em um cenário de invisibilidade do problema [da intoxicação por agrotóxicos] e de baixo acesso à informação por parte de trabalhadores e demais populações expostas”.[37]
Uma indicação provável da extensão da subnotificação é que, de acordo com dados do Ministério da Saúde, 32 por cento dos municípios considerados prioritários para a vigilância em saúde de pessoas expostas a agrotóxicos não registraram um único caso de intoxicação por agrotóxicos entre 2007 e 2015.[38]
Diagnosticar a intoxicação aguda por agrotóxicos é difícil porque ela pode causar uma ampla diversidade de efeitos à saúde. No entanto, o diagnóstico é possível: existe um sistema de definição e classificação de casos de intoxicação aguda por agrotóxicos que permite a identificação e o diagnóstico no campo, em clínicas rurais e unidades básicas de saúde.[39]
Há também efeitos à saúde—geralmente mais graves—associados à exposição a doses baixas de agrotóxicos por longos períodos. O Ministério da Saúde relata que de 2007 a 2015 houve apenas 1.141 casos de exposição crônica a agrotóxicos, mas admite que “é possível que a exposição crônica [a agrotóxicos] esteja subnotificada, reflexo da baixa capacidade dos serviços de saúde de reconhecer e captar casos desse tipo [de exposição].”[40]
O Instituto Nacional de Câncer (INCA), um órgão auxiliar do Ministério da Saúde, posicionou-se publicamente contra as atuais políticas de agrotóxicos no Brasil. Suas preocupações incluem a introdução de organismos geneticamente modificados (visto que sementes geneticamente modificadas exigem uso intensivo de agrotóxicos), o uso disseminado da pulverização aérea e a autorização no Brasil de agrotóxicos proibidos em outros países.[41] O INCA também destaca os riscos para a saúde, incluindo o câncer, resultantes da exposição crônica. O INCA afirma que:
Os efeitos adversos decorrentes da exposição crônica a agrotóxicos podem aparecer muito tempo após a exposição, dificultando a correlação com o agente. Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer.[42]
Resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água
As pessoas cujos testemunhos foram incluídos neste relatório estão na linha de frente da exposição a agrotóxicos. Mas seria um erro pensar que a exposição é limitada a elas: a exposição crônica também pode ocorrer por meio de resíduos de agrotóxicos em alimentos e na água potável.
O Programa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) monitora 25 tipos de alimentos, como frutas, vegetais e cereais, quanto à presença de 232 tipos de agrotóxicos. Das 12.000 amostras coletadas ente 2013 e 2015, cerca de 20 por cento continham resíduos de agrotóxicos que ou excederam os níveis permitidos ou continham agrotóxicos não autorizados para aquela cultura.[43] O PARA reconhece que seu monitoramento atualmente não inclui os dois agrotóxicos mais usados no Brasil, o glifosato e o 2,4-D (ácido 2,4-diclorofenoxiacético), porque eles exigem métodos de análise diferentes daqueles empregados nos laboratórios usados pelo PARA.[44]
O sistema de monitoramento do governo para contaminação na água para consumo humano também é fraco. De acordo com um regulamento do Ministério da Saúde, os fornecedores de água—sejam governos estaduais ou municipais ou empresas privadas—são responsáveis por testar a cada seis meses 27 agrotóxicos e reportar esses resultados ao banco de dados de monitoramento de água para consumo humano do Ministério da Saúde.[45]
Mas a cada ano, uma média de 67 por cento dos municípios em todo o país não envia nenhuma informação ao governo federal. Quando o fazem, a maioria dos municípios não envia dados completos. Dos resultados dos testes apresentados em 2014, apenas 18 por cento foram testes completos para todos os 27 agrotóxicos e realizados duas vezes ao ano, conforme é exigido pela lei.[46]
Mesmo com esse sistema de monitoramento lamentavelmente incompleto, o Ministério da Saúde consegue identificar alguns municípios onde a água potável possui resíduos de agrotóxicos acima dos limites legais. Do pequeno número de municípios que submeteram os resultados dos testes durante esse período de quatro anos, 15 por cento relataram pelo menos uma substância acima do limite legal.[47]
O monitoramento limitado dos resíduos de agrotóxicos na água e nos alimentos deve-se em parte à escassez de instalações laboratoriais. Em 2016, a Anvisa avaliou que apenas sete laboratórios públicos tinham capacidade para analisar resíduos de agrotóxicos em alimentos no Brasil, e apenas seis laboratórios públicos estavam adequadamente equipados para testar resíduos de agrotóxicos na água. Apenas um relatou ter capacidade de analisar glifosato, o agrotóxico mais usado no Brasil, na água. [48]
Uma população com medo
Pessoas expostas a agrotóxicos frequentemente estão em comunidades pobres, enquanto os vizinhos são proprietários de grandes fazendas, ricos e politicamente poderosos. As pessoas que se queixam sobre a exposição a agrotóxicos podem sofrer ameaças e temer retaliações. Embora esse medo seja difícil de quantificar, ele é bastante real para muitos indivíduos e comunidades.
