Relatório Mundial 2023
Nossa Revisão Anual dos direitos humanos ao redor do mundo
Um Novo Modelo de Liderança Global para os Direitos Humanos
A conclusão óbvia a ser tirada da litania das crises de direitos humanos em 2022 – dos ataques deliberados do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, aos civis na Ucrânia às prisões ao céu aberto dos uigures na China de Xi Jinping, aos milhões de afegãos levados ao risco de inanição pelo Talibã – é que o poder autoritário desenfreado deixa para trás um mar de sofrimento humano. Mas 2022 também revelou uma mudança de poder fundamental no mundo que abre caminho para todos os governos envolvidos reagirem contra esses abusos, protegendo e fortalecendo o sistema global de direitos humanos, especialmente quando as ações das grandes potências falham ou são problemáticas.
Temos testemunhado líderes mundiais negociando de forma cínica suas obrigações de direitos humanos e até mesmo a responsabilização dos violadores de direitos humanos por supostas vitórias políticas de curto prazo. A promessa inicial do candidato presidencial dos Estados Unidos, Joe Biden, de tornar a Arábia Saudita um “estado pária” por causa de seu histórico de direitos humanos foi esvaziada com um aperto de mãos com Mohammed Bin Salman da Arábia Saudita, quando ele assumiu a presidência e enfrentava os altos preços da gasolina. E o governo Biden, apesar de sua retórica sobre priorizar a democracia e os direitos humanos na Ásia, atenuou as críticas aos abusos de direitos e aumento do autoritarismo na Índia, Tailândia, Filipinas e em outras partes da região por razões econômicas e de segurança, em vez de reconhecer que tudo está relacionado.
Esse padrão de dois pesos e duas medidas não se limita às superpotências globais. O Paquistão apoiou a fiscalização dos abusos de direitos humanos na região de maioria muçulmana da Caxemira pelo alto comissariado da ONU para os direitos humanos, ao mesmo tempo em que virou as costas para os possíveis crimes contra a humanidade contra uigures e outros muçulmanos turcomenos em Xinjiang, por causa da sua estreita relação com a China. A hipocrisia do Paquistão é ainda mais flagrante se considerarmos seu papel de coordenação na Organização de Cooperação Islâmica (OIC, na sigla em inglês), que conta com 57 membros.
Crises de direitos humanos não surgem do nada. Os governos que falham em cumprir suas obrigações legais de proteger os direitos humanos dentro do seu território semeiam o descontentamento, a instabilidade e, em última instância, crises. Sem controle, as flagrantes ações de governos abusivos aumentam, consolidando a crença de que a corrupção, a censura, a impunidade e a violência são as ferramentas mais eficazes para atingir seus objetivos. Ignorar as violações de direitos humanos acarreta um alto custo, e o efeito cascata não deve ser subestimado.
Contudo em um mundo onde há constante alternância de poder, ao preparar nosso Relatório Mundial 2023 que examina a situação dos direitos humanos em quase 100 países, também encontramos oportunidades. Cada questão precisa ser compreendida e enfrentada a partir dos seus próprios méritos, e cada uma demanda uma liderança. Qualquer Estado que reconheça o poder que advém do trabalho em conjunto com outros para gerar mudanças nos direitos humanos pode oferecer essa liderança. Há mais espaço, não menos, para os governos se posicionarem e adotarem planos de ação que respeitem os direitos.
Emergem novas coalizões e novas vozes de lideranças que podem moldar e promover essa tendência. África do Sul, Namíbia e Indonésia abriram caminho para que mais governos reconheçam que as autoridades israelenses estão cometendo crime contra a humanidade de apartheid contra os palestinos.
As nações insulares do Pacífico exigiram, como um bloco, reduções de emissões de gases de efeito estufa mais ambiciosas dos países que mais poluem, enquanto Vanuatu lidera um esforço para colocar os efeitos adversos da mudança climática perante a Corte Internacional de Justiça para seu próprio bem – e o nosso.
