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Mianmar

Events of 2021

Trabalhadores da saúde participam da “Campanha da Fita Vermelha” em um hospital em Mandalay, Mianmar, protestando contra o golpe militar em 3 de fevereiro de 2021.

 

© 2021 Kaung Zaw Hein / SOPA Images / Sipa USA via AP Images

O golpe militar de 1º de fevereiro de 2021 encerrou, na prática, a transição democrática sob a Liga Nacional pela Democracia (NLD, na sigla em inglês) de Aung San Suu Kyi. Após uma vitória esmagadora nas eleições gerais de novembro de 2020, o NLD estava prestes a retornar ao poder por mais cinco anos. No entanto, sob a junta militar do Conselho de Administração do Estado (SAC, na sigla em inglês), liderada pelo general sênior Min Aung Hlaing, soldados e policiais prenderam centenas de membros do parlamento – incluindo Aung San Suu Kyi e importantes membros do partido NLD –, e os manteve em detenção arbitrária por meses, muitos deles em locais não revelados.

Os militares tomaram o poder com base em alegações infundadas sobre irregularidades generalizadas e sistemáticas no processo eleitoral, embora observadores internacionais e nacionais tenham concluído que a eleição foi “legítima e refletiu a vontade da maioria dos eleitores”.

A junta apresentou várias denúncias contra Aung San Suu Kyi, incluindo por corrupção, incitação, e violação da Lei sobre Segredos de Estado. Três de seus ministros depostos e um conselheiro econômico australiano também enfrentaram acusações sob a mesma lei.

Milhões tomaram as ruas em todo o país em protestos pacíficos, em grande parte para pedir aos militares que renunciassem ao poder, enquanto membros do parlamento, representantes de minorias étnicas e ativistas da sociedade civil formaram o Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês) de oposição. As forças de segurança responderam cometendo abusos que equivalem a crimes contra a humanidade contra a população civil, incluindo tortura, privação severa de liberdade, desaparecimentos forçados, estupro e outros abusos sexuais, e tratamento desumano. Jornalistas, advogados, profissionais da saúde, manifestantes contrários à junta militar, ativistas da sociedade civil, mulheres e muitos outros continuam correndo elevado risco de prisão arbitrária.

Entre 1º de fevereiro e 1º de novembro, a polícia e os militares mataram pelo menos 1.200 manifestantes e transeuntes, incluindo aproximadamente 75 crianças, e prenderam mais de 8.700 oficiais do governo, ativistas, jornalistas e funcionários públicos.

Em 14 de março, a junta impôs a lei marcial em vários municípios de Yangon e começou a aplicar restrições adicionais em outras partes do país. Em 13 de maio, a junta também impôs a lei marcial no município de Mindat, no estado de Chin, após confrontos entre as forças de segurança e milícias da oposição levemente armadas. Sob as ordens da lei marcial, a autoridade direta sobre os distritos foi transferida para os respectivos comandantes militares regionais.

Desde o golpe, os militares intensificaram as operações militares contra grupos armados étnicos em algumas áreas, como no estado de Chin. Segundo relatos, o uso indiscriminado de artilharia e ataques aéreos pelos militares feriu e matou civis, danificou vilas, inclusive escolas, e forçou milhares a fugirem.

Crimes contra a humanidade após o golpe

As forças de segurança promoveram ataques generalizados e sistemáticos contra civis por todo o Mianmar, incluindo o assassinato de manifestantes, desaparecimento forçado de apoiadores da oposição, tortura, abuso sexual, estupro de alguns detidos e detenções políticas em massa. Em 21 de fevereiro de 2021, a junta declarou por meio do jornal pró governo “Nova Luz Global de Mianmar”: “Os manifestantes agora incitam as pessoas, especialmente adolescentes e jovens emocionados, a um caminho de confronto no qual enfrentarão a perda de suas vidas.”.

Muitas das 1.200 pessoas mortas pela polícia e pelos militares desde o golpe eram manifestantes e terceiros em cidades e vilas de Mianmar, incluindo Yangon, Mandalay, Bago, Monywa e outros municípios na região de Sagaing, município de Mindat no estado de Chin e muitos outros locais. O direito internacional dos direitos humanos permite que policiais usem a força letal apenas como último recurso quando houver uma ameaça iminente à vida. No entanto, em vários casos relatados pelas Nações Unidas, Human Rights Watch, outras organizações de direitos humanos e a imprensa em 2021, as forças de segurança dispararam contra manifestantes que estavam desarmados e não representavam qualquer ameaça aparente.

