O presidente boliviano Evo Morales renunciou em 10 de novembro após massivos protestos sociais, um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) detalhando a "clara manipulação" do sistema de votos durante as eleições presidenciais de outubro e uma ordem do chefe das Forças Armadas para que ele renunciasse.
Em 13 de novembro, Jeanine Áñez, vice-presidente do Senado e oponente política de Morales, assumiu o cargo de presidente interina em uma manobra altamente controversa endossada pelo Tribunal Constitucional.
O governo de Evo Morales criou um ambiente hostil para os defensores dos direitos humanos e promoveu mudanças judiciais que representam uma séria ameaça ao Estado de Direito no país. Após assumir o cargo, a presidente Áñez anunciou e adotou medidas alarmantes, contrárias aos padrões fundamentais de direitos humanos, incluindo um decreto que protegerá militares da responsabilização por abusos durante operações de controle de multidões.
A violência contra as mulheres, os direitos ao devido processo legal de pessoas presas, o trabalho infantil e a impunidade por violações dos direitos humanos também são preocupações centrais.
Eleições
Em outubro, o presidente Evo Morales concorria ao seu quarto mandato. A maioria do povo boliviano tinha apoiado o limite de mandatos em um referendo nacional em 2016, mas Morales foi autorizado a disputar as eleições após decisão do Tribunal Constitucional de 2017.
Protestos populares eclodiram após a eleição, considerada por muitos bolivianos como injusta e fraudulenta.
Em 25 de outubro, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia sinalou que Morales tinha ganhado a presidência. Porém, em 10 de novembro, a OEA apresentou um relatório detalhando uma "manipulação clara" do sistema de votação.
Após o relatório da OEA, Morales disse que o país realizaria novas eleições e substituiria todos os membros do TSE. Mais tarde naquele dia, o chefe militar nacional, general Williams Kalima, pediu a Morales que renunciasse. Morales renunciou no mesmo dia, dizendo que estava sendo deposto em um golpe. Ele viajou para o México no dia seguinte, depois de o governo mexicano lhe conceder asilo.
Violência e abusos relacionados a protestos
Até 17 de novembro, 23 pessoas tinham morrido e mais de 700 ficaram feridas no contexto de protestos desde as eleições de 20 de outubro, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em 15 de novembro, 9 pessoas morreram e 122 ficaram feridas durante uma manifestação na província de Chapare. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) disse que as mortes "parecem ser o resultado do uso desnecessário ou desproporcional da força pela polícia e pelo exército". Os manifestantes, incluindo os apoiadores de Morales, também se envolveram em atos graves de violência.
Em 15 de novembro, Jeanine Áñez editou um decreto presidencial destacando militares à tarefa de "defesa da sociedade e da ordem pública". O decreto isenta de responsabilidade criminal membros das forças armadas quando sua ação for "em legítima defesa ou estado de necessidade" e respeitar os “princípios de legalidade, necessidade absoluta e proporcionalidade”, conforme definido em disposições específicas da lei boliviana. O decreto é inconsistente com os padrões internacionais de direitos humanos e manda a perigosa mensagem aos militares nas ruas de que eles não serão responsabilizados por abusos.
Independência do Poder Judiciário
A administração de Morales buscou reformar o sistema de justiça boliviano, atormentado, há anos, por corrupção, atrasos e interferência política. Mas algumas iniciativas representam um sério risco para a independência judicial.
Em 2017, o Conselho da Magistratura determinou que todos os juízes nomeados antes da promulgação da Constituição de 2009 fossem considerados transitórios e poderiam ser sumariamente removidos. Desde então, o Conselho destituiu sumariamente cerca de 100 juízes, sem fornecer razões para as destituições dos cargos nem oportunidade de contestá-las.
Em dezembro de 2017, por eleição popular, eleitores votaram para juízes do Tribunal Supremo de Justiça e membros do Conselho da Magistratura por meio de listas fechadas criadas pela Assembléia Plurinacional, onde o partido do Presidente Morales, Movimento para o Socialismo (MAS), tem maioria.
Em 2018, o Conselho da Magistratura adotou uma resolução conferindo ao próprio órgãoamplos poderes para transferir juízes para outras cidades ou jurisdições.
Em agosto de 2019, uma parlamentar da oposição divulgou gravações de áudio sugerindo fortemente que juízes de alto nível e membros do Conselho da Magistratura haviam exercido influência inadequada na nomeação de juízes de instâncias inferiores.
Impunidade por abusos
A Bolívia responsabilizou judicialmente apenas algumas das autoridades responsáveis por violações de direitos humanos cometidas sob o regime autoritário de 1964 a 1982, em parte porque as forças armadas por vezes se recusaram a compartilhar informações sobre o destino das pessoas mortas ou desaparecidas à força com as autoridades judiciais.