E enquanto a Suprema Corte dos EUA derrubou 50 anos de proteção federal para os direitos reprodutivos, a “onda verde” de expansão dos direitos relacionados ao aborto na América Latina – notavelmente na Argentina, Colômbia e México – oferece uma contra-narrativa convincente.
Esta é a lição abrangente de nosso mundo cada vez mais conturbado: precisamos reimaginar como o poder no mundo é exercido e que todos os governos têm não apenas a oportunidade, mas a responsabilidade de agir para proteger os direitos humanos dentro e fora de suas fronteiras.
Ucrânia: Esperança e Reprovação
A invasão em grande escala da Ucrânia por Vladimir Putin, em fevereiro, e as atrocidades que se sucederam rapidamente chegaram ao topo da agenda mundial de direitos humanos em 2022. Depois que as tropas ucranianas forçaram a retirada dos militares russos de Bucha, ao norte da capital, Kiev, a ONU descobriu que pelo menos 70 civis foram vítimas de assassinatos, incluindo execuções sumárias, que são crimes de guerra. Esse padrão de atrocidade russa foi repetido inúmeras vezes.
Centenas de moradores deslocados que se refugiaram no Drama Theatre em Mariupol, pintaram no chão do lado de fora a palavra russa “DETI” (crianças) em letras tão grandes que podiam ser vistas em imagens de satélite. Este alerta pretendia proteger os civis, incluindo muitas crianças, que se abrigavam no interior do prédio. Em vez disso, pareceu servir apenas como um incentivo para as forças russas cujas bombas destruíram o prédio, matando pelo menos uma dúzia, possivelmente mais, de seus ocupantes. Infligir sofrimento a civis, como os repetidos ataques à infraestrutura de energia da qual os ucranianos dependem para eletricidade, água e calor, parece ser uma parte central da estratégia do Kremlin.
A ousadia de Putin tornou-se possível em grande parte graças à permissividade de longa data de agir com impunidade. A perda de vidas civis na Ucrânia não surpreende os sírios que sofreram graves abusos de direitos humanos durante os ataques aéreos após a intervenção russa para apoiar as forças sírias de Bashar al-Assad em 2015. Putin convocou comandantes militares proeminentes daquela campanha militar para liderar o esforço de guerra na Ucrânia, com consequências previsíveis – e devastadoras – para os civis ucranianos. A Rússia conduziu suas brutais ações militares na Ucrânia reprimindo os direitos humanos e os ativistas antiguerra na própria Rússia, sufocando a dissidência e qualquer crítica ao governo de Putin.
Mas um resultado positivo das ações da Rússia foi ativar todo o sistema global de direitos humanos criado para lidar com crises como esta. O Conselho de Direitos Humanos da ONU prontamente abriu uma investigação para documentar e preservar evidências de violações de direitos humanos na guerra e, posteriormente, criou uma relatoria especial para monitorar a situação dos direitos humanos na Rússia. A Assembleia Geral da ONU condenou quatro vezes – a maioria por ampla margem de votos – tanto a invasão da Rússia quanto suas violações de direitos humanos. A Assembleia Geral também suspendeu a Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, reduzindo sua capacidade de interferir sobre iniciativas relacionadas à Ucrânia e outras graves crises de direitos humanos na agenda do conselho.
Os países europeus acolheram milhões de refugiados ucranianos, uma resposta louvável que também expôs os dois pesos e duas medidas da maioria dos países membros da União Europeia em relação ao atual tratamento em relação aos inúmeros sírios, afegãos, palestinos, somalis e outros que na Europa buscam refúgio. O promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia abriu uma investigação em relação à situação da Ucrânia após a requisição por um número sem precedentes de países membros do tribunal. Os governos também se mobilizaram para enfraquecer a influência global e o poder militar de Putin, com a União Europeia, os EUA, o Reino Unido, o Canadá e outros impondo sanções internacionais direcionadas a indivíduos, empresas e outras entidades russas.
Esta resposta extraordinária mostrou o que é possível fazer com vistas a avançar na responsabilização por graves abusos de direitos humanos, para a proteção de refugiados, para proteger os direitos de algumas das pessoas em maior situação de vulnerabilidade do mundo. Ao mesmo tempo, os ataques a civis e os horrendos abusos na Ucrânia deveriam ser um lembrete de que esse apoio consolidado, por mais crítico que seja, não deve ser confundido com uma solução rápida.