A ONU relatou que em 3 de março, as forças de segurança em todo o país dispararam contra manifestantes, matando pelo menos 38 e ferindo mais de 100. Segundo relatos de imprensa, assassinatos também foram reportados em um único dia em Monywa, região de Sagaing; Myingyan e Mandalay, região de Mandalay; Salin, região de Magway; e Mawlamyine, estado de Mon. Em 13 de março, as autoridades mataram pelo menos nove manifestantes, incluindo cinco na área de Sein Pan de Mandalay, quando forças de segurança atiraram contra a multidão. Em 14 de março, no município de Hlaing Tharyar, Yangon, as forças de segurança mataram cerca de 66 pessoas, segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP).

Na véspera do Dia das Forças Armadas, em 27 de março, o canal de notícias MRTV anunciou que os manifestantes “deveriam aprender da tragédia das mortes horríveis anteriores que correm o risco de levar um tiro na cabeça e nas costas”. Em 27 de março, as forças de segurança levaram a cabo essa ameaça reprimindo violentamente manifestantes em pelo menos 40 vilas e cidades, matando dezenas.

Em 9 de abril, ao amanhecer, militares mataram cerca de 82 pessoas em Bago em um ataque contra as barricadas e acampamentos dos manifestantes; tem sido difícil determinar o número exato de vítimas devido à forte presença de segurança e à restrição de acesso à área por repórteres ou investigadores independentes.

Após serem liberados, diversas pessoas presas por participarem de manifestações pró-democracia disseram que agentes de segurança os torturaram e maltrataram, assim como a outras pessoas sob custódia. Os métodos de tortura incluíam espancamentos, execuções simuladas com armas de fogo, queimaduras de cigarro, além de estupro e ameaça de estupro.

A junta militar prendeu mais de 100 políticos, funcionários eleitorais, jornalistas, ativistas e manifestantes e se recusou a confirmar seu paradeiro ou condições de detenção, uma violação ao direito internacional. As forças de segurança frequentemente detinham familiares, incluindo crianças e idosos, quando não conseguiam encontrar a pessoa que procuravam prender.

Ameaças aos Rohingya

As autoridades têm cometido os crimes contra a humanidade de apartheid, perseguição e grave privação de liberdade contra 600.000 Rohingya que permanecem no estado de Rakhine. A maioria dos Rohingya fugiu do país após a campanha militar de assassinatos, estupros e incêndios criminosos que resultou em crimes contra a humanidade e atos genocidas em 2017.

Aproximadamente 130.000 Rohingya têm se mantido confinados em campos de detenção ao ar livre no centro do estado de Rakhine desde que foram deslocados pela limpeza étnica em 2012, uma violação ao seu direito fundamental de retornar para casa. A liberdade de movimento lhes é negada, o que equivale a uma privação de liberdade arbitrária e discriminatória.

Após o golpe, as restrições ao acesso humanitário aumentaram, levando a mortes e doenças evitáveis em campos e comunidades Rohingya. No final de maio, nove crianças morreram no estado de Rakhine, após um surto de diarreia aguda.

Ameaças aos direitos das mulheres e meninas

Mulheres lideraram e participaram de protestos em massa como parte do Movimento de Desobediência Civil contra a junta. Mulheres manifestantes foram algumas das primeiras a serem mortas pelas forças de segurança e detidas arbitrariamente. Muitas mulheres relataram terem sido espancadas pelas forças de segurança durante o período em que estiveram presas e algumas fizeram denúncias críveis sobre violência sexual e tratamento humilhante pelas forças de segurança durante sua detenção.

O tráfico de mulheres e meninas continua sendo um sério problema nos Estados de Shan e Kachin, onde o conflito e o desespero econômico as tornam vulneráveis a falsas promessas de uma vida melhor na China, mas que acabam sendo vendidas como escravas sexuais e para reprodução forçada como “noivas”.