Uma “Comissão da Verdade” estabelecida pelo governo em agosto de 2017 para conduzir investigações não judiciais das graves violações de direitos humanos durante esse período tem como objetivo fornecer informações aos promotores e juízes para a condenação dos responsáveis. Os resultados ainda não tinham sido publicados até a elaboração deste relatório. As Forças Armadas fizeram limitados avanços na desclassificação de arquivos militares e na divulgação de informações sobre vítimas de desaparecimento forçado.
Devido processo legal e condições carcerárias
Cerca de 66% de todos os bolivianos presos não foram condenados por um crime. A prisão preventiva prolongada e os atrasos nos julgamentos levam a prisões superlotadas em condições precárias e desumanas. Até meados de 2019, mais de 19.000 presos ocupavam prisões construídas para abrigar um máximo de 5.000.
Em julho de 2018, o Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção da Tortura disse que a "delegação de autoridade" dos agentes penitenciários aos presos, um "sistema de autogoverno dos presos" e "corrupção" aumentaram a vulnerabilidade dos presos às "formas sistêmicas" de exploração, tortura e outros maus-tratos. Em março de 2019, oito policiais foram acusados de um estupro no início do ano, de um brasileiro de 21 anos na prisão de Rurrenabaque, no departamento de Beni, a nordeste de La Paz.
Em maio de 2019, a Assembléia Legislativa aprovou uma lei que restringe a prisão preventiva de homens e mulheres responsáveis por crianças. Até a elaboração deste relatório, um plano e um orçamento especial para implementar a lei ainda não tinham sido aprovados.
A Procuradoria-Geral usou repetidamente uma lei anticorrupção de 2010 na acusação de suspeitos de crimes supostamente cometidos antes da promulgação da lei, violando o princípio consagrado no direito internacional de aplicação não retroativa de leis penais.
Em 2018, a Assembléia Legislativa aprovou uma lei de anistia proposta pelo governo para os ex-presidentes Jorge Quiroga e Carlos Mesa. Eles foram acusados de “conduta antieconômica” – um crime incluído na lei anticorrupção de 2010 – por atos cometidos no início dos anos 2000. A lei de anistia exige que Quiroga e Mesa “solicitem” a aplicação da anistia. Até a elaboração deste relatório, eles não a tinham solicitado, argumentando que não eram culpados, e os processos contra eles continuavam em tramitação.
Em 13 de novembro, o recém nomeado ministro do governo de Jeanine Añez, Arturo Murillo, alertou que o governo “perseguirá” e encarcerará pessoas que cometam “sedição”, ou rebelião contra autoridades públicas, – um crime vagamente definido que pode levar a até três anos de prisão sob a lei boliviana. Murillo disse que o governo também "caçaria" Juan Ramón Quintana, ministro no governo do ex-presidente Morales, a quem ele descreveu como "um animal".
Defensores dos direitos humanos Uma lei e decreto que o Presidente Morales assinou em 2013 concedem ao governo amplos poderes para dissolver organizações da sociedade civil. De acordo com o decreto, qualquer agência do governo pode solicitar ao Ministério da Autonomia que revogue a permissão de uma organização não governamental (ONG) de realizar atividades diferentes das listadas em seu estatuto ou se seu representante legal for condenado por crimes que “enfraquecem a segurança ou ordem pública."
O decreto também permite que a Assembléia Legislativa solicite a revogação da permissão de uma ONG em casos de "necessidade ou interesse público". Essas medidas dão ao governo amplos poderes para acabar com grupos independentes da sociedade civil.
Autoridades do governo de Morales acusaram grupos de direitos humanos de se envolverem em uma conspiração internacional contra o governo, sem apresentar evidências para sustentar suas constatações.
Em 10 de novembro, um grupo de homens incendiou a casa de Waldo Albarracín, reitor de uma universidade e defensor dos direitos humanos. Albarracín culpou apoiadores de Morales.
Liberdade de expressão
Embora o debate público seja pujante na Bolivia, o governo de Morales frequentemente atacou jornalistas, acusando-os, sem apresentar provas, de publicar mentiras e distorções motivadas por interesses políticos. Em maio de 2018, Morales tuitou que “alguns meios de comunicação” recebem “instruções de Washington para mentir, manipular [a verdade] e desinformar [o público]”. O governo de Morales também acusou repetidamente a mídia de participar de uma conspiração internacional contra Bolívia e o presidente.
Durante a onda de violentos protestos pós-eleitorais, vários meios de comunicação e jornalistas foram atacados ou ameaçados. Pelo menos quatro canais tiveram que interromper temporariamente sua transmissão.