Diversos estados e municípios adotaram leis que proíbem a pulverização aérea e/ou estabelecem zonas de segurança em torno de áreas habitadas e outros locais sensíveis.[49] A mobilização da comunidade necessária para que tais iniciativas sejam bem-sucedidas muitas vezes é acompanhada de ameaças e intimidação.
Em abril de 2010, um agricultor rural e ativista contra o uso de agrotóxicos, José Maria Filho, foi baleado 25 vezes com uma pistola quando voltava para casa durante uma noite em Limoeiro do Norte, no estado do Ceará. Ele foi um ator fundamental na mobilização para que o governo municipal proibisse a pulverização aérea naquele ano, frente à oposição dos grandes proprietários de terra. Um mês depois de sua morte, a proibição foi revertida. O Ministério Público acredita que José Maria foi morto em consequência de suas denúncias contra a pulverização aérea e a contaminação da água por agrotóxicos na região.[50] O Ministério Público denunciou quatro suspeitos em 2010, embora, até a elaboração deste relatório, ninguém tenha sido julgado.[51]
Conforme observado na seção “Síntese” deste relatório, em maio de 2013, um avião pulverizou agrotóxicos sobre a escola São José do Pontal, no assentamento rural Pontal dos Buritis, em Rio Verde, Goiás, intoxicando cerca de 90 crianças e adultos. A distância entre a escola e a plantação de milho é de cerca de 20 metros. Alunos permaneceram no hospital por alguns dias com sintomas que variavam de tontura, diarreia, dores de cabeça severas a problemas de pele, fígado, rins e respiração.[52]
O professor da escola à época da pulverização, engajado na demanda por assistência médica aos afetados e por um controle mais rigoroso de agrotóxicos no município, disse à Human Rights Watch que ele recebeu inúmeras ameaças. Entre elas, telefonemas dizendo-lhe para "tomar cuidado com o que você fala" e "você pode se esconder, eu vou te matar".[53]
Em 2017, ativistas locais e organizações da sociedade civil começaram a se mobilizar a favor da proibição da pulverização aérea no município de Boa Esperança, no estado do Espírito Santo. Um padre que ajudou a organizar um abaixo-assinado contra a pulverização aérea disse à Human Rights Watch que recebeu mensagens perturbadoras: “inicialmente, recebi mensagens me avisando para eu me cuidar. Então, agrônomos começaram a me enviar vídeos pornográficos… Depois, recebi ligações com ameaças ‘você não passa de dezembro’”.[54] Ele denunciou as ameaças à polícia civil, mas, até onde sabia, a polícia não havia tomado qualquer medida para investigá-las.[55]
Pressão política
Por mais frágil que seja o sistema regulatório do Brasil, há pressão política para enfraquecê-lo ainda mais. De acordo com a lei dos agrotóxicos, a Anvisa, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) são responsáveis por autorizar o uso de novos agrotóxicos. A Anvisa e o Ibama realizam avaliações de risco, determinando potenciais danos humanos e ao meio ambiente, respectivamente; enquanto o Mapa analisa o desempenho agronômico e registra os produtos.[56] São necessários três pareceres favoráveis para que um produto seja registrado.[57]
Desde que a lei de agrotóxicos foi adotada em 1989, dezenas de projetos de lei foram apresentados no Congresso pela bancada ruralista—um grupo de legisladores que representam interesses rurais—e apoiados por grupos de pressão da indústria de agrotóxicos, para enfraquecer ainda mais o marco regulatório.[58]