O governo do NLD, antes do golpe, não conseguiu aprovar a Lei de Prevenção da Violência contra a Mulher. Embora a lei tenha sido criticada por ficar muito aquém dos padrões internacionais, a ausência de uma legislação específica paralisou os esforços para prevenir a violência de gênero, ajudar sobreviventes e responsabilizar judicialmente os perpetradores.

Liberdade de expressão e mídia

Em 25 de outubro, a junta militar de Mianmar prendeu 98 jornalistas, 46 dos quais continuavam presos, segundo a AAPP. Seis jornalistas foram condenados, incluindo cinco por violarem a seção 505A do código penal, uma nova disposição que torna crime publicar ou divulgar comentários que “causem medo” ou espalhem “notícias falsas”. Em tais processos, “notícias falsas” parecem ser quaisquer notícias que as autoridades não desejam que se tornem públicas.

Em 8 de março, a junta retirou as concessões de cinco agências de notícias locais: Voz Democrática da Birmânia (DVB, na sigla em inglês), Khit Thit Media, Mizzima, Myanmar Now e 7Day. Em 4 de maio, as autoridades baniram dois outros veículos, o 74 Mídia, de Kachin, e a Tachileik News Agency, de Shan, e também proibiram televisão por satélite.

Além disso, em 4 de maio, as autoridades prenderam o jornalista estadunidense Danny Fenster, editor-chefe da Frontier Myanmar, e o detiveram por acusações de motivação política. Em 12 de novembro, um tribunal o sentenciou a 11 anos de trabalhos forçados, mas ele teve permissão para deixar o país em 15 de novembro.

Em 30 de junho, o Ministério da Informação emitiu um alerta aos jornalistas para que parassem de descrever o SAC como uma “junta” ou seriam processados.

Bloqueios à Internet

Nas semanas que se seguiram ao golpe, a junta impôs o bloqueio à internet em todo o país da 1h às 9h da manhã, posteriormente suspenso. No entanto, as autoridades continuaram a bloquear muitos sites e a reduzir a velocidade da internet ao longo do ano. Os bloqueios de dados e redes móveis também continuaram em 22 distritos, onde a oposição à junta resultou em fortes confrontos entre os militares de Mianmar e grupos de milícias pró-democracia.

Ameaças à ajuda humanitária

O aumento dos confrontos entre os militares de Mianmar e grupos armados étnicos nas áreas de fronteira nos estados de Chin, Kachin, Karen, Kayah e Shan aumentou a pressão sobre o acesso e limitou a ajuda humanitária a essas áreas. A ONU disse, em julho, que pelo menos 3 milhões de pessoas precisavam de ajuda humanitária – um aumento de 2 milhões de pessoas desde 1º de fevereiro – e a escassez de alimentos foi reportada em partes dos estados de Chin e Rakhine.

Milícias Anti-Junta

Milícias se formaram em todo o país desde o golpe para se opor à junta e atacar as forças de segurança. Muitas das milícias adotaram o título de Forças de Defesa do Povo, o mesmo nome que o NUG adotou para a força nacional que criou. No entanto, nem todas as Forças de Defesa do Povo recém formadas estão ligadas ao NUG ou recebem ordens de sua estrutura de comando.

Essas milícias começaram a realizar ataques em pequena escala contra os militares em julho. Nas regiões de Sagaing e Magway e no estado de Chin, combates intensos entre as milícias e os militares supostamente mataram centenas de soldados. Os militares responderam com incursões cada vez maiores e incendiando vilas. Algumas milícias realizaram bombardeios em edifícios e assassinatos de civis simpatizantes das forças armadas.

Em 7 de setembro, o presidente em exercício do NUG, Duwa Lashi La, declarou uma “guerra defensiva” contra a junta militar.

Orientação sexual e identidade de gênero

O código penal de Mianmar pune "relações sexuais carnais contra a ordem da natureza" com até 10 anos de prisão e multa.

A oposição NUG relatou que lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) são particularmente vulneráveis à violência sexual sob custódia. Uma mulher transexual contou, após sua liberação, que foi estuprada com um objeto, torturada e severamente espancada, quando sob custódia.

Covid-19 e ataques a profissionais da saúde

Em novembro de 2021, apenas 13% da população de 54 milhões de Mianmar estava totalmente vacinada. Um total de 17.998 mortes foram registradas pelo Ministério da Saúde entre março de 2020 e outubro de 2021, embora os números reais sejam provavelmente muito maiores.