Em 14 de novembro, a recém-nomeada ministra da Comunicação do governo de Jeanine Añez, Roxana Lizárraga, disse que o governo adotará "ações pertinentes", incluindo "deportação", contra jornalistas que "cometam sedição".
A Bolívia carece de critérios transparentes quanto ao uso de dinheiro público para comprar anúncios de mídia – uma importante fonte de receita de veículos de comunicação – e alguns veículos acusaram a administração de Morales de discriminar aqueles que criticam autoridades governamentais, não financiando publicidade neles.
Direitos dos povos indígenas
A constituição de 2009 inclui garantias abrangentes dos direitos dos grupos indígenas à titularidade coletiva de terras, educação intercultural, consulta prévia sobre projetos de desenvolvimento e proteção dos sistemas de justiça indígenas.
O direito dos povos indígenas ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI) sobre medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los não está totalmente consagrado na lei boliviana. Os padrões internacionais exigem o CLPI em todas as etapas dos projetos que afetam os direitos dos povos indígenas à terra e aos recursos naturais. No entanto, uma lei de mineração boliviana atual que rege as concessões de terras indígenas limita o CLPI à fase de exploração.
Violência de gênero e direitos reprodutivos
Mulheres e meninas na Bolívia continuam a enfrentar alto risco de violência de gênero, apesar da lei de 2013 que estabelece medidas abrangentes de prevenção e responsabilização em casos de violência contra as mulheres. A lei definiu o crime de “feminicídio” (a morte de uma mulher em certas circunstâncias, incluindo a violência doméstica) e exigiu a criação de abrigos para mulheres, bem como a alocação de promotores e tribunais especiais para crimes de gênero.
A Procuradoria Geral do Estado registrou 136 vítimas de feminicídio em 2018 e 82 entre janeiro e setembro de 2019.
Segundo a lei boliviana, o aborto não é crime quando a gravidez resulta de estupro ou se o procedimento é necessário para proteger a vida ou a saúde da mulher ou menina grávida. Em 2017, a Assembléia Plurinacional aprovou uma reforma penal introduzida pelo governo que descriminalizaria completamente o aborto para meninas e permitiria que uma mulher terminasse uma gravidez em várias circunstâncias, inclusive se sua vida ou saúde estiver em risco; se a gravidez for resultado de estupro; e se o feto sofrer de condições severas não compatíveis com a vida fora do útero. Mas em resposta aos protestos, a assembléia revogou o projeto de lei em janeiro de 2018, antes de entrar em vigor.
Trabalho infantil
Em 2018, o Tribunal Constitucional revogou uma disposição de uma lei de 2014 que permitia que crianças de 10 anos de idade trabalhassem em atividades consideradas não "perigosas" ou "insalubres". Mais tarde no mesmo ano, o parlamento aprovou uma lei que elevava a idade mínima para trabalhar para 14 anos de idade. Segundo o Ministério do Trabalho, aproximadamente 390.000 crianças trabalham na Bolívia, freqüentemente em indústrias perigosas, como construção, colheita de cana e mineração.
Orientação sexual e identidade de gênero
Em 2016, a Assembléia Plurinacional aprovou um projeto de lei que permite que as pessoas modifiquem o gênero listado em seus documentos de identidade sem aprovação judicial prévia. No entanto, em 2017, o Tribunal Constitucional decidiu que essa “revisão de gênero” não concedia o direito de se casar com uma pessoa do mesmo sexo biológico. Casais do mesmo sexo não podem se casar ou se envolver em uniões civis. A constituição da Bolívia em 2009 define o casamento como a união de um homem e uma mulher.
Em julho, o Presidente Morales assinou um decreto revogando uma regra discriminatória que proibia homossexuais e bissexuais de se tornarem doadores de sangue.
Principais atores internacionais
Em 14 de novembro, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, nomeou Jean Arnault como seu enviado pessoal para "oferecer apoio das Nações Unidas nos esforços para encontrar uma solução pacífica para a crise" na Bolívia.
Em 18 de novembro, a CIDH solicitou a autorização do governo para realizar uma missão na Bolívia para observar a situação dos direitos humanos. No mesmo dia, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) disse que enviaria uma missão para documentar a situação no país.
Em novembro, a Bolívia se submeteu à sua terceira Revisão Periódica Universal das Nações Unidas no Conselho de Direitos Humanos.
O mandato do ACNUDH na Bolívia terminou em dezembro de 2017, depois de o governo não ter renovado a autorização para a atuação no país.
A Bolívia se opõe consistentemente às resoluções da Organização dos Estados Americanos (OEA) que destacam as graves violações de direitos humanos na Venezuela e na Nicarágua.