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Afeganistão

Eventos de 2021

Mulheres afegãs esperam em uma fila para receber dinheiro em uma distribuição organizada pelo Programa Mundial de Alimentos em Cabul, Afeganistão, 3 de novembro de 2021. 

© 2021 AP Photo/Bram Janssen

Após a tomada do poder pelo Talibã em agosto, o longo conflito no Afeganistão subitamente deu lugar a uma crescente crise humanitária e de direitos humanos. O Talibã imediatamente reverteu os avanços dos direitos das mulheres e a liberdade de imprensa – algumas das principais conquistas do esforço de reconstrução pós-2001. A maioria das escolas secundárias para meninas foi fechada e as mulheres foram proibidas de trabalhar na maioria dos empregos públicos e em muitas outras áreas. O Talibã agrediu e deteve jornalistas, e muitas agências de notícias fecharam ou reduziram drasticamente sua atuação, em parte porque muitos jornalistas fugiram do país. O novo governo do Talibã não incluía mulheres e nenhum ministro que não fosse membro do próprio Talibã.

Em muitas cidades, o Talibã perseguiu, ameaçou e às vezes deteve ou executou ex-membros das Forças de Segurança Nacional Afegãs (ANSF, na sigla em inglês), autoridades do antigo governo ou seus familiares.

Quando o Talibã tomou Cabul em 15 de agosto, milhares de pessoas tentaram fugir do país, mas o caos e a violência no aeroporto impediram a evacuação de muitos afegãos em risco.

A vitória do Talibã impulsionou a crise humanitária no Afeganistão transformando-a em  uma catástrofe, com milhões de afegãos enfrentando insegurança alimentar grave devido à perda de renda, falta de dinheiro e aumento dos custos dos alimentos.

Nos seis meses anteriores à tomada do poder, os combates entre as forças governamentais e o Talibã geraram um aumento acentuado no número de  civis vítimas de  artefatos explosivos improvisados ​​(IED, na sigla em inglês), morteiros e ataques aéreos. O Estado Islâmico da província de Khorasan (o braço afegão do Estado Islâmico, conhecido como ISKP em inglês) realizou ataques em escolas e mesquitas, muitos deles visando atingir a minoria xiita Hazara.

Execuções ilegais, desaparecimentos forçados e violações do direito de guerra

As Nações Unidas relataram que as forças do Talibã foram responsáveis ​​por quase 40% dos mortes e feridos civis nos primeiros seis meses de 2021, embora muitos incidentes não tenham sido reivindicados. Mulheres e crianças representaram quase metade de todas as vítimas civis. Os ataques do ISKP incluíram assassinatos e uma série de ataques letais.

Muitos ataques tiveram como alvo a comunidade xiita Hazara do Afeganistão. Em 8 de maio, três explosões na escola Sayed al-Shuhada em Cabul mataram pelo menos 85 civis, incluindo 42 meninas e 28 mulheres, e feriram mais de 200, a grande maioria da comunidade Hazara. O ataque não foi reivindicado, mas ocorreu em um bairro predominantemente habitado por Hazara e que o ISKP ataca com frequência. Em 8 de outubro, um atentado suicida realizado durante a oração da sexta-feira em uma mesquita xiita em Kunduz matou pelo menos 72 pessoas e feriu mais de 140; o ISKP reivindicou a autoria do ataque. No dia  4 de março, homens armados mataram sete trabalhadores Hazara em uma fábrica de plásticos em Jalalabad.

As forças do Talibã assassinaram dezenas de ex-oficiais e membros das forças de segurança em diversas províncias. Após o Talibã assumir o controle de Malistan, em Ghazni, em meados de julho, eles mataram ao menos 19 agentes de segurança que estavam sob  custódia, além de vários civis. Com o avanço das forças do Talibã,pelo menos 44 ex-agentes de segurança foram assassinados em Kandahar após a tomada de Spin Boldak pelo Talibã em julho. Todos se renderam ao Talibã. Houve relatos confiáveis ​​de detenções e assassinatos em outras províncias, bem como em Cabul.