A junta perseguiu, prendeu arbitrariamente e atacou profissionais da saúde, às vezes enquanto tratavam manifestantes feridos. Os trabalhadores da saúde foram os primeiros líderes do Movimento de Desobediência Civil e se recusaram a trabalhar em hospitais públicos como forma de protesto. Nos nove meses posteriores ao golpe, pelo menos 260 profissionais de saúde foram atacados enquanto tentavam promover ajuda médica, e 20 morreram. A AAPP informou que 76 continuaram detidos em setembro e cerca de 600 profissionais de saúde tinham mandados de prisão pendentes contra eles. Muitos foram forçados a trabalhar clandestinamente em clínicas móveis improvisadas para tratar pacientes com Covid-19 ou se esconderam para escapar da prisão. A equipe da ONU em Mianmar disse que os ataques a profissionais da saúde colocaram em risco a resposta à Covid-19 e impediram os pacientes de receber cuidados de saúde.

Principais atores internacionais

Em fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU realizou uma sessão especial e adotou por consenso uma resolução lamentando a destituição do governo eleito e pedindo a libertação incondicional de todos os presos arbitrariamente. Uma outra resolução foi adotada na sessão do conselho de março "condenando nos termos mais veementes" a deposição militar do governo civil e destacando a necessidade de responsabilização.

Em junho, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução condenando veementemente o golpe de 1º de fevereiro. A Assembleia Geral também fez várias recomendações importantes, incluindo um apelo a todos os Estados membros para evitarem o fluxo de armas para Mianmar. O Conselho de Segurança da ONU não seguiu essa recomendação e não aprovou uma resolução juridicamente vinculante que imporia uma proibição global da transferência de armas e tecnologias de duplo uso para Mianmar.

Canadá, União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos impuseram sanções direcionadas contra os principais oficiais militares de Mianmar e membros da junta, conglomerados e empresas pertencentes ou controladas pelos militares. No entanto, os governos estrangeiros não impuseram sanções às receitas do petróleo e do gás, principal fonte de receitas da junta.

Em outubro, o Congresso dos EUA apresentou a Lei BURMA de 2021, apoiando a autorização de outras sanções direcionadas e recomendou que o governo dos EUA tomasse medidas sobre o genocídio dos Rohingya. O Parlamento Europeu também apoiou o reconhecimento do NUG como o governo legítimo de Mianmar e apelou a mais sanções da UE contra empresas pertencentes a militares. Embora a UE tenha expressado apoio à Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) como mediadora com os militares de Mianmar, também condenou o golpe “nos termos mais veementes”.

O Mecanismo de Investigação Independente para Mianmar (IIMM, na sigla em inglês), apoiado pelas Nações Unidas, tem o mandato de documentar casos para apoiar os esforços que visam responsabilizar legalmente os indivíduos por crimes internacionais graves. O IIMM está “monitorando de perto” os eventos e coletando evidências de tais crimes cometidos após o golpe, e disse que, se comprovadas, as supostas violações poderiam ser consideradas crimes contra a humanidade.

Em 24 de abril, a ASEAN negociou um plano consensual de cinco pontos com os militares e nomeou o diplomata de Brunei, Erywan Yusof, como enviado especial. O fracasso dos militares em implementar o plano de cinco pontos levou a ASEAN a excluir o líder da junta, o general Min Aung Hlaing de sua cúpula de outubro.

No âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI), o procurador-geral está investigando Mianmar pelos crimes contra a humanidade de deportação e perseguição, com base na conclusão desses crimes em Bangladesh, que é país membro do TPI, após a campanha de limpeza étnica de 2017 contra os Rohingya. Em julho, citando o Artigo 12(3) do Estatuto do TPI, o NUG apresentou uma declaração ao TPI aceitando a jurisdição do tribunal sobre crimes cometidos em Mianmar desde 1º de julho de 2002.

O caso de Gâmbia, alegando violação da Convenção sobre Genocídio por Mianmar, continuou perante o Tribunal Internacional de Justiça, com Mianmar levantando objeções preliminares à jurisdição do tribunal e à admissibilidade do pedido de Gâmbia.