Em vez disso, os governos deveriam refletir sobre como seria a situação se a comunidade internacional tivesse feito um esforço conjunto para responsabilizar Putin muito antes – em 2014, no início da guerra no leste da Ucrânia; em 2015, por abusos na Síria; ou pela escalada da repressão aos direitos humanos na própria Rússia na última década. O desafio daqui para frente é que os governos repliquem o melhor da resposta internacional na Ucrânia e tenham mais vontade política de enfrentar outras crises em todo o mundo até que haja uma melhora significativa dos direitos humanos.
Alcançando a responsabilização na Etiópia
O conflito armado no norte da Etiópia recebeu apenas uma pequena fração da atenção global voltada para a Ucrânia apesar de dois anos de atrocidades, incluindo uma série de massacres pelas partes em conflito.
Em 2020, as tensões entre o governo federal da Etiópia e as autoridades regionais de Tigré, a Frente Popular de Libertação do Tigré (TPLF, na sigla em inglês), resultaram em um conflito na região, com as forças regionais de Amhara e os militares da Eritreia apoiando as forças armadas etíopes. Desde então, o governo restringiu o acesso de investigadores independentes de direitos humanos e jornalistas às áreas afetadas pelo conflito, dificultando investigações de abusos em tempo real, mesmo quando o conflito se espalhou para as regiões vizinhas de Amhara e Afar.
Os governos e as Nações Unidas condenaram os assassinatos sumários, a violência sexual generalizada e a pilhagem, mas não fizeram muito mais que isso. Uma campanha de limpeza étnica contra a população tigré em Tigré Ocidental resultou em muitas mortes, violência sexual, detenções em massa e o deslocamento forçado de milhares de pessoas. O cerco efetivo do governo à região de Tigré continuou até 2022, negando à população civil o acesso a alimentos, remédios e ajuda humanitária para salvar vidas, bem como eletricidade, serviços bancários e comunicações, o que viola o direito internacional.
Os três governos africanos eleitos como membros do Conselho de Segurança da ONU – Gabão, Gana e Quênia – assim como a Rússia e a China, bloquearam até a inclusão da Etiópia na agenda formal de discussão do Conselho, apesar da responsabilidade do conselho de manter e restaurar a paz e a segurança internacionais. Governos também hesitaram em adotar sanções direcionadas a entidades etíopes e indivíduos responsáveis por abusos. Em vez disso, o escrutínio internacional recaiu sobre o Conselho de Direitos Humanos da ONU, que por pouco renovou o mandato do mecanismo criado em dezembro de 2021 para investigar e preservar evidências de graves abusos e identificar os responsáveis. No entanto, as autoridades federais etíopes continuam a bloquear fortemente seu trabalho.
Um processo de paz de 10 dias liderado pela União Africana culminou em novembro em uma trégua entre o governo federal etíope e as autoridades do Tigré. Essa trégua oferece uma oportunidade para estados externos desempenharem um papel de liderança no apoio a soluções que podem quebrar ciclos mortais de violência e impunidade. Com os caminhos para a responsabilização doméstica irrisórios, o monitoramento internacional do acordo é necessário, juntamente com esforços verdadeiros para responsabilizar os responsáveis pelos abusos durante a guerra.
Os principais apoiadores e observadores do acordo, incluindo a União Africana, a ONU e os EUA, deveriam sinalizar e manter a pressão para garantir que organizações investigativas independentes possam acessar áreas de conflito e documentar e preservar evidências. A responsabilização por esses crimes deveria continuar a ser uma prioridade, para que as vítimas e seus familiares possam obter justiça e reparação.
Um holofote mais claro em Pequim
O presidente chinês, Xi Jinping, garantiu um terceiro mandato inédito como chefe do Partido Comunista Chinês em outubro, estabelecendo-se como um “líder vitalício” e praticamente garantindo que a hostilidade implacável do governo chinês à proteção dos direitos humanos continuará. Xi se cercou de partidários e se esforçou para construir um estado de segurança, aprofundando as violações de direitos em todo o país.