Tanto o Talibã quanto o ISKP assassinaram alvos civis específicos, incluindo funcionários do governo, jornalistas e líderes religiosos. No dia 17 de janeiro de 2021, homens armados não identificados mataram a tiros duas juízas que trabalhavam para o tribunal superior do Afeganistão e feriram seu motorista. O ISKP reivindicou a responsabilidade pelas mortes de nove agentes sanitários que aplicavam vacinas contra a poliomielite em Nangarhar entre março e junho. Em 9 de junho, homens armados mataram 10 pessoas responsáveis por desativar minas terrestres em Baghlan, o ISKP assumiu a responsabilidade pelo ataque. Em agosto, um atentado suicida do ISKP no aeroporto de Cabul matou 170 civis, incluindo muitos afegãos que tentavam fugir do país.

As forças do Talibã também expulsaram pessoas de suas casas em diversas províncias, incluindo Daykundi, Uruzgan, Kunduz e Kandahar, em aparente retaliação pelo suposto apoio dos residentes ao antigo governo. Em setembro, na maior  expulsão realizada, centenas de famílias hazara do distrito de Gizab, na província de Uruzgan, e de distritos vizinhos da província de Daykundi, foram forçadas a abandonar suas casas e fugir.

Tanto o Talibã quanto as forças de segurança do governo afegão foram responsáveis ​​por matar e ferir civis em ataques indiscriminados de morteiros e foguetes. As vítimas civis dos ataques aéreos das antigas forças governamentais mais do que dobraram na primeira metade de 2021 em comparação com o mesmo período em 2020. Em um incidente ocorrido em 10 de janeiro, um ataque aéreo em Nimroz matou 18 civis, incluindo sete meninas, seis mulheres e quatro meninos; dois homens civis ficaram feridos.

Em 15 de agosto, quando o Talibã tomou Cabul, uma unidade de força de ataque da Direção Nacional de Segurança do antigo governo capturou e executou 12 ex-prisioneiros que haviam acabado de ser libertados, segundo testemunhas.

Em 29 de agosto, os Estados Unidos realizaram um ataque de drones contra um carro que supostamente estava cheio de explosivos com destino ao aeroporto de Cabul. Na verdade, o carro era dirigido por um funcionário de uma ONG que seria evacuado para os Estados Unidos. Duas semanas depois, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos admitiu que o ataque foi um “erro trágico”, matando 10 civis, incluindo sete crianças.

Direitos das mulheres e meninas

Nas semanas seguintes a tomada do poder pelo Talibã, foram anunciadas pelas autoridades do Talibã uma série de políticas e regulamentos que reverteram os direitos das mulheres e meninas. Essas mudanças incluíram medidas que restringem drasticamente o acesso ao emprego e à educação e restringiam o direito à reunião pacífica. O Talibã também perseguiu reconhecidas lideranças femininas e negou-lhes liberdade de movimentação.

O Talibã disse que apoia a educação de meninas e mulheres, mas em 18 de setembro ordenou a reabertura de escolas secundárias apenas para meninos. Algumas escolas secundárias para meninas posteriormente reabriram em algumas províncias, mas até outubro a grande maioria permanecia fechada. Em 29 de agosto, o ministro interino de Educação superior anunciou que meninas e mulheres poderiam ter acesso à educação superior, mas que não poderiam estudar com meninos e homens. A falta de professoras, especialmente no ensino superior, provavelmente significa que essa política acarretara, na prática, o não acesso à educação para muitas meninas e mulheres.

Mulheres que deram aulas à meninos em classes superiores à sexta série ou à homens em turmas mistas em universidades foram demitidas em algumas áreas porque dar aulas à homens não é mais permitido. Em muitas partes do Afeganistão, autoridades do Talibã baniram ou restringiram a atuação de trabalhadoras humanitárias, uma medida que provavelmente piorará o acesso à assistência médica e ajuda humanitária. O Talibã também demitiu quase todas as funcionárias do governo. Em setembro, o Ministério de Desenvolvimento Rural do Talibã ordenou que apenas os homens retornassem aos seus empregos, dizendo que o retorno das mulheres ao trabalho foi “adiado” até que fosse preparado um “mecanismo que estabeleça como elas trabalharão”. Quando as mulheres foram autorizadas a retornar ao trabalho, elas enfrentaram exigências de segregação de gênero em seus locais de trabalho.

