Mães de crianças e de pessoas com deficiência e mulheres grávidas, acusadas de crimes não violentos, permanecem atrás das grades, apesar da proibição expressa na lei, disse hoje a Human Rights Watch.
A análise dos dados disponibilizados por meio de um pedido de acesso à informação revela que os tribunais têm sido lentos na implementação das novas proteções legais voltadas às mães e gestantes, em alguns casos ignorando-as completamente.
Em 2018, uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal e uma nova lei impuseram novos limites ao poder dos juízes de decretar prisão preventiva de mães e mulheres grávidas. A lei agora exige prisão domiciliar em vez de prisão preventiva para gestantes, mães de pessoas com deficiência e mães de crianças de até 12 anos, exceto quando acusadas de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça, ou de crimes contra seus dependentes.
No entanto, dados de 2018 mostram que milhares de mulheres que aparentemente teriam direito a essas proteções permaneceram atrás das grades sob prisão preventiva. Dados mais recentes, somente sobre o Rio de Janeiro, indicam que o problema persistiu em 2019.
“A lei brasileira não poderia ser mais clara: mães de crianças pequenas ou de pessoas com deficiência e mulheres grávidas não devem permanecer atrás das grades enquanto aguardam julgamento por crimes não violentos”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. "No entanto, há sinais preocupantes de que alguns juízes estão ignorando essas proteções, fazendo com que mães que não foram condenadas por um crime passem o Dia das Mães em celas insalubres e superlotadas, quando deveriam estar em casa com suas famílias".
Os últimos dados disponíveis do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN) – obtidos pela Human Rights Watch por meio de um pedido de acesso à informação – mostram que, em setembro de 2018, juízes haviam determinado a soltura de menos de um terço das mulheres que deveriam responder em liberdade, exceto em casos “excepcionalíssimos”. Com isso, mais de 6.000 permanecem atrás das grades aguardando julgamento.
Embora dados nacionais sobre o período após setembro de 2018 não estejam disponíveis, a Human Rights Watch teve acesso a dados mais recentes que foram coletados pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro para verificar se lá houve alguma mudança. Entre 13 de agosto e 18 de dezembro de 2018, a Defensoria Pública do Rio identificou 53 mulheres que deveriam ser submetidas à prisão domiciliar em vez de prisão preventiva, estando ausentes circunstâncias “excepcionalíssimas”. Juízes mantiveram 43 (81 por cento) delas em prisão preventiva, concedendo prisão domiciliar a apenas 10 (19 por cento).
Em 19 de dezembro, o Brasil adotou uma lei restringindo ainda mais os casos em que os juízes podem legalmente submeter mulheres grávidas e mães à prisão preventiva. De 19 de dezembro de 2018 até o final de fevereiro de 2019, defensores públicos no Rio identificaram 39 mulheres que deveriam, sem exceção, ter sido submetidas à prisão domiciliar em vez de prisão preventiva sob a nova lei. No entanto, juízes determinaram a prisão preventiva para 31 (79 por cento) e prisão domiciliar para apenas 8 (21 por cento).
Em janeiro, por exemplo, um juiz do Rio de Janeiro decretou a prisão preventiva de uma mãe que foi acusada de tráfico de drogas, argumentando que ela colocava em risco e prejudicava o desenvolvimento dos filhos devido a sua atividade criminosa – embora essa atividade criminosa não tivesse sido provada no processo. O juiz concluiu que ela era um "mau exemplo" para as crianças.
O direito internacional determina que quando o risco de fuga, de interferência nas provas ou de segurança exige que as autoridades estabeleçam condições para a liberdade provisória, medidas não privativas de liberdade devem ser utilizadas quando possível, substituindo a prisão preventiva, que deve ser o "último recurso". Nos termos do artigo 9(3) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a prisão preventiva “não deverá constituir a regra geral”.
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais exige “as mais amplas proteção e assistência possíveis” à família. A Convenção sobre os Direitos da Criança observa que as crianças precisam de cuidados e salvaguardas especiais, e exige que autoridades avaliem e considerem o melhor interesse da criança em todos os assuntos que as concernem.
As Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, conhecidas como Regras de Bangkok (2010), que foram citadas pelo STF em sua decisão de fevereiro de 2018, enfatizam que “ao sentenciar ou aplicar medidas cautelares a uma mulher gestante ou a pessoa que seja fonte principal ou única de cuidado de uma criança, medidas não privativas de liberdade devem ser preferidas sempre que possível e apropriado, e que se considere impor penas privativas de liberdade apenas a casos de crimes graves ou violentos”.