O projeto de lei mais recente, apresentado em 2002 e aprovado por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados em junho de 2018, reduziria substancialmente o papel da Anvisa e do Ibama no processo de autorização de novos agrotóxicos, limitando o envolvimento de agências especializadas nos impactos dos agrotóxicos à saúde e ao meio ambiente.[59] O projeto de lei também propõe a substituição do termo legal “agrotóxicos” por “produtos fitossanitários”, mascarando os riscos dos agrotóxicos à saúde e ao meio ambiente.[60]
O projeto de lei também enfraqueceria os critérios para autorização de agrotóxicos. Sob a lei de agrotóxicos, os agrotóxicos que são carcinogênicos, que prejudicam o desenvolvimento do embrião ou feto, que causam mutações genéticas, ou que prejudicam os sistemas endócrino ou reprodutivo, não podem ser registrados.[61] No entanto, o projeto de lei permitiria uma margem de manobra maior na aprovação de agrotóxicos, proibindo apenas o uso de agrotóxicos cujo risco seja considerado “inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente” mesmo após a implementação de medidas de gestão de risco.[62]
Diversas instituições governamentais, como o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o Ministério Público Federal e a Fundação Oswaldo Cruz posicionaram-se contra essas mudanças. [63] Em junho de 2018, cinco relatores especiais da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direitos humanos escreveram ao governo brasileiro expressando preocupação com o projeto de lei. [64]
Conclusões
Uma das principais conclusões desta pesquisa é que, em todos os sete locais visitados, as pessoas descreveram sintomas consistentes com a intoxicação aguda por agrotóxicos após verem agrotóxicos serem utilizados nas proximidades, ou sentirem o cheiro de agrotóxicos aplicados recentemente em plantações próximas. Os sintomas incluem vômito, náusea, dor de cabeça e tontura. Elas frequentemente descreveram terem tido esses sintomas em várias ocasiões, não apenas uma única vez, coincidindo com os períodos de pulverização nas plantações próximas.
Outra constatação importante desta pesquisa é que, mesmo onde as zonas de segurança contra pulverização aérea e/ou terrestre são estabelecidas por lei, na prática, elas geralmente não são respeitadas. Em relação à pulverização aérea, a Human Rights Watch documentou quatro casos nos sete locais visitados, onde a zona de segurança de 500 metros de distância para pulverização aérea não foi respeitada.[65] Em relação à pulverização terrestre, a Human Rights Watch visitou três dos oito estados que possuem zonas de segurança para pulverização terrestre mecanizada—Goiás, Mato Grosso e Paraná—e documentou quatro casos em que a pulverização terrestre ocorreu a cinco metros de escolas.[66]
Além disso, o medo de represálias por parte de grandes proprietários de terras assola muitos membros de comunidades rurais expostas a agrotóxicos. Ameaças ou medo de retaliação foram mencionados em cinco dos sete locais visitados.[67] Na condução da pesquisa objeto deste relatório, sete pessoas descreveram ameaças ou medo de retaliação após se mobilizarem contra os impactos dos agrotóxicos à saúde.[68]
Localidade A (Mato Grosso)
A localidade A é uma escola rural no município de Primavera do Leste, no estado do Mato Grosso, na região centro-oeste brasileira. A escola atende pouco mais de 100 alunos, com aulas para estudantes entre 15 e 16 anos durante o dia e para adultos à noite. Há plantações bem ao lado do terreno da escola, com as salas de aula mais próximas a aproximadamente 15 metros dos campos. A Human Rights Watch entrevistou cinco pessoas, entre alunos e professores da escola.