Na região de Xinjiang, destacam-se, por sua gravidade, escala e crueldade, a detenção em massa de cerca de um milhão de uigures e outros muçulmanos turcomenos por Pequim – que estão sujeitos à tortura, doutrinação política e trabalho forçado – e as severas restrições aos direitos à religião, expressão e cultura para a população em geral. A ONU concluiu que as violações em Xinjiang podem constituir crimes contra a humanidade, ecoando as conclusões da Human Rights Watch e de outros grupos de direitos humanos.
O rigoroso relatório da então alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet, baseado em anos de investigação e em documentos internos, leis, políticas, dados e declarações políticas do governo chinês, criou um crítico ponto de referência comum a partir do qual os governos deveriam agir. O fato de o relatório ter sido divulgado apenas nos minutos finais do mandato de Bachelet indica a intensa pressão de Pequim para impedi-lo.
O relatório provocou notável mobilização diplomática. Uma resolução para abrir um debate sobre o relatório foi apresentada no Conselho de Direitos Humanos e não avançou por apenas dois votos. O resultado refletiu a pressão de Pequim sobre governos como a Indonésia – que disse que “não devemos fechar os olhos” para a situação dos uigures e depois votou “não” – bem como sua influência nas ações dos Estados que se abstiveram, incluindo Argentina, Índia, México e Brasil. Mas os votos “sim” da Somália, Honduras e Paraguai, e o apoio da Turquia e da Albânia, juntamente com 24 países ocidentais, mostram o potencial de alianças inter-regionais e novas coalizões para desafiar a expectativa de impunidade do governo chinês.
Os vários “holofotes” sobre a deplorável situação dos direitos humanos em Xinjiang colocaram Pequim na defensiva, e o governo chinês tenta arduamente explicar seu comportamento hediondo. O resultado em Genebra aumenta a responsabilidade da liderança da ONU de colocar todo o seu peso político no relatório e continuar a monitorar, documentar e relatar a situação em Xinjiang e, de forma mais ampla, na China. Menos do que isso representaria uma omissão do sistema da ONU em relação ao pilar de direitos humanos de sua responsabilidade de proteger os muçulmanos turcomenos em Xinjiang.
Enquanto isso, à medida que tem aumentado o desconforto em torno das ambições repressivas do governo chinês, governos como Austrália, Japão, Canadá, Reino Unido, UE e EUA procuraram cultivar alianças comerciais e de segurança com a Índia, que tem procurado se esconder em seu selo de “maior democracia do mundo”. Mas o partido hindu-nacionalista Bharatiya Janata (Partido do Povo Indiano) do primeiro-ministro Narendra Modi imitou muitos dos mesmos abusos que permitiram que a repressão estatal chinesa – discriminação sistemática contra minorias religiosas, o sufocamento da dissidência pacífica, uso de tecnologia para suprimir a liberdade de expressão – aumentasse seu controle e poder.
As negociações que os líderes mundiais fazem, aparentemente sem se importar com os direitos humanos e justificando como um custo de fazer negócios, ignoram as implicações de longo prazo de seus compromissos. Aprofundar os laços com o governo de Modi, ao mesmo tempo em que faz vista grossa para seu histórico preocupante de direitos, desperdiça uma oportunidade valiosa para proteger o precioso, mas cada vez mais ameaçado, espaço cívico do qual depende a democracia da Índia.
Respeito pelos direitos humanos como receita para a estabilidade
Os autocratas se beneficiam da ilusão que criam de que são indispensáveis para manter a estabilidade, o que, por sua vez, aparentemente justifica sua opressão e as violações generalizadas dos direitos humanos cometidas para atingir esse fim.
Mas essa “estabilidade”, impulsionada pela busca interminável de poder e controle, infecta e corrói todos os pilares necessários para uma sociedade funcional baseada no Estado de direito. O resultado é frequentemente uma corrupção massiva, uma economia falida e um judiciário irremediavelmente partidário. A sociedade civil é desmantelada, com ativistas e jornalistas independentes presos, escondidos ou com medo de retaliação.