Em setembro, o Talibã extinguiu o Ministério dos Assuntos da Mulher e substituíram-no pelo Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, uma instituição encarregada de impor regras sobre o comportamento dos cidadãos, incluindo como as mulheres se vestem, e quando ou se as mulheres podem sair de suas casas sem a companhia de um familiar do sexo masculino. Os abrigos que haviam sido criados para mulheres que fugiam da violência foram fechados e algumas das mulheres que viviam neles foram transferidas para prisões femininas.

Liberdades de imprensa, expressão e reunião

A imprensa afegã está sob crescente ameaça desde o início do ano, principalmente do Talibã. O ISKP também realizou vários ataques letais contra jornalistas.

Em 21 de dezembro de 2020, Rahmatullah Nekzad, chefe do sindicato dos jornalistas de Ghazni, foi morto a tiros enquanto caminhava de sua casa para uma mesquita local. Embora o Talibã tenha negado a responsabilidade pelo ataque, Nekzad já havia recebido ameaças de comandantes locais do Talibã.

O ISKP assumiu a responsabilidade pela morte de Malala Maiwand, uma apresentadora de televisão do Enikass News em Jalalabad, junto com seu motorista, Tahar Khan, em 10 de dezembro de 2020. Em 2 de março de 2021, em dois ataques separados em Jalalabad, homens armados mataram três mulheres que trabalhavam como dubladoras de reportagens estrangeiras na Enikass News.

Após a tomada do poder pelo Talibã, quase 70% de todas as agências de notícias afegãs foram fechadas e outras operavam sob ameaça e autocensura. Em setembro, as autoridades do Talibã impuseram restrições abrangentes à imprensa e à liberdade de expressão, que incluíam proibições de “insultar figuras nacionais” e reportagens que poderiam ter um “impacto negativo na opinião pública”. Em 7 de setembro, as forças de segurança do Talibã detiveram dois jornalistas da agência de notícias Etilaat-e Roz e os espancaram severamente enquanto estavam sob custódia, depois os liberaram. Os repórtereshaviam feito uma cobertura jornalística dos protestos de mulheres em Cabul. Desde que assumiu o poder, o Talibã prendeu pelo menos 32 jornalistas  em Cabul.

Desde 2 de setembro, mulheres afegãs realizaram manifestações em várias cidades para protestar contra as políticas do Talibã que violam os direitos das mulheres. Em Herat, combatentes do Talibã chicotearam manifestantes e dispararam indiscriminadamente na multidão para dispersá-la, causando a  morte de dois homens e ferindo pelo menos oito pessoas. Posteriormente, o Talibã proibiu protestos que não tivessem aprovação prévia do Ministério de Justiça em Cabul. Alguns protestos continuam acontecendo apesar das proibições.

Em 6 de julho, o governo afegão anunciou que era ilegal transmitir notícias “contra o interesse nacional”. Em 26 de julho, quatro jornalistas foram presos pela agência de inteligência do governo anterior ao voltarem de Spin Boldak, Kandahar, onde estavam investigando a tomada do distrito pelo Talibã. Eles só foram libertados após Kandahar ser tomada pelo Talibã em 13 de agosto.

Justiça internacional e investigações sobre abusos

Em 27 de setembro, o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional iniciou uma ação perante os juízes da corte solicitando autorização para prosseguir com investigações no Afeganistão após o colapso do antigo governo afegão. O procurador-geral Karim Khan afirmou, no entanto, que sua investigação se concentraria apenas em crimes supostamente cometidos pelo Talibã e pelo Estado Islâmico e não priorizaria outros aspectos da investigação, a saber, supostos crimes cometidos por forças do antigo governo afegão e por militares e agentes da Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA, na sigla em inglês).