Diferentemente de outras localidades no Brasil, tanto o estado do Mato Grosso quanto o município de Primavera do Leste estabelecem uma zona de segurança para pulverização terrestre.[69] Atualmente, a zona de segurança determinada pelo município é de 250 metros de zonas urbanas, mas há um projeto de lei em discussão que busca reduzi-la a 90 metros—a mesma distância estabelecida pela legislação estadual.[70]
A escola da localidade A tem sido, de certo modo fiscalizada pelas autoridades: a Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Agricultura e Meio Ambiente repetidamente notificou o produtor para que ele cumprisse a legislação e o multou pelo descumprimento em R$ 100.000,00 em 2014; o Tribunal de Justiça do Mato Grosso concedeu uma liminar estabelecendo uma zona de segurança de 250 metros ao redor da escola e da comunidade rural em 2015.[71] No entanto, de acordo com entrevistas com professores na localidade A, a pulverização durante a safra de algodão em meados de 2017 ocorreu com frequência perto da escola, e funcionários da escola posteriormente notificaram a Secretária de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Agricultura e Meio Ambiente. Os professores da localidade A contaram à Human Rights Watch que não houve resposta ou visita em reação à denúncia mais recente.[72]
Carina frequenta a escola à noite. Ela descreveu um incidente de intoxicação aguda ocorrido em 2017:
Naquela noite, havia um cheiro forte quando cheguei. Eu podia sentir na minha boca. Eu comecei a me sentir mal, enjoada. Eu tentei beber água para melhorar, mas não ajudou. Eu comecei a vomitar várias vezes, até que vomitei tudo que tinha no estômago e continuei com ânsia. As aulas foram canceladas para todo mundo e eu fui para casa. Eu me senti mal no dia seguinte com náusea e dor de cabeça. Eu tomei algo para minha dor de cabeça, mas isso não ajudou. Na manhã seguinte, tomei leite e comecei a me sentir melhor, mas até o uniforme da minha escola tinha cheiro de agrotóxico. [73]
Localidade B (Mato Grosso do Sul)
A localidade B fica a poucas horas de carro de Campo Grande, capital do estado do Mato Grosso do Sul, na região centro-oeste do Brasil. É uma comunidade de algumas centenas de indígenas Guarani-Kaiowá que vivem em cabanas e casas em uma pequena floresta ao redor de um córrego.[74] Uma plantação começa a aproximadamente 50 metros da entrada principal da comunidade e de várias casas localizadas nas margens da floresta. A plantação vizinha alterna entre o cultivo de soja e de milho.
A Human Rights Watch falou com nove pessoas que vivem na localidade B, entre homens, mulheres e crianças Guarani-Kaiowá. Eles descreveram diversos incidentes de intoxicação aguda por agrotóxicos nos últimos anos, por pulverização tanto aérea quanto terrestre. [75] Em alguns casos, os moradores tratam os sintomas de intoxicação por agrotóxicos com uma solução natural feita com suco de limão, enquanto, em casos mais graves, eles relataram ter ido ao hospital local (a cerca de 45 minutos de carro).