Os protestos que já se estendem há meses no Irã em 2022 destacam os graves riscos que as autocracias correm ao imaginar que a repressão é um caminho para a estabilidade. Protestos eclodiram em todo o país em resposta à morte da curda-iraniana Mahsa (Jina) Amini, de 22 anos, em setembro, após sua prisão pela “polícia moral” por usar um “hijab de forma imprópria”. Mas o protesto contra o uso obrigatório do hijab é apenas o símbolo mais visível da repressão. A nova geração de manifestantes em todo o país ecoa as frustrações de gerações passadas: pessoas cansadas de viver sem direitos fundamentais e de serem governadas por quem desconsidera insensivelmente o bem-estar de seu povo.
A demanda por igualdade desencadeada por mulheres e estudantes se transformou em um movimento nacional do povo iraniano contra um governo que sistematicamente nega seus direitos, administra mal a economia e leva as pessoas à pobreza. As autoridades iranianas reprimiram impiedosamente o que se tornaram protestos generalizados antigoverno, com força excessiva e letal, seguidos por julgamentos fraudulentos e sentenças de morte para aqueles que ousam desafiar a autoridade do governo. Indicações de que as autoridades podem desmantelar a polícia da moralidade ficam muito aquém da exigência de abolir as leis discriminatórias e compulsórias do hijab e ainda mais longe das reformas estruturais fundamentais que os manifestantes estão exigindo para tornar o governo mais responsável.
A ligação entre a impunidade por abusos e a governança mal administrada pode ser vista em outros lugares. A escassez de combustível, alimentos e outros itens essenciais, incluindo remédios, provocou protestos em massa no Sri Lanka, forçando a renúncia do primeiro-ministro, Mahinda Rajapaksa, seguido por seu irmão, o presidente Gotabaya Rajapaksa. Infelizmente, o homem que o parlamento escolheu para substituí-los, Ranil Wickramasinghe, abandonou os compromissos com a justiça e a responsabilização por flagrantes violações de direitos cometidas durante a guerra civil de 26 anos do país, que terminou em 2009. O presidente Wickremasinghe, em vez de se concentrar na crise econômica e garantir a justiça social, reprimiu os protestos, usando até mesmo a notória Lei de Prevenção do Terrorismo para deter estudantes ativistas.
Rachaduras também surgiram nas fundações de países aparentemente impenetráveis. Em novembro, a crescente frustração com as rígidas medidas de isolamento social de Pequim como parte de sua política de “covid zero” se espalhou pelas ruas, com manifestantes em cidades de todo o país denunciando as medidas draconianas do Partido Comunista e, em alguns casos, o governo de Xi. Essas notáveis demonstrações de desafio, lideradas principalmente por jovens e mulheres em particular, demonstram que a aspiração pelos direitos humanos não pode ser apagada, apesar dos enormes recursos que o governo chinês dedicou para reprimi-las.
É fácil celebrar os manifestantes que levam às ruas a luta pelos direitos humanos. Mas não podemos esperar que os manifestantes diagnostiquem os problemas – o que fazem com grande risco para si e suas famílias – e responsabilizem sozinhos os perpetradores das privações que sofreram. Os governos que respeitam os direitos precisam emprestar suas forças políticas e atenção para garantir que a mudança necessária para os direitos humanos seja concretizada. Os governos deveriam cumprir suas responsabilidades globais de direitos humanos, não apenas ponderar e se posicionar sobre elas.
Considere o Sudão, cuja revolução popular de 2018-19 desafiou a estrutura de poder abusiva que reprimiu o país por décadas. A transição civil-militar conjunta de dois anos que liderou o país foi sabotada por um golpe militar no final de 2021, colocando autocratas e comandantes militares sudaneses envolvidos em graves abusos – alguns dos quais estão novamente cometendo abusos – no comando do futuro do país.