Em 24 de agosto, o Conselho de Direitos Humanos da ONU realizou uma sessão especial, solicitada conjuntamente pelo Afeganistão e a Organização para a Cooperação Islâmica (OCI), mas as negociações – lideradas pelo Paquistão como coordenador da OCI – falharam em criar um novo mecanismo de monitoramento. Em sua sessão regular seguinte, em 7 de outubro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou uma resolução liderada pela União Europeia estabelecendo um relator especial para o Afeganistão, assistido por especialistas, inclusive em temas de “investigação; perícia; e proteção e promoção de direitos das mulheres e meninas”.

Em junho, afegãos testemunharam no processo de difamação contra jornais australianos promovido pelo ex-oficial do serviço aéreo australiano, Ben Roberts-Smith. Em 2018, os jornais The Age, Sydney Morning Herald e Canberra Times publicaram relatos sobre supostos assassinatos de civis e outros abusos cometidos por militares australianos e pelo próprio Roberts-Smith. Esses abusos estão sendo examinados por investigadores australianos.

Principais atores internacionais

Em 14 de abril, o presidente dos EUA, Joe Biden, anunciou a retirada total das tropas americanas do Afeganistão. A retirada apressada não incluiu planos para evacuar muitos afegãos que trabalharam para as forças dos EUA e da OTAN ou para programas patrocinados por países doadores.

Canadá, União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos e outros países evacuaram várias centenas de milhares de afegãos que trabalharam diretamente com esses governos, suas forças militares ou organizações que apoiavam. Milhares de afegãos continuaram em risco – incluindo defensores dos direitos humanos, ativistas dos direitos das mulheres, jornalistas e lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros – sem nenhuma maneira de sair do país com segurança. Embora os membros da UE tenham evacuado alguns afegãos, até novembro, nenhum deles havia se comprometido a receber mais refugiados. Os Estados membros prometeram um bilhão de euros em ajuda humanitária.

Após a tomada do poder pelo Talibã, o Banco da Reserva Federal dos Estados Unidos (o banco central americano) cortou o acesso do Banco Central do Afeganistão aos seus ativos em dólares americanos. O Fundo Monetário Internacional impediu o Afeganistão de acessar seus ativos, incluindo Direitos Especiais de Saque. Em agosto, os doadores suspenderam os pagamentos do Fundo Fiduciário de Reconstrução do Afeganistão administrado pelo Banco Mundial, anteriormente usado para pagar salários de funcionários públicos, o que acelerou o colapso econômico do Afeganistão.

Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU autorizou a renovação de seis meses da Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (UNAMA, na sigla em inglês). O futuro da missão, que entre outras coisas tem o mandato de promover os direitos das mulheres e meninas afegãs e monitorar, investigar e relatar supostos abusos de direitos humanos, é incerto. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, provavelmente fará recomendações ao Conselho no início de 2022 sobre o futuro da UNAMA.

Até novembro, o governo do Talibã não havia sido formalmente reconhecido por nenhum outro país. Em setembro, a UE definiu cinco parâmetros de referência para o envolvimento com o governo Talibã, entre eles, o respeito pelos direitos humanos, em particular os das mulheres e meninas, e o estabelecimento de um governo inclusivo e representativo.

Na reunião do G20 em 23 de setembro, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, pediu o fim de todas as sanções econômicas ao Afeganistão, disse que a China esperava que o governo do Talibã se tornasse mais inclusivo e aconselhou o Talibã a lutar “firmemente” contra o terrorismo internacional.

Em 1º de novembro, a Rússia, a Turquia e o Irã declararam que não reconheceriam o governo liderado pelo Talibã até que ele formasse um governo “inclusivo”. A Rússia convidou representantes do Talibã para negociações internacionais sobre o Afeganistão em Moscou em 20 de outubro.

O Paquistão chegou muito perto de reconhecer o governo do Talibã, mas não o fez. Contudo pediu um maior envolvimento internacional com o Talibã, ao mesmo tempo que os instava a criar um governo mais “inclusivo”.

Ao longo do ano,  os Procedimentos Especiais da ONU, os órgãos de tratados e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos repetidamente denunciaram e fizeram recomendações sobre a constante piora na situação de direitos humanos no Afeganistão.