Vossas Excelências,
Escrevemos para compartilhar nossas preocupações em relação à crise ambiental e de direitos humanos na Amazônia brasileira. Apelamos para que o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul não seja considerado para ratificação até que o Brasil demonstre estar preparado para cumprir seu compromisso com a preservação da floresta e seu dever de proteger as pessoas que ali vivem. Nós acreditamos que a União Europeia (UE) deve estabelecer parâmetros concretos para avaliar se, e quando, o Brasil estará pronto para cumprir essas obrigações.
O acordo comercial, cuja negociação foi concluída em 2019, dispõe que seus signatários devem respeitar o Acordo de Paris sobre o clima e combater o desmatamento. No caso do Brasil, esses compromissos são os mesmos: sob o Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a eliminar o desmatamento ilegal até 2030. No entanto, as políticas atuais do presidente Jair Bolsonaro estão em conflito direto com esses compromissos e têm agravado a crise na Amazônia, resultando em mais desmatamento ilegal, não menos.
O Brasil já foi líder global em conservação florestal. Entre 2004 e 2012, um esforço conjunto do governo e da sociedade brasileira—incluindo comunidades indígenas, grupos ambientalistas e empresas privadas—produziu uma redução de 80 por cento no desmatamento na Amazônia. Porém, depois de 2012, cortes no orçamento e retrocessos nas políticas públicas enfraqueceram os órgãos de fiscalização ambiental do Brasil e o desmatamento voltou a crescer.
A retomada do desmatamento foi impulsionada em grande parte por violentas redes criminosas, contra as quais o governo Bolsonaro tem, vergonhosamente, fracassado em proteger os brasileiros, como é seu dever. O Relatório de 2019 da Human Rights Watch, “Máfias do Ipê: Violência e Desmatamento na Amazônia”, documentou como essas máfias ameaçam, atacam e matam agentes ambientais, membros de comunidades indígenas e outros moradores locais que procuram defender a floresta. Os assassinos raramente são levados à justiça. Até que o Brasil avance no combate à violência e à impunidade que afetam os defensores da floresta, é provável que a destruição da Amazônia continue sem freios.
Desde que assumiu o cargo em janeiro de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro tem, na prática, escolhido o lado dessas máfias, conforme documentado pela Human Rights Watch. Ele adotou políticas que sabotam os já enfraquecidos órgãos de proteção do meio ambiente e dos direitos indígenas e tem buscado marginalizar os grupos ambientalistas do país. Não supreende que o desmatamento tenha aumentado mais de 80 por cento no ano passado — de acordo com dados preliminares do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e continue aumentando neste ano. Igualmente, não surpreende que as ameaças contra os defensores da floresta também tenham aumentado.
A União Europeia tem amplos motivos para apoiar tantos os brasileiros que se empenham em defender as leis que protegem a floresta tropical do país. Cientistas afirmam que a aceleração do desmatamento está levando a Amazônia mais rapidamente a um "ponto de inflexão" irreversível, quando deixará de servir como uma área natural de armazenamento de dióxido de carbono—uma das principais substâncias impulsionadoras da mudança climática—e, em vez disso, passará a liberar grandes quantidades de gases de efeito estufa. O resultado agravará a crise climática que ameaça tanto os europeus quanto os brasileiros. Além disso, o Acordo Verde Europeu estabelece que a UE deve garantir que sua política comercial reduza o desmatamento em suas cadeias de produção e contribua para os esforços globais de contenção das mudanças climáticas.
Há um debate considerável sobre, em que medida, o acordo UE-Mercosul pode contribuir para o alcance dos objetivos do Acordo Verde Europeu, especialmente, porque suas disposições ambientais não estabelecem sanções em casos de não cumprimento. Entretanto, o que está claro é que Bolsonaro está desmantelando a capacidade do Brasil de cumprir esses compromissos — e acelerando a velocidade do "ponto de inflexão", quando seu cumprimento pode tornar-seimpossível. Se a UE pretende defender seus próprios compromissos ambientais e apoiar os brasileiros que estão lutando para salvar a floresta, agora é a hora de agir, antes que Bolsonaro possa causar mais estragos.
A UE, o Parlamento Europeu e os Estados membros da UE devem enviar uma mensagem clara e categórica ao presidente Bolsonaro: a ratificação do acordo comercial não será considerada até o governo brasileiro demonstrar que está preparado para cumprir seus compromissos ambientais. Para essa avaliação, a UE deve estabelecer parâmetros claros e verificáveis, com base em ações e resultados concretos, e não em planos ou propostas. Esses parâmetros devem levar em conta os problemas interrelacionados no centro da crise da Amazônia: a violência e o desmatamento.
Especificamente, a ratificação do acordo comercial UE-Mercosul não deve ser considerada até que o Brasil demonstre:
- Progresso substancial no combate à impunidade em casos de violência relacionada ao desmatamento ilegal, medida pelo número de casos investigados, processados e levados a julgamento[1]; e
- Progresso na redução efetiva das taxas de desmatamento na Amazônia, suficiente para colocar o país no caminho certo para cumprir sua meta de eliminar todo desmatamento ilegal até 2030[2], nos termos do Acordo de Paris.
Além disso, a União Europeia deve monitorar de perto as políticas e iniciativas legislativas promovidas pelo governo brasileiro, que possam incentivar invasões de territórios indígenas ou comprometer a proteção da floresta amazônica e os direitosde seus habitantes.
A ratificação do acordo UE-Mercosul, sem que o governo brasileiro demonstre avanço real no enfrentamento à crise na Amazônia, prejudicará a credibilidade do compromisso da União Europeia em desenvolver relações comerciais que respeitem o meio ambiente e protejam o clima como previsto no Acordo Verde Europeu.
Com nossos mais elevados votos de estima e consideração,
Lotte Leicht
Diretora de Advocacy da HRW junto à UE
Maria Laura Canineu
Diretora da HRW no Brasil
Daniel Wilkinson
Diretor de Meio Ambiente e Direitos Humanos
[1] Dada a falta de informações oficiais sobre a violência contra os defensores da floresta na Amazônia brasileira, uma base de referência para avaliar o progresso no combate à impunidade deve ser os números fornecidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma organização não governamental afiliada à Igreja Católica. A CPT registrou mais de 200 assassinatos entre 2015 e 2019 no contexto de conflitos pelo uso da terra e de recursos naturais na Amazônia—muitos por pessoas envolvidas em desmatamento ilegal—dos quais apenas 8 foram a julgamento.
[2] Qualquer esforço para atingir essa meta por meio de relaxamento da definição atual de desmatamento ilegal deve ser considerado uma violação quebra desse compromisso.