Mas os Comitês de Resistência sudaneses – grupos civis pró-democracia criados a partir da revolução de 2018 – persistem, apesar da repressão letal. Esses grupos insistem em uma transição apenas civil e querem que os perpetradores de abusos sejam responsabilizados. Em dezembro, atores políticos chegaram a um acordo preliminar com os líderes militares do golpe, adiando as discussões sobre as reformas do setor de justiça e segurança para um estágio posterior, mas manifestantes e grupos de vítimas têm rejeitado o acordo.
Para que o Sudão avance para um futuro que respeite os direitos humanos, as demandas desses grupos, incluindo apelos por justiça e o fim da impunidade para os que estão no comando, deveriam ser uma prioridade dos EUA, ONU, UE e parceiros regionais na relação com a liderança militar do Sudão. Quem deu o golpe para chegar ao poder não o abandonará sem restrições ou custos financeiros.
Da mesma forma, continua sendo fundamental para enfrentar a crise atual centrar as demandas de milhões de pessoas que pressionam por direitos humanos e por um governo civil democrático em Mianmar. Em fevereiro de 2021, os militares de Mianmar deram um golpe e têm reprimido brutalmente qualquer oposição desde então. Por dois anos, a junta militar cometeu abusos sistemáticos, incluindo execuções extrajudiciais, tortura e violência sexual, que equivalem a crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
A Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) produziu um “Consenso de Cinco Pontos” — negociado entre o bloco e a junta de Mianmar — para enfrentar a crise no país. A negociação falhou, com vários países da ASEAN, incluindo Malásia, Indonésia e Cingapura, reconhecendo a recusa da junta em respeitar o acordo. Desde o golpe, a ASEAN proibiu os representantes da junta de Mianmar de participarem das reuniões da cúpula do bloco. Além disso, a ASEAN impôs pressão mínima sobre Mianmar, enquanto outros governos poderosos, incluindo os EUA e o Reino Unido, se escondem atrás da deferência regional para justificar sua própria ação limitada.
Para alcançar um resultado diferente, a ASEAN precisa adotar uma abordagem diferente. Em setembro, o então ministro das Relações Exteriores da Malásia, Saifuddin Abdullah foi o primeiro funcionário da ASEAN a se reunir, após o golpe, abertamente com representantes da oposição, o Governo de Unidade Nacional de Mianmar, formado por legisladores eleitos, representantes de minorias étnicas e ativistas da sociedade civil. O bloco deveria seguir o exemplo e estender seu compromisso aos representantes da sociedade civil de Mianmar.
A ASEAN também deveria intensificar a pressão sobre Mianmar, alinhando-se com os esforços internacionais para cortar a receita em moeda estrangeira da junta e as compras de armas, o que por sua vez enfraqueceria as forças armadas de Mianmar. Como presidente da ASEAN em 2023, a Indonésia deveria liderar uma revisão do histórico de direitos humanos da junta e do não cumprimento do Consenso de Cinco Pontos e considerar a suspensão de Mianmar para manter o compromisso do bloco com uma “ASEAN voltada para as pessoas e centrada nas pessoas”.
Os direitos humanos podem definir – e desenhar – o caminho no horizonte
Mais um ano de encolhimento do espaço cívico real e virtual em todo o mundo traz o reconhecimento de que os ataques ao sistema de direitos humanos se devem, em parte, à sua eficácia – porque, ao expor os abusos e elevar as vozes dos sobreviventes e daqueles em risco, o movimento de direitos humanos torna mais difícil o sucesso de governos abusivos.
Em 2022, seis semanas após a invasão em grande escala da Ucrânia, as autoridades russas fecharam sumariamente o escritório da Human Rights Watch em Moscou após 30 anos de operação contínua, junto com escritórios de mais de uma dúzia de organizações não-governamentais estrangeiras. Os fechamentos dos escritórios dessas organizações seguem uma década de leis e medidas repressivas que o governo russo adotou para dizimar a sociedade civil e forçar centenas de ativistas, jornalistas, defensores de direitos humanos e outros críticos ao exílio. O Kremlin não mediu esforços para extinguir a dissidência porque a dissidência o ameaça. E aí reside uma verdade fundamental: quem trabalha assiduamente para reprimir os direitos humanos mostra sua fraqueza, não sua força.