Jakaira é um homem de 40 anos que vive na localidade B há 10 anos. Ele é casado e pai de três filhos adultos. Ele descreveu uma intoxicação aguda ocorrida por volta de outubro de 2017:
Foi de manhã cedo, por volta das 8 da manhã; o trator estava pulverizando e senti o cheiro [do agrotóxico]. Dava pra ver o líquido branco [no ar]. Mesmo cheirando, vai para o seu cérebro. Você sente uma amargura na garganta. Você não quer mais respirar veneno—você quer respirar outro tipo de ar—mas não tem nenhum. Então você se sente fraco - você não consegue se levantar, porque o veneno é muito forte—e fica com febre e dor de cabeça…. Você coloca a mão na sua cabeça e sente ela latejando. Eu tive essa dor de cabeça muitas vezes, não aguento mais. Naquele dia, eu tive diarreia e vômito. Todo mundo que vive na beira da nossa comunidade passou mal. Enquanto eu esperava a ambulância, eu fiquei deitado na cama, me sentindo fraco. No hospital expliquei o que eu tinha e a causa. Eles me deram soro e um remédio e eu recebi alta no dia seguinte. Quando eu recebi alta do hospital, o médico me disse para me proteger, mas não tem jeito. [76]
Localidade C (Paraná)
A localidade C é uma escola rural no município de Cascavel, no estado do Paraná, na região sul do Brasil. A escola atende aproximadamente 200 crianças, com idades entre 4 e 18 anos. A Human Rights Watch entrevistou 16 funcionários e estudantes na localidade C.
Teresa é uma menina de 10 anos que frequenta a escola da localidade C. Ela descreveu um incidente de pulverização na escola quando ela tinha cinco anos.
O trator amarelo começou a pulverizar de repente: ouvimos o barulho da máquina, dava para ver pelas janelas da sala de aula. Eu tive uma forte dor de cabeça, dor de barriga e a sensação de que ia vomitar. [A professora] disse: "Vamos sair da sala porque o cheiro está muito ruim". Fomos para casa mais cedo. Cheguei em casa com enjoo, me sentindo mal, com uma forte dor de cabeça. Eu vomitei em casa duas vezes: a primeira vez quando eu estava comendo com minha família. Deixei meu prato e corri para o banheiro. Eu não comi mais. Deitei na cama, dormi e depois de um tempo vomitei de novo.[77]
Em 2015, o município de Cascavel estabeleceu uma zona de segurança em torno de escolas, unidades de saúde e comunidades rurais. A lei municipal proibiu qualquer tipo de pulverização dentro de 300 metros, ou 50 metros, caso haja uma barreira de árvores.[78] Antes desta lei, as salas de aula na localidade C ficavam a cerca de 50 metros da plantação; no momento da entrevista, as salas de aula mais próximas ficavam a aproximadamente 100 metros das plantações com árvores plantadas no meio. Entrevistados na localidade C disseram que desde a adoção da lei, a situação melhorou.[79]
No entanto, a Human Rights Watch visitou outras escolas no município de Cascavel, incluindo duas escolas onde professores e alunos disseram à Human Rights Watch que problemas de saúde causados pela pulverização de agrotóxicos permaneciam. Nas duas escolas, funcionários contaram à Human Rights Watch que pulverizações aconteciam perto das escolas dentro da zona de segurança estabelecida pela lei municipal.[80]
Localidade D (Minas Gerais)
A localidade D é uma comunidade quilombola de cerca de 60 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Ela fica a poucas horas de carro de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, na região sudeste do Brasil. As casas são simples, ao lado de algumas mangueiras e bananeiras, e os moradores cultivam feijão, abóbora, milho e quiabo em pequenas hortas. Algumas das casas na localidade D ficam a aproximadamente 20 metros da plantação de cana-de-açúcar vizinha.