Desde o começo de 2018, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso à época adotaram medidas robustas e efetivas para proteger os direitos de gestantes e mães que aguardam julgamento, e para proteger os direitos de seus dependentes. Os juízes devem aplicá-las, disse a Human Rights Watch.
"Os requisitos são claros. Se estiverem presentes, as prisões mantidas nessas condições são ilegais", disse o juiz Luís Lanfredi, Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça, à Human Rights Watch. “Reformas na legislação exigem uma mudança na mentalidade e na tomada de decisão pelos juízes. O Conselho Nacional de Justiça está comprometido em ajudá-los a adotarem esses critérios em suas decisões”.
Para uma discussão mais aprofundada sobre os dados e decisões judiciais, por favor, veja abaixo.
Novas Medidas Robustas para Proteger Gestantes e Mães
Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal determinou que mulheres grávidas, mães de crianças ou adultos com deficiência, e mães de crianças de até 12 anos devem aguardar julgamento em prisão domiciliar, e não nos presídios, quando acusadas de crimes não violentos e quando não cometeram crimes contra seus filhos, a menos que os juízes considerem que o caso apresenta circunstâncias “excepcionalíssimas”. A decisão não impediu que, nessas mesmas circunstâncias, juízes determinem a liberdade provisória.
A decisão introduziu proteções que foram muito além daquelas estabelecidas em 2016 por meio de uma lei que havia concedido aos juízes ampla autoridade para determinar prisão domiciliar, em vez de prisão preventiva, a gestantes e mulheres e homens com filhos de até 12 anos ou que fornecem cuidado “imprescindível” a crianças e adultos com deficiência.
Em sua decisão de fevereiro de 2018, a Suprema Corte identificou no sistema prisional o “descumprimento sistemático” dos direitos das mulheres e de seus filhos devido a “degradantes” condições prisionais que violam a Constituição. O tribunal observou que dois terços das mulheres grávidas na prisão têm cuidados pré-natais inadequados, e que as crianças nascidas em prisões por vezes são mantidas em celas e depois abruptamente separadas das mães. O tribunal também destacou os impactos perniciosos do encarceramento da mulher no bem-estar físico e psíquico das crianças.
Em outubro de 2018, o ministro Ricardo Lewandowski, que foi o relator na decisão de fevereiro de 2018, já havia determinado em outro caso que “a concepção de que a mãe que trafica põe sua prole em risco e, por este motivo, não é digna da prisão domiciliar, não encontra amparo legal”. E, em janeiro de 2019, Lewandowski também afirmou que a reincidência “em princípio [...] não afasta a regra de substituição da prisão preventiva pela domiciliar”.
Em dezembro de 2018, o Brasil reforçou essas proteções reconhecidas judicialmente ao adotar a Lei 13.769/2018. Esta lei tornou obrigatória aos juízes a concessão de prisão domiciliar em vez de prisão preventiva da mulher gestante ou que for mãe ou “responsável” por crianças de até 12 anos ou pessoas com deficiência de qualquer idade, exceto as acusadas de crimes violentos ou de crimes contra seus dependentes. A decisão anterior do Supremo Tribunal Federal havia permitido que os juízes negassem a prisão domiciliar somente em “situações excepcionalíssimas", as quais deveriam ser devidamente justificadas pelos juízes. A lei, no entanto, tornou obrigatória a prisão domiciliar ao invés de prisão preventiva em todas as circunstâncias, sem ressalvar casos “excepcionais”.
Condições prisionais
O Departamento Penitenciário Nacional disse à Human Rights Watch que seus dados mais recentes sobre o número total de mulheres encarceradas são de junho de 2016. Naquele ano, mais de 42 mil mulheres eram mantidas em instalações construídas para abrigar 27 mil pessoas. Quarenta e cinco por cento das mulheres detidas – 19 mil – aguardavam julgamento.
Enquanto a lei brasileira exige que prisões tenham seções especiais para gestantes e mulheres com bebês de até seis meses de idade, apenas 16 por cento das unidades prisionais tinham essa infraestrutura até junho de 2016. E apenas 3 por cento contavam com creches para crianças menores de 7 anos, também exigidas por lei. Apenas um ginecologista estava disponível para cada 1.500 mulheres encarceradas.
