(Rio de Janeiro) – Milhares de crianças e adultos com deficiência no Brasil estão confinados em instituições de acolhimento, sem necessidade, e podem enfrentar negligência e abuso, afirmou a Human Rights Watch em um relatório divulgado hoje. O Brasil deveria priorizar formas de apoio a pessoas com deficiência que lhes permitam viver de forma independente e em suas comunidades, em vez de segregados em instituições.
O relatório de 86 páginas, “‘Eles ficam até morrer’: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil[ND1] ”, conclui que muitas pessoas com deficiência no país entram em instituições ainda quando crianças e lá permanecem por toda a vida. A maioria das instituições visitadas por pesquisadores da Human Rights Watch não provia mais do que as necessidades básicas de seus residentes, como alimentação e higiene, com poucas oportunidades de contato relevante com a comunidade ou de desenvolvimento pessoal. Alguns residentes são amarrados às camas e recebem sedativos para controle de comportamento.
“Muitas pessoas com deficiência no Brasil estão presas em instituições em condições deploráveis, sem controle sobre suas próprias vidas”, disse Carlos Ríos-Espinosa, pesquisador sênior da divisão de direitos das pessoas com deficiência da Human Rights Watch e autor do relatório. “O governo brasileiro deveria garantir que pessoas com deficiência tenham o apoio que precisam para viver em sociedade, assim como todas as outras pessoas.”
O relatório foi feito com base em visitas a 19 instituições de acolhimento nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e no Distrito Federal, além de 171 entrevistas com pessoas com deficiência, incluindo 10 crianças, bem como familiares, funcionários de instituições, especialistas em direitos das pessoas com deficiência e autoridades públicas de todas as esferas de governo.
Muitas dessas instituições tinham um ambiente que lembrava centros de detenção, segundo a Human Rights Watch. Algumas usam grades em suas portas e janelas. As condições são muitas vezes desumanas, com dezenas de pessoas amontoadas em alas cheias de camas, dispostas uma ao lado da outra. A maioria dos adultos e crianças com deficiência nas instituições visitadas tinha poucos itens pessoais, quando tinham algum. Em alguns casos, os residentes compartilhavam roupas e, em uma das instituições, até mesmo escovas de dente. Muitas pessoas ficavam confinadas em suas camas ou quartos 24 horas por dia.
A maioria das crianças com deficiência nas instituições tinha limitado – ou nenhum – acesso à educação. Estudos mostram que o desenvolvimento físico, intelectual e emocional de crianças pode ser prejudicado pela ausência de apoio individualizado e pessoal por parte de um cuidador. A maioria das crianças em instituições de acolhimento visitadas pela Human Rights Watch tem pais vivos, mas com o tempo muitas vezes perde o contato com suas famílias.
“Muitas vezes as crianças com deficiência acabam em instituições no Brasil porque suas famílias enfrentam uma batalha para cuidar delas sem os recursos e os serviços necessários na comunidade”, disse Carlos Ríos-Espinosa. “Todas as crianças têm o direito de crescer em família; e os recursos do governo devem ser empregados para apoiar as famílias e suas crianças, e não separá-las.”
No Brasil, juízes determinam a institucionalização de uma criança em casos excepcionais – quando a criança está em risco de abandono, negligência ou violência, e não há soluções alternativas possíveis. Mas crianças com deficiência acabam ficando em instituições por muito mais tempo que o limite legal de 18 meses, não raro indefinidamente. Embora o Brasil conte com programas de adoção e acolhimento familiar, essas opções devem ser melhor desenvolvidas para incluir crianças com deficiência, afirmou a Human Rights Watch.
A Human Rights Watch encontrou diversos casos de pessoas com deficiência que estavam vivendo em instituições a vida toda, incluindo um homem de 70 anos com deficiência intelectual que vivia em uma delas desde os 5 anos de idade.
Muitos adultos em instituições são privados de sua liberdade, em violação às obrigações do Brasil perante o direito internacional, pois foram colocados ali, sem seu consentimento, por um responsável legal e não têm o direito de contestar a própria institucionalização. Mediante pedido de um parente ou da direção de uma instituição, os tribunais podem privar pessoas com deficiência de sua capacidade legal, ou do direito de tomar decisões por conta própria. Um curador passa a tomar todas as decisões pela pessoa, incluindo, em alguns casos, a decisão de colocá-las em uma instituição. Uma vez institucionalizadas, elas não podem sair a menos que o responsável legal esteja de acordo.
A maioria das pessoas que vivem em instituições de acolhimento não pode fazer escolhas do dia a dia, como o que e quando comer, com quem se relacionar, qual programa de televisão assistir, e se quer sair e participar de alguma atividade de lazer.
Carolina, 50 anos, sofreu uma lesão na coluna, decorrente de violência doméstica, que a deixou com uma deficiência física permanente. Seus filhos então a colocaram em uma instituição perto de Brasília. Ela descreveu sua vida: “Este lugar é muito ruim, é como uma prisão. Eu não quero ficar aqui. Eu sou obrigada a estar aqui. Meus filhos não querem me ajudar em casa. Embora dois dos meus filhos venham me visitar a cada duas semanas, eu nunca saio. Eu gostaria de sair, ir embora daqui. É o meu sonho. Quando você fica assim [com uma deficiência], acabou.”
Em uma instituição em Salvador, na Bahia, um jovem de 18 anos com uma deficiência progressiva que enfraqueceu gradualmente seus músculos das pernas tinha dificuldade de sair do quarto, o qual compartilhava com outra pessoa. Ele não tinha cadeira de rodas e andar sozinho era extremamente doloroso. Embora a instituição estivesse a apenas 200 metros do oceano, ele não conseguia ir à praia e disse que seu sonho era "ver o mar".
Os responsáveis pela administração de várias instituições afirmaram que não tinham funcionários em número suficiente para dedicar atenção individualizada a cada um dos residentes, incluindo crianças. A maioria das instituições de acolhimento no Brasil é administrada de forma privada. Quase 70% delas têm convênios com os governos municipais, segundo informação fornecida pelo Ministério do Desenvolvimento Social em resposta à pesquisa da Human Rights Watch.
Nos termos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada pelo Brasil, os governos devem respeitar a dignidade inerente às pessoas com deficiência, reconhecendo-as como pessoas em igualdade de condições com as demais. Isso inclui garantir que pessoas com deficiência possam viver de forma independente na comunidade, e não segregadas e confinadas em instituições. Nos termos da convenção, os governos também devem evitar a discriminação e o abuso contra pessoas com deficiência e remover barreiras que impeçam sua plena inclusão na sociedade. Todas as crianças, incluindo crianças com deficiência, têm o direito de crescer com sua família. Nenhuma criança deve ser separada de seus pais em razão de uma deficiência ou de pobreza.
“Institucionalizar pessoas com deficiência é desumanizante”, disse Carlos Ríos-Espinosa. “Existe uma crença enraizada de que pelo menos algumas pessoas com deficiência precisam viver em instituições, mas isso simplesmente não é verdade. Trancar as pessoas com deficiência em instituições é uma das piores formas de exclusão e discriminação.”
[ND1]ADDED REPORT LINK HERE