A Human Rights Watch entrevistou 21 pessoas na localidade D, entre homens, mulheres e crianças. Moradores disseram que os aviões geralmente realizam a pulverização sobre suas casas e que a pulverização interrompe atividades diárias—como trabalho na horta, varrer terreiro ou mesmo brincadeiras ao ar livre.[81]
Bernardo tem cerca de 30 anos e nasceu na localidade D. Ele é casado e tem um filho pequeno. Bernardo descreveu sentir-se particularmente impotente contra a pulverização aérea e expressou sua frustração após anos de pulverização, denúncias formais e negligência das autoridades:
[A pulverização causa] dor de cabeça, enjoo, falta de ar e irritação na vista, na pele e no nariz. A pulverização aérea é pior do que a terrestre: é possível evitar tratores, dá para perceber de mais longe pela zoeira. Avião não tem como tentar parar, passa por cima. Se aparece um avião, entro em casa. Esta semana, um avião passou por cima da casa [de um vizinho] com o motor [de pulverização] ligado. A gente sente [os agrotóxicos] caindo na pele. Toda vez que bate, tem isso. Nós temos problemas com aviões há uns 10 anos. Fizemos várias ocorrências no quartel, delegacia [de polícia civil]. Não resolve—não existe justiça.[82]
Localidade E (Goiás)
A localidade E é uma escola rural a poucas horas de carro de Goiânia, capital do estado de Goiás, na região centro-oeste do Brasil. A escola tem cerca de 200 alunos desde o pré-escolar (com cerca de 3 anos de idade) até alunos de ensino médio (entre 15 e 16 anos). Também tem alguns alunos adultos. As aulas são ministradas durante o dia e à noite. Há plantações próximas às salas de aula da escola: na parte mais próxima, os campos estão localizados a 5 metros da sala de aula.
A Human Rights Watch entrevistou sete pessoas na escola da localidade E, incluindo quatro estudantes com idades entre 13 e 16 anos. Eles descreveram frequentes aplicações de agrotóxicos nas áreas próximas à escola, causando crises de náusea, tontura, vômitos e dores de cabeça entre os estudantes.[83]
Danilo, um menino de 13 anos e estudante da escola na localidade E, contou à Human Rights Watch:
Da sala de aula, é possível vê-los [pulverizando] e ouvir o barulho da pulverização tanto terrestre quanto aérea. Dá para ver o trator pulverizando e a água branca saindo. Eles pulverizam muito perto, mas mesmo se eles pulverizarem um pouco mais longe, o vento sopra [os agrotóxicos para cá]. [A pulverização de agrotóxicos] incomoda e causa náuseas; me dá dor de cabeça. Eu tento me sentar do outro lado da sala de aula [do outro lado de onde eles pulverizam]. Nós temos um ventilador [na sala de aula], ele ajuda um pouco, mas o cheiro continua. Eu senti náusea, tontura. É ruim porque você quer vomitar, mas fica preso na garganta. Às vezes minha mãe vem [me buscar na escola] e nós vamos ao hospital.[84]
Localidade F (Pará)
A localidade F é uma comunidade rural a poucas horas de carro de Santarém, no estado do Pará, na região norte do Brasil. A localidade F abriga aproximadamente 600 pessoas que vivem em uma pequena comunidade de casas ao lado de uma rodovia, com grandes plantações no lado oposto da comunidade. A plantação se estende até as casas das pessoas, seus pequenos jardins e um pequeno campo (de futebol). A plantação termina a apenas 5 metros do poço que a comunidade usa para obter água potável.
A Human Rights Watch entrevistou oito moradores da localidade F que disseram que os agrotóxicos afetavam sua saúde e, no caso dos pequenos agricultores, a viabilidade de suas plantações.[85] Um membro da comunidade que organizou um abaixo-assinado dirigido às autoridades estaduais de meio ambiente para reduzir a pulverização de agrotóxicos na região disse que o fazendeiro proprietário da plantação vizinha o ameaçou fazendo o gesto de uma arma quando se cruzaram encontraram em público. Ele denunciou as ameaças à polícia civil, mas, até onde ele sabia, a polícia não tomou nenhuma medida para investigá-las.[86] Um outro morador local disse, “Estamos preocupados com a pulverização de agrotóxicos, mas também nos preocupamos com as ameaças, por isso não queremos falar muito sobre isso. É isso o que enfrentamos aqui.[87]
Eduarda tem 20 anos e vive em uma casa localizada a aproximadamente 100 metros de uma plantação de soja na localidade F. Quando entrevistada pela Human Rights Watch, Eduarda estava grávida de seu primeiro filho, prestes a nascer dentro de algumas semanas.