Em outubro de 2016, a Human Rights Watch documentou as condições ilegais de encarceramento na prisão feminina do Bom Pastor, em Recife. Além disso, os cuidados pré-natais eram deficientes e os pós-natais literalmente inexistentes. Pesquisadores da Human Rights Watch entrevistaram várias mães que choravam enquanto seguravam seus bebês, temendo o momento em que os filhos completariam seis meses de idade e, então, seriam retirados de seus cuidados pelos agentes penitenciários, já que o estabelecimento não tinha instalações para mantê-los. As crianças eram encaminhadas para cuidados de familiares ou abrigos.
Mulheres presas preventivamente eram mantidas nas mesmas celas que presas condenadas em Bom Pastor, em violação à lei brasileira e aos padrões internacionais.
Ausência de implementação de proteções
Após a decisão de fevereiro de 2018, o Departamento Penitenciário Nacional solicitou às secretarias estaduais de administração penitenciária que estimassem o número de mulheres presas que atendiam aos critérios estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal. Também solicitou o número de mulheres que, de fato, foram submetidas à prisão domiciliar. As secretarias estimaram que, em setembro de 2018, 9.245 mulheres em prisão preventiva desde a decisão do STF atendiam aos critérios, mas que os juízes haviam concedido prisão domiciliar para apenas 3.073, menos de um terço.
Até setembro de 2018, juízes em alguns estados, incluindo Paraíba, Piauí e Maranhão, haviam aplicado a decisão da Suprema Corte em mais casos do que estimado inicialmente pelas secretarias. Mas em outros estados, os juízes praticamente ignoraram a decisão. Juízes do Rio Grande do Sul a aplicaram em 9 por cento dos casos elegíveis estimados e, no Acre, apenas em 2 por cento. Juízes em São Paulo, o estado com o maior sistema prisional do Brasil, a aplicaram em somente 46 por cento dos casos estimados.
No Rio de Janeiro, as autoridades penitenciárias estimaram em setembro de 2018 que 491 mulheres presas cumpriam os critérios do STF, mas os juízes haviam concedido prisão domiciliar a apenas 60 (12 por cento).
Alguns juízes negaram prisão domiciliar com base no que parecem ser interpretações equivocadas da decisão da Suprema Corte.
Em São Paulo, em março de 2018, um juiz de segunda instância recusou a conceder prisão domiciliar a uma mulher acusada de tráfico de drogas com um filho de 11 anos de idade. O juiz disse que o objetivo da decisão da Suprema Corte era “proteger a primeira infância, principalmente das crianças que nascem nos presídios, o que não é o caso da paciente, cujo filho é um pré-adolescente”. No entanto, a decisão do STF aplica-se igualmente às mães de crianças de até 12 anos, nascidas dentro ou fora da prisão, e não apenas a mães de crianças na “primeira infância”, e aplica-se ainda a mães de pessoas com deficiência de qualquer idade.
Alguns juízes continuaram a negar a prisão domiciliar mesmo após a adoção da lei de dezembro de 2018, que eliminou seu poder discricionário de classificar um caso como “excepcionalíssimo” e, portanto, merecedor de prisão preventiva.
Em janeiro de 2019, uma juiza do Rio negou a prisão domiciliar a uma mãe citando a suposta presença de drogas na casa. "Não há dúvidas de que as crianças que residem com ela possuem muito mais risco com sua liberdade do que com a imposição de sua prisão, quando poderão ser acolhidas, temporariamente, por um parente próximo", afirmou a juiza.
Os juízes do Rio de Janeiro fizeram esse tipo de avaliação com base em relatórios policiais e breves interações com as detidas em audiências de custódia, sem qualquer contribuição de psicólogos ou assistentes sociais, disse a Defensoria Pública do Rio à Human Rights Watch.
A Defensoria constatou que entre agosto de 2018 e janeiro de 2019 quase 70 por cento das mulheres que foram mantidas em prisão preventiva após serem detidas, mesmo preenchendo os requisitos da prisão domiciliar, eram acusadas de tráfico de drogas.
Em fevereiro de 2019, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que os juízes devem ter o poder de negar prisão domiciliar em casos excepcionais, conforme os riscos que a mulher possa apresentar aos seus filhos ou à sociedade, contestando a lei de dezembro de 2018 que elimina a discricionariedade para negar a prisão domiciliar em casos excepcionais. As decisões do Tribunal Superior de Justiça podem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal Federal.
Em março de 2019, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu ao Supremo Tribunal Federal a concessão de prisão domiciliar a 20 mulheres que satisfaziam os critérios, mas foram presas preventivamente, e sugeriu que as Corregedorias instaurassem procedimentos disciplinares contra juízes que não cumprem a decisão do Supremo Tribunal Federal de fevereiro de 2018 e a lei de dezembro de 2018.