Repetidas vezes, os direitos humanos provam ser uma lente poderosa através da qual podemos ver as ameaças mais existenciais que enfrentamos, como a mudança climática. Do Paquistão à Nigéria e à Austrália, todos os cantos do mundo enfrentam um ciclo quase ininterrupto de eventos climáticos catastróficos que se intensificarão devido às mudanças climáticas, juntamente com mudanças de maior prazo, como o aumento do nível do mar. Em termos simples, estamos vendo o custo da inação de governos, um ataque contínuo dos grandes poluidores e o custo sobre as comunidades, com aqueles já marginalizados pagando o preço mais alto.
O vínculo inquebrantável entre as pessoas e a natureza foi reconhecido pela Assembleia Geral da ONU, que no ano passado confirmou a universalidade do direito humano a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável. Com os efeitos destrutivos da mudança climática se intensificando em todo o mundo, há um imperativo legal e moral para autoridades governamentais regularem as indústrias cujos modelos de negócios são incompatíveis com a proteção dos direitos básicos.
Para evitar os piores efeitos da mudança climática e enfrentar o custo sobre os direitos humanos em todos os estágios de suas operações, os governos precisam trabalhar urgentemente para implementar uma transição justa para eliminar gradualmente os combustíveis fósseis e impedir que o agronegócio continue destruindo as florestas do mundo. Ao mesmo tempo, os governos deveriam agir com urgência na defesa dos direitos humanos em suas respostas aos extremos climáticos e às mudanças graduais que já são inevitáveis, protegendo as populações em maior risco, incluindo povos indígenas, mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e pessoas que vivem em situação de pobreza.
Muitas dessas comunidades também estão liderando a tarefa de proteger seus modos de vida e seus lares contra operações das minas de carvão, petróleo e gás que poluem a água de que dependem para cozinhar, limpar e beber, e resultam na elevação dos mares que engolem as terras onde vivem. Convergir as comunidades da linha de frente e os defensores do meio ambiente é uma das maneiras mais poderosas de combater as atividades corporativas e governamentais que prejudicam o meio ambiente e protegem os ecossistemas críticos necessários para enfrentar a crise climática.
Indígenas defensores da floresta são fundamentais para a proteção da Amazônia brasileira, um ecossistema vital para retardar os efeitos da mudança climática por meio do armazenamento de carbono. Em vez de apoiá-los, o governo do então presidente Jair Bolsonaro permitiu o desmatamento ilegal e enfraqueceu a proteção dos direitos dos povos indígenas. A desastrosa destruição ambiental durante seu mandato de quatro anos foi acompanhada de graves violações de direitos, incluindo violência e intimidação contra aqueles que tentaram detê-la.
O recém-eleito presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu reduzir o desmatamento da Amazônia a zero e defender os direitos dos povos indígenas. Durante seus dois mandatos anteriores, de 2003 a 2010, o desmatamento caiu drasticamente, mas sua administração também promoveu barragens e outros projetos de infraestrutura com alto impacto ambiental e social na Amazônia. A habilidade do presidente Lula de cumprir seus compromissos climáticos e de direitos humanos é crítica para o Brasil e para o mundo.
Uma nova compreensão internacional dos direitos humanos
A magnitude, escala e frequência das crises de direitos humanos em todo o mundo mostram a urgência de uma nova abordagem e um novo modelo de ação. Observar nossos maiores desafios e ameaças ao mundo moderno por meio da lente dos direitos humanos revela não apenas as profundas causas da ruptura, mas também oferece orientação para enfrentá-las.
Todo governo tem a obrigação de proteger e promover o respeito aos direitos humanos. Depois de anos de esforços fragmentados e muitas vezes indiferentes em defesa de civis ameaçados em lugares como Iêmen, Afeganistão e Sudão do Sul, a mobilização mundial em torno da Ucrânia nos lembra do potencial extraordinário quando os governos cumprem suas responsabilidades de direitos humanos em escala global. Todos os governos deveriam trazer o mesmo espírito de solidariedade para a multiplicidade de crises de direitos humanos em todo o mundo, e não apenas quando for de seu interesse.