No mês passado eu estava em casa, fazendo trabalho de casa. Senti um cheiro terrível, muito forte, como algo podre e químico. Eu me senti mal, com enjoo e dor de cabeça. Eu vomitei muito, depois que comecei eu não conseguia parar. Eu tive que ligar para o meu marido pedindo ajuda. Estou grávida e minha principal preocupação era com meu filho, eu estava preocupada que isso pudesse afetar sua saúde. É minha primeira gravidez, eu não tinha vomitado antes ou depois desse incidente, [eu fiquei doente] por causa dos agrotóxicos. No caminho para o hospital paramos cerca de 3 vezes para [eu] vomitar. No hospital, eles me deram soro salina e algo para dor de cabeça e náusea. Eu disse que era por causa de agrotóxicos, mas eles ignoraram isso. Eles trataram como uma virose; não foi registrado como uma intoxicação.[88]
Localidade G (Bahia)
A localidade G é uma comunidade rural no sul da Bahia, na região nordeste do Brasil. A área é dominada por plantações de eucaliptos. Aproximadamente 100 famílias vivem na localidade G em uma comunidade que tem uma pequena escola e uma unidade de saúde. Casas e pequenas hortas pertencentes aos moradores são intercaladas com plantações de eucalipto; em alguns casos, as casas estão a 20 metros das plantações.
A Human Rights Watch entrevistou cinco moradores. Os membros da comunidade disseram que a pulverização terrestre é mais comum, mas que a pulverização aérea também ocorre. Os moradores da localidade contaram à Human Rights Watch que sentiram sintomas como náusea, dor de cabeça, diarreia, olhos ardentes e lacrimejantes, e lábios dormentes após aplicações de agrotóxicos.[89]
Marelaine, de 20 anos, é professora da escola e pequena agricultora, descreveu um incidente em 2015, quando ela estava indo à escola:
Eu ainda estava perto da minha casa quando o avião veio jogando por cima do eucalipto e o vento trouxe os agrotóxicos para mim. Eu fiquei molhada com o produto e tive que voltar para casa e tomar outro banho. Fui para a escola e comecei a sentir uma dor de cabeça, nariz ardendo, coceira, formigando. O avião estava jogando do lado da escola e o vento trazia para a escola. Não dava para sentir o cheiro, mas dava para sentir a nebline, o vapor [de agrotóxicos] entrando pela janela. As crianças, entre 4 e 7 anos reclamavam que suas gengivas e olhos estavam ardendo. Eu os liberei por volta das 9 da manhã e mandei um bilhete para os pais dizendo que não teríamos aulas enquanto eles estivessem pulverizando ainda.[90]
Agradecimentos
Este relatório foi escrito por Richard Pearshouse, diretor adjunto do Programa de Meio Ambiente e Direitos Humanos, e João Bieber, consultor do Programa de Meio Ambiente e Direitos Humanos. Foi revisado e editado por Marcos Orellana, diretor de Meio Ambiente e Direitos Humanos; Amanda Klasing, pesquisadora sênior da Divisão de Direitos das Mulheres; Diederik Lohman, diretor da Divisão de Saúde e Direitos Humanos; Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil; César Muñoz, pesquisador sênior para o Brasil; Juliane Kippenberg, diretora adjunta da Divisão de Direitos das Crianças; Christopher Albin-Lackey, conselheiro jurídico sênior; e Babatunde Olugboji, diretor adjunto para programas.
A assistência à produção foi fornecida por Matthew Parsons, coordenador do Programa de Meio Ambiente e Direitos Humanos; Grace Choi, diretora de publicações; Rebeca Rom-Frank, coordenadora de foto e publicações; Fitzroy Hepkins, gerente administrativo; e José Martinez, coordenador administrativo sênior. Hugo Arruda traduziu este relatório para o português.
A Human Rights Watch é profundamente grata às muitas pessoas que compartilharam seus conhecimentos e experiências conosco. Sem os seus testemunhos, este relatório não seria possível.